Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sábado, 26 de abril de 2014

A caravana passa e os cães ladram

     Existe um velho ditado alertando para o fato de que “quem fala o que quer, ouve o que não quer”. Com ele em mente, procuro não aceitar o que considero desaforo e respondo na hora. Estou falando de postagens de amigos e conhecidos no Facebook (doravante chamado de FB).
     Estou estarrecido com a quantidade de inverdades publicadas e compartilhadas no FB em forma de cartazinhos, por pessoas das mais variadas condições sociais e intelectuais, algumas que eu até achava inteligentes. Diariamente me deparo com mentirinhas políticas, criadas por algum inimigo oculto, cujo objetivo é minar a consciência de incautos despolitizados (que assim não se consideram). Esses últimos compartilham sem dó nem piedade aquilo que cai nas suas timelines, sem ao menos pesquisar a veracidade do comentário. Há também postagens inofensivas cujo objetivo é prestar “(des)informação”, tipo: bicarbonato e sódio cura câncer; água oxigenada branqueia os dentes; não aceite ligações de 06565xxx, porque esse número clona seu celular; a cada curtida na foto da criança doente o FB vai doar x centavos; ladrões estão jogando bolinhas de veneno nos quintais para matar cães e invadir a casa mais facilmente; Suzane Rischthofen, presa por matar os pais, teria virado pastora evangélica... E assim por diante. Uma infinidade de bobagens que, não bastando acreditar, algumas pessoas compartilham sem pesquisar.
     Às vezes, dependendo de quem publicou e do conteúdo, informo a pessoa sobre a inverossimilhança do que está compartilhando; noutras, procuro desancar com argumentos, mesmo arriscando perder a amizade do incauto. Eu já agia assim antes do FB — e até antes do velho Orkut —, quando essas coisas eram encaminhadas apenas por email.
     Uma das mentiras que ainda insistem em aparecer— apesar de ter sido desmentida milhares de vezes, por todos os meios — é sobre um benefício da previdência social chamado auxílio-reclusão. Aqueles que são contra o governo (doravante chamados de coxinhas) — acreditando que o benefício é coisa do governo atual (PT) — apelidaram o auxílio-reclusão de “bolsa-bandido”. Dizem que o valor atual do benefício (R$ 1.025,81) é pago a cada um dos dependentes do preso e deixam subentendido que todos os apenados têm direito a isso. Além disso, comparam esse valor com o valor do salário mínimo, coisas que não tem nada a ver uma com a outra. Pois bem, já cansei de explicar que o valor do auxílio é “dividido” entre os dependentes do apenado; que para ter direito ao auxílio, o apenado devia ser “contribuinte” da previdência por ocasião da detenção; o benefício só vale para apenados de baixa renda (que contribuam, no máximo, sobre o valor que é pago a seus dependentes); clique aqui se quiser maiores informações. A propósito: o auxílio não é coisa do PT, pois foi instituído há 50 anos, pelo extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM) e posteriormente pelo também extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), e depois incluído na Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS (Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960). Esse benefício para dependentes de presos de baixa renda foi mantido na Constituição Federal de 1988. Ah! Ele também existe em países ditos “civilizados”, de “primeiro mundo”. Para se ter uma ideia, a Previdência Social pagou, em fevereiro de 2014, 4.034.044 benefícios, num total de R$ 3.356.180.475,00 (média de R$ 831,96 por benefício); desses, apenas 1.609 eram auxílio-reclusão, num total de R$ 1.110.186,00 (média de R$ 689,99 por benefício).
     Você, que critica o benefício, não está livre de cometer um ilícito e ir preso. Se você contribuir para a previdência sobre um rendimento de até R$ 1.025,81, seus dependentes terão direito a receber o rateio desse valor. Outra coisa: você já viu algum traficante, um homicida ou um assaltante na fila do banco, com o carnê do INSS na mão, para pagar sua contribuição à previdência?

auxilioreclusão 02 auxilio reclusão 01 Exemplos da cartazinhos mentirosos sobre o auxílio-reclusão, publicados no FB


     Outra grande falcatrua que andou circulando até poucos dias diz respeito ao Marco Civil da Internet. Surgiram “especialistas” de todos os cantos condenando o agora aprovado conjunto de leis que definiram direitos e deveres de usuários e empresas que usam a rede ou oferecem infraestrutura para que ela funcione. Veja alguns exemplos.
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    Se você não sabe exatamente o que é Marco Civil da Internet, procure informar-se, não vá atrás daquilo que vê publicado. Não seja manipulado. Leia aqui.
    Um dos cartazinhos mais cretinos dos últimos tempos apareceu nesta semana e foi imediatamente desmentido na página do FB da presidenta Dilma.

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    Outro truque dos mais usados pelos anônimos covardes é exibir a foto de alguma celebridade como se ela tivesse dito um texto que aparece ao lado. Na verdade, o que se lê foi escrito é o que pensa o autor da mentira (normalmente um reacionário raivoso). Eis um exemplo recente:

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     Ao ver isso publicado imediatamente fui atrás para ver do que se tratava. E, como imaginei, não era nada disso. O tal programa era de maio de 2013 e a única coisa de parecida com o que Fafá disse, e que está no texto do cartazinho, foi a frase “O Brasil está às avessas” (na verdade ela disse “É o país às avessas”). O contexto, no entanto era totalmente diverso do apresentado. Ela estava falando sobre a erotização e sexualização da juventude nos dias atuais. Clique aqui e veja o vídeo.
     Não quero me estender muito, pois corro o risco de perder leitores. Não posso, no entanto, deixar de falar disso que me apareceu nessa semana.

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     Tudo indica que o tal Projeto de Lei Complementar teria sido inventado pelo atual governo e que é coisa da esquerda. Se o incauto coxinha compartilhar sem pesquisar — sim, porque ele acredita em tudo que esteja a favor de sua ideologia tacanha —, não vai ficar sabendo que esse PLC é de 2002 (basta ver o nº dele 276/“02”), foi inventando no governo FHC e teve aprovado o substitutivo de um ex-deputado do PFL (o partido até já mudou de nome e o cara saiu do parlamento em 2007). Garanto que quem compartilha isso nem sabe como era essa questão do trânsito de tropas estrangeiras no Brasil antes da aprovação desse PLC e como ficou agora. Você sabe, caro leitor? Acha isso importante?
     Isso tudo sem falar na fazenda do filho do Lula; no jatinho do filho do Lula; na Friboi ser do filho do Lula; de o Lula ter saído na capa da Forbes, etc. Já se sabe até quem inventou esses boatos e um dos acusados é gerente financeiro do Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC). Precisa dizer mais alguma coisa?

     O que me conforta, contudo, é que a caravana passa e os cães ladram.

     Este sábio ditado árabe “diz que não importa o latido dos cães, não importa o barulho que façam, a caravana segue o seu caminho, apesar deles… existe uma estrela a ser seguida, um pensamento a ser preservado, e nada vai impedir que a caravana siga o seu rumo… mesmo que pare por alguns momentos, mesmo que alguns cães se julguem alimentados pegando os restos que caíram durante a passagem, a caravana segue o seu rumo, mais fortalecida, mais coesa, deixando cada vez mais longe o barulho dos cães esfomeados. Uma caravana é feita de gestos, de sonhos, de atitudes, de longas vivências, de cumplicidades, de sentimentos fortes, de amizade, de amor e de desejos. Ela segue o seu caminho, totalmente indiferente ao ganido de cães enlouquecidos, atrás de alguma cadela no cio…” (Sandra Nasrallah, em O Recanto das Letras, 2008).

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Um dia isso tem que ter fim

       Em fevereiro de 1969, no auge do verão porto-alegrense, eu era apenas um rapaz latino-americano, que amava os Rolling Stones mais do que os Beatles e que há três anos tocava bateria numa banda chamada The Old Stones (leia aqui e aqui). Eu fingia que estudava e meu pai fingia que acreditava. Ele sabia, no entanto, que eu passava as tardes quentes na piscina do clube, as mornas vagabundeando na Rua da Praia e, as noites, em alguma esquina do bairro, quando não estava ensaiando. Por vergonha, não lhe pedia dinheiro, até porque dava pra viver bem com o que ganhava tocando nos fins de semana (quando pagavam...).
       Naquela época, eu gostava de desenhar, o que um dia chegou a ser motivo de bronca do meu pai, por ter achado na minha gaveta uns esboços de mulheres nuas que eu tinha feito. Também ganhava uns trocados pintando posters e camisetas com a foto famosa do Che Guevara. Vai daí que, por causa desse talento, meu irmão — acredito que conluiado com meu pai, ou vice-versa — me “arrumou” um estágio na agência de propaganda em que trabalhava. Eu passava os dias numa sala com dois ou três desenhistas, aprendendo a fazer “pastape” (é assim que se pronuncia, mas não lembro como se escreve em inglês), enfim, aprendendo o ofício de montador de peças publicitárias (não vou entrar em detalhes, mas informo que era tudo na marra, não existia computador, o CorelDraw, o Ilustrator e o Photoshpop não eram nem imaginados).
       Muito mais do que aprender o ofício, porém, comecei a aprender a conviver — no sentido de habituar-me a condições extrínsecas (físicas, culturais etc.) —, comecei a conhecer o outro lado da vida: o de ter responsabilidades. Aprendia a ficar adulto. E de graça!
       Exatamente um ano depois desse começo, o diretor da agência entrou na sala em que nos confinavam, muito simpático cumprimentou a todos, disse alguma coisa e, por fim, perguntou genericamente se “esse rapaz” — que era eu — tinha aprendido alguma coisa. A resposta foi modesta, mas unânime: sim! Então me mandou passar no departamento de pessoal. Foi assim que carimbaram e assinaram pela primeira vez minha recém tirada Carteira Profissional, do então Ministério do Trabalho e Previdência, a famosa Carteira de Trabalho.

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Até hoje, 44 anos depois, ainda está lá na página 11:
Natureza do cargo: ARTE-FINALISTA
Data de admissão: 15 de FEVEREIRO de 1970
Remuneração: NCr$ 250,00 (duzentos e cincoenta cruzeiros novos)

      Dois anos e meio depois, surgiu outra oportunidade de emprego, que iria me render um salário melhor, em um dinheiro com nome diferente e outro valor. Fui trabalhar como desenhista no Jornal da Semana, do Grupo Editorial Sinos, recebendo mensalmente Cr$ 1.200,00 (Hum mil e duzentos cruzeiros). Para se ter uma ideia, era tanto dinheiro que acabei me casando...
      Fiquei ali pouco menos de um ano. Em junho de 73, por 100 pilas a mais, me transferi para a Rádio e Televisão Gaúcha S/A, contratado como desenhista ilustrador, no setor de divulgação, mas que era uma “house-agency”.
      Estimulado por trabalhar numa empresa jornalística, perto de redações de jornal e rádio, resolvi fazer vestibular pra jornalismo, e passei na FAMECOS/PUC. Comecei a viver um pequeno dilema, mais de frescura do que de praticidade: trabalhava em publicidade, mas estudava jornalismo.
      Em julho de 1976 fui trabalhar na Marca Propaganda, ganhando Cr$ 4.000,00 (quatro mil cruzeiros) mensais, na função — de acordo com o contrato na Carteira Profissional — de arte-finalista, mas, na verdade, eu passava a limpo os “roughs” (um leiaute grosseiro) dos diretores de arte. Acho que devido aos colegas de Faculdade e à direção que o curso me levava, acabei me envolvendo com a área audiovisual. Por isso, mudei de função na agência, deixando de ser desenhista e tornando-me produtor eletrônico.
      Era, entretanto, uma época difícil no mercado publicitário. Várias agências quebravam. Para fugir da bancarrota e continuarem ativas, muitas delas demitiam funcionários. Não escapei disso.
      Mas não chegou a ser problema. Antes disso, em 1978, havia completado o curso (Leia aqui sobre isso). Depois de formado, um colega de aula, com quem eu dividia trabalhos em grupo, me convidou para prestar serviços remunerados para um projeto do MEC, em convênio com a UFRGS, onde ele era funcionário. Era março de 1979. Enquanto prestava serviços, meu colega mexia os pauzinhos para que eu fosse contratado emergencialmente, recurso que existia no serviço público naquele tempo. Quando estava tudo acertado e eu iria pedir demissão da agência para trabalhar na UFRGS, aconteceu o inverso: fui demitido por motivo de contenção de despesas. Não poderia ter dado mais certo. Era 1º de junho de 1979. Só não comecei a bater ponto na UFRGS nesse dia porque nasceu minha primeira filha.

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A primeira Carteira de Trabalho ficou pequena pra tantas anotações

      Meu contrato no cargo de “Técnico em Comunicação Social”, no entanto, foi retroativo ao dia 1º de março daquele ano. Isso quer dizer que no próximo sábado, dia 1º de março de 2014, daqui a dois dias, estarei completando 34 anos de trabalho só na UFRGS. Contando com o tempo de trabalho anterior, em 1º de fevereiro completei 45 anos de trabalho ininterruptos, em alguns deles acumulando empregos. No meio disso tudo, na década de 80, paralelamente ainda fui sócio de uma produtora de audiovisuais, professor na UNISINOS e na UFRGS, redator e editor na Rádio Guaíba e editor na Rádio Gaúcha.
      Nesses últimos 45 anos de trabalho (um de estágio e 44 empregado) recém completados, casei três vezes, tive dois filhos, fiquei viúvo uma vez e, agora, tenho um neto; fui baterista, montador, arte-finalista, desenhista, produtor eletrônico, sócio de empresa, professor, redator, editor, voltei a ser baterista, webdesign, webmaster…

.:: o ::.

      Mas um dia isso tem que ter fim: apesar de já estar há alguns anos com abono permanência (situação de quem adquire o direito de se aposentar, mas continua trabalhando), ainda nessa semana, dei entrada com a papelada pra parar de trabalhar definitivamente. Prefiro ñão dizer “me aposentar”…


      Ah! Quando isso tiver fim, ou seja, assim que me alforriarem definitivamente, só vou continuar tocando bateria. Mas sem descontar INSS…

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Os índios, os brancos, um furacão e uma rede de TV

GuaraniKaiowa      Deixa ver se entendi: Guarani-Kaiowá é uma tribo de 170 índios do Mato Grosso do Sul que mandaram uma carta ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI) prometendo promover um suicídio coletivo se forem obrigados pela Rede Globo a sair da terra em que vivem. É isso? Pelo menos foi o que pude depreender ao ler algumas postagens no Facebook.
     Peraí! Tem um cara aqui dizendo que não é a Rede Globo que quer expulsar os índios, mas sim a Justiça Federal, a pedido de fazendeiros que se dizem os verdadeiros donos das terras...
     Agora complicou! Vários conhecidos acusaram a Globo por não divulgar notícias sobre o assunto etc. Fui ao Google pra tentar saber do que realmente se tratava.
     Quanto aos indígenas, no Wikipedia descobri que “Caiouás (Kaiowá) é a exodenominação de um dos povos guaranis contemporâneos que se auto-reconhece como Paí-Tavyterã. A despeito de sua autodenominação são conhecidos também como Caaguás do norte, Kaynguás, Terenobés,Teyís, Kaa'wás, Païs, Paï-cayuäs, Painguás ou Pan no Paraguai, ou ainda como Cainguás, Kaiwás, Caiwás, Cainwás, Caiuásou Caiouás no Brasil e na Argentina”.
     Pô! Então os caras são conhecidos por um nome que lhes foi imposto? Seria isso?
     Parece, também, que os problemas deles com os brancos começaram pra valer no início do século XX, com a chegada das frentes de colonização euro-descendentes aos seus territórios. Os caiouás foram, então, expulsos por latifundiários e empresas mineradoras, sem qualquer reação significativa por parte do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que, supostamente, deveria prezar pelo bem estar dos povos indígenas no Brasil (infelizmente, o Facebook só foi lançado em fevereiro de 2004, com pelo menos um século de atraso. Caso contrário, a vida de centenas de caiouás, tanto adultos quanto crianças, seriam poupadas em lutas na defesa de suas terras).
     Enquanto isso, um século depois, não parava de chover indignação no Facebook em relação à “novidade”, que seria, no caso, o tal suicídio coletivo dos 170 integrantes da tribo. Eis que acabei descobrindo o inteiro teor da carta que os índios mandaram ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI). No penúltimo parágrafo dela dizem: (...) “Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos” (...). Um pouco acima, escreveram assim: (...) “queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui” (...).
     Na nota em que explica que “morte coletiva” não é o mesmo que “suicídio coletivo”, o CIMI diz que de 2000 a 2011 os índios cometeram 555 suicídios. Já o comentarista político Bob Fernandes (Terra Magazine), num vídeo divulgado por vários indignados das redes sociais, diz que há 43 mil índios sobreviventes das etnias Guarani-Kaiowá. Com base nos números do CIMI e do Bob, o blogue “Coleguinhas” — em matéria assinada por apenas Ivson — calcula que houve 46 suicídios por ano, resultando, então, em 0, 11 suicídio por grupo de 100 mil indígenas por ano. O cara faz a seguinte pergunta: qual a taxa de suicídios no Brasil por 100 mil pessoas/ano entre os não-índios? De acordo com a Wikipedia “estimativas indicam que em 2010 em torno de 24 pessoas cometeram suicídio por dia no Brasil, principalmente em regiões mais desenvolvidas economicamente. Os maiores índices são do Rio Grande do Sul (11 para cada 100 mil), sendo Porto Alegre a capital com maior taxa de suicídios (11,9 para cada 100 mil). A cidade brasileira com o maior índice é o Município de Venâncio Aires, com mais de 40 casos a cada 100 mil habitantes. Esses números enquadram Venâncio Aires como uma das cidades com maior índice de suicídio do mundo”.
     Muito bem. Pois o mesmo CIMI aponta no Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, lançado em junho passado, que mais de 62 mil indígenas foram mortos, em 2011. O número, segundo o Conselho, aumentou em 20 mil em relação ao ano anterior. O Relatório de 2010 já trazia um triste dado envolvendo as crianças indígenas: o número de mortalidade infantil cresceu 513% se comparado a 2009, quando 15 casos foram registrados. A cada ano o Relatório fica mais deprimente...
     Visto está, pois, que o problema não é de agora, nem localizado. De agora, só a indignação nas redes sociais, que até já está deixando de ser.
     Mas e a Globo? O que tem a ver com tudo isso? Algumas postagens reclamavam que a emissora não noticiava o acontecimento com os índios. Será que essas pessoas estavam à frente da TV, sintonizada na Globo, nos horários dos telejornais? Duvido. Então como afirmam tão categoricamente que nada era dito sobre os Guarani-Kaiowás? A propósito: seria só a Globo a não noticiar sobre o que estavam chamando de suicídio coletivo dos índios, mas que na verdade nem de suicídio falaram? E a Record? E a Band? E o SBT? E a RedeTV? Me parece que o “silêncio absoluto” — como classificou Bob Fernandes — foi total na chamada grande mídia. E por quê? Levando em consideração os escalafobéticos discursos que geralmente postam os indignados das redes sociais, só posso deduzir que a Globo e os outros veículos da “grande mídia” têm interesse nas terras indígenas.
     E as emissoras estatais? Falaram alguma coisa?

     Mudando de tribo: essa coisa de malhar a Globo já tá pra lá de chata. Fiquei até com vergonha de ler postagens de colegas meus de profissão reclamando no FB que a Globo só estava dando importância aos estragos provocados pelo furacão Sandy em Nova Iorque, em detrimento do que os ventos fizeram em Cuba. Em nenhum momento essas pessoas pensaram em comparar Nova Iorque com Cuba e a importância de suas relações com o resto do mundo; não se deram conta de que a emissora tem equipe e aparato nos USA e, especialmente, em NYC, mas não os têm em Havana, e que as notícias e imagens que vêm da ilha de Castro são adquiridas de agências de notícias. Será que não ouviram falar em “proeminência” na faculdade de jornalismo? Com certeza acreditam que se a Bolsa de Valores de Cuba parar de funcionar fará um estrago monumental na economia do mundo...

   Afff! Que fique claro que não sou contra índios, nem a favor de fazendeiros, da Justiça Federal e de qualquer rede de TV. Apenas estou cansando de algumas desinformações, especialmente de quem deveria ser sensato.

sábado, 25 de agosto de 2012

Agonia

     Despertei assustado e engasgado com alguém tirando um enorme tubo da minha garganta. Eram nove e meia da noite e a última coisa de que me lembrava era de que duas horas atrás eu olhara para aquele mesmo relógio.
     — Tá acordado, Aldo? Tá me ouvindo?
     Respondi que sim olhando na direção da voz. Era o médico que me operara, ainda de costas pra mim.
     Caminhando em minha direção disse que a cirurgia foi um sucesso, mais tranquila do que esperava. Fazendo entre dois dedos um sinal de coisa pequena, completou:
     — O corte foi desse tamanho.
     Alguns enfermeiros, enfermeiras e o próprio médico pegaram o lençol sob meu corpo e me transferiram para uma maca. Imediatamente me empurraram por aqueles corredores confusos, com gente indo e vindo, macas estacionadas, cadeiras de rodas não pilotadas, técnicas em enfermagem sorridentes e feéricas lâmpadas fluorescentes.
     Em seguida me deixaram na sala de recuperação, onde começaria um dos meus calvários. Essa rotina eu já conhecia. Havia feito, antes, duas cirurgias de hérnia inguinal e uma de Rizartrose do polegar esquerdo. Numa das cirurgias de hérnia, no entanto, sofri uma anestesia raquidiana (ou peridural, sei lá!), que é aquela em que o corpo fica anestesiado do peito para baixo. Quando despertei da cirurgia, não sentia minhas pernas. Foi horrível. Além do mais, a técnica em enfermagem que me acompanhou na recuperação me perguntava a toda hora se eu queria fazer xixi. Por que ela queria saber isso é o que eu queria saber. Então ela me disse que se eu não fizesse xixi não poderia ir para o quarto e, além disso, teriam que me enfiar uma sonda “peru” adentro para esvaziar a bexiga. Ah! Pedi um papagaio e urinei na hora!
     Pois bem, desta vez a anestesia também tinha sido raquidiana (ou peridural, sei lá!). Assim sendo, morria de medo de não sentir vontade de mijar e ter que ser “sondado” pelo “pinto” (a essa altura já nem era mais peru). Eis que, porém, ao conseguir movimentar minhas pernas, percebi um caninho sob uma delas. Levantei o lençol, espichei o pescoço e lá estava uma sonda devidamente enfiada na minha uretra. Maravilha! Fizeram isso enquanto eu estava anestesiado. Uma agonia a menos.
     Na sala de recuperação, rodeado de outros infortunados ou desafortunados, alguns gemendo, alguns roncando, estava eu, nem gemendo nem roncando, mas acordado, começando a sentir dor e amarrado por fios e tubos a um monitor e a um litro de soro. De vez em quando vinha um técnico em enfermagem, anotava meus sinais vitais, aplicava algum medicamento e sumia. Meus olhos vasculhavam a sala tentando adivinhar quantos pacientes estariam ali. O sono não chegava. O tempo não passava. Cada vez mais a boca secava.
     De vez em quando me surpreendia despertando. Era apenas um cochilo daquele torpor anestésico, mas logo caía dos braços de Morfeu. Os tubos de soro, as lâmpadas, os monitores dos sinais vitais e tudo que pertencia àquele ambiente se misturava formando um quebra-cabeça que eu tinha que resolver durante as cochiladas. E assim fui até o amanhecer, ainda na sala de recuperação. O quebra-cabeça não fora resolvido.
     Fiquei sabendo que não havia leito no hospital. Por isso eu e outros em melhores condições permanecíamos ali. Até quando.
     No meu abdômen havia uma batalha. E do tempo da II Guerra, pois os aviões que iam de um lado a outro eram com motores aspirados. Do lado esquerdo, alguns canhões antiaéreos Flak 36 da Luftwaffe, respondiam efusivamente ao ataque dos P-51 Mustang norte-americanos; do lado direito, granadas explodiam dentro de trincheiras. E os gases que se formavam com essa batalha ficavam todos dentro de mim...
     Tenho certeza de que as visitas da minha mulher e de meus filhos, na sexta-feira bem cedinho, me fizeram sorrir um pouco. Mas foi tudo muito rápido e mais um longo, muito longo dia começava. À noitinha, conforme o protocolo, eles puderam voltar pra me olhar. Para que o tempo passasse, eu ficava tentando imaginar como seria uma cirurgia dessas. Aliás, eu nem disse que cirurgia foi!
     Através de um exame de rotina (colonoscopia), foi verificada a presença de uma neoplasia em determinada área do cólon. Essa neoplasia leva o nome de adenoma, que pode ser de baixo ou de alto grau. Retirado material para exame, ficou constatado que o adenoma era de alto grau, necessitando, então, ser retirado. A cirurgia para extirpar o adenoma chama-se colectomia parcial ou hemicolectomia, que é a remoção parcial (metade ou menos), do intestino grosso (cólon). A colectomia parcial é realizada através de uma grande incisão na parede abdominal. A área afetada do intestino é removida e é efetuada a ligação das duas terminações restantes através de um grampeador que usa grampos de titânio. No meu caso foi retirado um pedaço de 22 cm do intestino grosso e o local da incisão é uma ferida com cerca de 15 cm de extensão na zona abdominal (e o médico havia feito o sinal afastando dois dedos a uma distância de mais ou menos uns 8 cm). O material retirado seguiu para a patologia a fim de verificar se seria ou não de um adenocarcinoma (câncer). Pois bem, estou com 15 pontos bem espaçados num corte vertical na linha do umbigo.
     Sugiro que o leitor retome a leitura a partir do 8º parágrafo: “Na sala de recuperação, rodeado de outros infortunados ou desafortunados (.../...)” e vá até o 13º, onde se lê “Mas foi tudo muito rápido e mais um longo, muito longo dia começava”. Acrescente-se a essa sexta-feira um pouco mais de dor, de outras batalhas, agora também navais, de delírios com quebra-cabeças e de tentativas de adivinhar quando terminaria aquela agonia. Nem água eu podia beber. Ganhava uns flaconetes de 10ml para molhar a boca.
     A sexta-feira acabou nos calendários. Na minha vida não. Foram as 24 horas mas demoradas da minha vida. Depois de nova visita dos familiares, continuava acordado. Pedi um remédio pra dormir e fui atendido: deram-me meio comprimido de alguma coisa. Com essa dose consegui suportar um pouco melhor a madrugada. Ganhei mais tempo pra tentar resolver os quebra-cabeças durante os cochilos. Mas não os resolvi.
     Pra saber como foi a noite de sexta pra sábado sugiro ao leitor retomar a leitura a partir do 8º parágrafo: “Na sala de recuperação, rodeado de outros infortunados ou desafortunados (.../...)” e vá até o 13º, onde se lê “Mas foi tudo muito rápido e mais um longo, muito longo dia começava”.
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     Amanheceu o sábado e lá estavam minha mulher e meus filhos, que só podiam me olhar, sorrir, dar um apoio, dizer que estavam me esperando e que era pra eu ter força. Meus colegas de sala de recuperação iam aos poucos sendo levados para os quartos, enquanto eu continuava ali, vendo e ouvindo chegarem pacientes estropiados, sem alguma parte interna do corpo. Oh, como gemem esses coitados! Seria soldados das batalhas travadas dentro de mim?
     De repente uma notícia: uma alegre técnica em enfermagem me pergunta se quero ir para um quarto. Acho que sorri e ela entendeu como um sim. Pouco mais de meia hora depois, por volta do meio-dia, estava passeando de elevador, descendo do 6º para o 4º andar, em meio a profissionais da saúde falando sobre a burocracia do trabalho. Só o fato de me livrar da sala de recuperação me fez ignorar aquele blábláblá.
     Foi meio que um sufoco sair da maca que levou até o quarto para a cama hospitalar. Tive que fazê-lo sozinho. A última vez que havia me movimentado por minha conta fora na quinta feira, quando caminhei da sala de espera do centro cirúrgico para a mesa da cirurgia. Mas, enfim, estava no quarto, teria companhia, televisor, comida. Não foi, contudo, bem o que me trouxeram, e sim uma sopinha ralinha e sem gosto, da qual tomei algumas colheradas. E também pude tomar um pouco mais de água. Aliás, eu nem estava com fome, só com vontade de sentir um gostinho bom na boca que, com certeza, não foi aquele. À tarde veio uma gelatina gostosinha e, à noite, batatas, arroz e strogonoff de frango bem desfiado. Confesso que não me atirei naquilo, apenas provei e deixei de lado, pois já começava a sentir uma certa náusea, azia e um desconforto muito grande em todo abdômen.
     Quando fiquei sozinho, não podia nem engolir a saliva, porque voltava em forma de queimação. Chamei o técnico em enfermagem que estava de plantão e pedi um remédio para azia. Ele disse que não tinha nada nesse sentido prescrito no meu prontuário, mas que falaria com a enfermeira para que essa entrasse em contato com o médico. Entendi que era uma forma elegante de me dizer “te fode, meu”. Cada vez que ele entrava no quarto, por um motivo ou outro, eu pedia, implorava e suplicava até que no meio da madrugada me trouxe um copinho com hidróxido de alumínio. De nada adiantou.
     Passei toda a madrugada de sábado pra domingo muito mal, sem poder nem engolir. Veio a manhã, veio Clarinha, meu anjo da guarda, veio um vômito e veio o médico. Queixei-me com ele sobre o que sentia. Disse que era normal, uma vez que o intestino estava paralisado, mas produzindo líquido que, por não ter por onde sair e devido à distensão pós-operatória, subia para o estômago. Resolveu esperar um pouco mais pra ver se as coisas se moveriam normalmente. Não se moveram. No meio da tarde, bem na hora do jogo do Grêmio, uma enfermeira entrou no quarto dizendo que teria que colocar uma sonda até meu estômago para que o líquido que lá estava saísse. Imaginei que seria uma coisa muito desagradável, mas, enfim...
     — Encoste o queixo no peito, respire fundo e, quando sentir o tubo na garganta não vomite, engula. Vou passar um anestésico para o senhor não sentir dor. Pronto: falou em dor me caguei todo! E começou o suplício. Agarrei-me com todas as forças na mão da Clarinha, que estava ao meu lado ajudando a me manter com o queixo encostado ao peito. Aquela mangueira entrava estuprando minha narina direita, fazendo um barulho com se estivesse rasgando a carne esponjosa do meu nariz. Eu tinha certeza de que meus olhos saltariam da cara; minha cabeça estava prestes a explodir numa dor quente, muito quente...
     — Engole! Engole! Engole pra não ir pro lado errado!
     Pela primeira vez eu gritava e gemia em um hospital, sem vergonha de quem ali estivesse. A cada engolida uma náusea. A enfermeira berrava que não era pra eu vomitar. Até que a ouvi dizer entre parênteses para sua auxiliar: — Acho que foi para o lado errado... E, mais calma, disse pra mim que ia fazer um teste pra ver se estava no lugar certo. E estava. A terrível dor daquele procedimento invasivo passou milagrosamente, ficando só uma sensação de que eu tinha espirrado pra dentro e um incômodo na glote ao engolir. Quando tudo estava quase terminando, chegou o médico, que ajudou a terminar o processo, fazendo uma aspiração daquele líquido que crescia em mim feito um alien. Saiu quase um litro de um suco preto e, enquanto saía, eu sentia meu abdômen desinchar. O Grêmio fazia o segundo gol, virando o jogo.
     O domingo praticamente acabara ali. Durante a madrugada consegui dormir melhor, mas sempre ancorado num remedinho. O ruim, agora, era quando tinha que ir ao banheiro: no braço esquerdo tinha o soro; na narina direita e dirigida para o lado direito a sonda, que terminava dentro de um pote. Precisava sempre pedir ajuda. Ainda bem que Clarinha não saiu do meu lado.
     Fiquei toda segunda-feira com aquele apêndice no nariz (aliás, meu nariz é o próprio apêndice). De vez em quando faziam um procedimento de aspiração e muito líquido saía, aliviando-me. A sonda só foi tirada na quarta-feira de manhã, bem cedinho, pelo próprio médico, que antes das 7h30 já estava no hospital pra me ver. Uma última aspirada constatou que já não havia mais líquido no estômago além do normal.
     Passei a me alimentar devagarzinho, comendo uma gelatina, tomando um suco, um chá. Ainda tomava soro porque precisava equilibrar a função renal, que tinha ido pro saco. Aos pouquinhos fui me recuperando e na sexta-feira, sete dias e meio depois da cirurgia, fui pra casa.
     Ainda faltava o resultado da biópsia do adenoma. E a notícia veio por telefone, na noite de quinta-feira, dada pelo próprio Dr. Cláudio Tarta, meu cirurgião salvador, que me visitava duas vezes por dia enquanto estive internado: o tumor era B E N I G N O! Essa notícia só poderia ter sido dada por ele, a quem devo todo o reconhecimento e gratidão do mundo.
     Ainda me recupero. Acho que vai demorar uns dias mais. Estou louco pra voltar pra bateria, pra tomar uma gelada, pra almoçar fora e, principalmente, pra fazer amor!
     Pra isso espero pela sua alta, Dr. Cláudio. Menos, é óbvio, pra fazer amor, porque isso faço com a Clarinha!


domingo, 15 de julho de 2012

A memória, o ronco do motor e o cheiro de combustível

     A memória da gente — que é a capacidade de adquirir, armazenar e recuperar informações disponíveis no cérebro — é algo fantástico. Não sei se é a idade, mas, seguidamente, no meio da tarde não consigo me lembrar do que comi no café da manhã. Depois de um tempo, porém, lembro-me de que não comi nada no café da manhã, porque desde guri tenho o hábito de só tomar uma xícara de café com leite (salvo quando estou em hotéis ou pousadas que oferecem café da manhã).
     Grosso modo, a memória classifica-se em declarativa e de procedimentos. A primeira refere-se à capacidade de verbalizar um fato; a segunda, à retenção e processamento de informações que não podem ser verbalizadas, como tocar um instrumento ou andar de bicicleta. A memória declarativa, por sua vez, classifica-se em memória imediata (a que dura de frações a poucos segundos); de curto prazo (a que tem duração de alguns segundos ou minutos); e de longo prazo (com duração de dias, meses e anos).
     Considero preocupante isso de esquecer o que comi no café da manhã e, pior, de que nada comi — fato que faz parte da memória de curto prazo — porque é um sintoma da primeira fase do Mal de Alzheimer. Fico frio e vou empurrando com a barriga porque ainda há a segunda, a terceira e a quarta fases.
     Ainda sobre memória. As que incluem lembrança de odores têm tendência para serem mais intensas e emocionalmente mais fortes. Um odor que tenha sido encontrado só uma vez na vida pode ficar associado a uma única experiência e, então, a memória pode ser evocada automaticamente quando voltamos a reencontrar esse odor.
     Enfim, todo esse nariz de cera (em jornalismo, parágrafo introdutório que retarda a abordagem do assunto enfocado e tende à prolixidade) era pra me dar a chance de lembrar sobre o que eu queria falar. Eu sabia que era alguma coisa sobre memória, mas não me lembrava o quê (e isso que nem costumo fumar baseados — ou, quem sabe, nem me lembre disso).
     Pois bem, estava eu fazendo alguma coisa que não me lembro o que era quando ouvi o ronco grave do motor de um caminhão e, em seguida, senti o cheiro do combustível que ele queimou ao passar na minha rua. Não era o odor característico do diesel de hoje em dia, que invade nosso sistema respiratório acompanhado daquela fumaça escura que nos sufoca, mas sim um cheiro que me levou de volta a um período mais ou menos entre a metade da década de 50 e a metade da de 60, em Caxias do Sul.
     Minha mãe era daquela cidade. Desde que me lembro, íamos para lá nas minhas férias de inverno e de verão, onde moravam meu avô, três tios, duas tias e um monte de primos e primas. A casa de meu avô — que também era meu padrinho —, na qual também vivia minha madrinha, única irmã solteira da minha mãe, ficava na Rua Júlio de Castilhos, a principal da cidade. Era uma típica casa de imigrantes italianos da região serrana do Estado (pena eu não ter ficado com nenhuma fotografia dela). Era um sobrado de madeira, pintado de verde, ocupando a frente de um terreno enorme com declive para os fundos. A porta frontal abria diretamente pra calçada. Quem o olhava de frente via, na parte de baixo, da esquerda para a direita, uma janela e uma porta e uma porta e uma janela. O primeiro conjunto, apesar de ser integrado à casa, era alugado para, se não me falha a memória, um alfaiate; a outra porta era a entrada principal da casa, que compunha com a janela uma peça interna com mais ou menos 20 m². Acima havia quatro janelas, que pertenciam aos quartos da frente. Mais acima, bem no meio, uma janela menor, que era do misterioso sótão.

casa caxias

A casa, tal como está na minha memória

     Por dentro era enorme. A sala de entrada era o escritório do meu avô. Não sei exatamente qual o cargo dele, mas tinha algo a ver com a Sociedade Caxiense de Auxílio aos Necessitados. Ele era responsável pela distribuição aos beneficiários de uma espécie de cesta básica. Uma vez por mês formava-se uma grande fila na rua e meu avô, da janela do escritório, entregava os pacotes aos necessitados.
     Nessa sala ainda havia uma porta lacrada que dava para a peça alugada. Imagino que quando toda a família morava naquela casa, a peça não era alugada e tinha alguma serventia. Afinal, além do casal eram cinco meninos e cinco meninas.
     Na parte de baixo, após a sala da entrada havia outra maior ainda, com uma grande mesa ao centro, porque era a sala de jantar (principalmente almoçar) em ocasiões especiais ou quando havia muita gente na casa. Na parede da direita viam-se algumas fotografias de meus avós e da família reunida e um carrilhão que soava maravilhosamente. Ao fundo, duas grandes janelas com vista para parte do quintal da casa. Do lado oposto às janelas tinha uma despensa onde eram guardados gêneros alimentícios e utensílios domésticos, além da escada que subia para os quartos. À esquerda, três portas: uma era a do quarto de meu avô, que ficava ali devido à dificuldade de uma pessoa com a idade dele ficar subindo as escadas; outra, de uma peça, digamos, auxiliar da cozinha, onde minha tia preparava, por exemplo, massa; a terceira, levava ao banheiro, à copa e à cozinha. Muito estranho: uma casa daquele tamanho com um só banheiro e, ainda por cima, com a porta abrindo diretamente para a copa, onde comumente fazíamos as refeições! A cozinha era bem grande, com direito a fogão a lenha.
     Subindo a escada em “L” chegava-se aos quartos. Nem me lembro quantos, mas eram vários. Os da esquerda davam para a rua; os da direita, para os fundos da casa. Em um deles havia uma escada que levava ao misterioso sótão. A peça ocupava toda a extensão do sobrado: da frente aos fundos e de um lado a outro. Nele havia milhares de bugigangas de toda espécie guardadas em caixas, malas e baús; havia alguns móveis velhos, cabides com chapéus empoeirados, enfim, coisas e mais coisas sabe se lá pra quê!
    Eu gostava de ficar na janelinha do sótão que dava para a rua. As pessoas pareciam pequeninas lá embaixo. Com minha irmã aprendi uma arte: ela fazia dezenas de bolinhas de papel que deixava cair, uma a uma, na cabeça das pessoas que passavam na rua. Quando acertava a cabeça de alguém, tirava o corpo da janela e ficava rindo.
     Nos fundos da casa havia uma fábrica, uma construção de alvenaria. Não sei exatamente o que fabricavam e nem qual era a relação daquilo tudo com meu avô. Nunca me preocupei em saber. Havia coisas mais interessantes naquele quintal, como a oficina do meu avô, cheia de ferramentas, o poço com água limpíssima e geladinha, que eu gostava de recolher a pedido da minha tia e o porão úmido, que seriva de esconderijo nas brincadeiras com meus primos e primas.
     Então o leitor deve estar se perguntando: mas o que é que o ronco do motor e o cheiro do combustível do caminhão têm a ver com tudo isso?galiotto
     Então eu respondo. Viam-se muitos caminhões em Caxias, naquela época. Indústrias, lojas, escritórios e residências concentravam-se na cidade. As empresas de transporte ficavam próximas a tudo. Não havia restrições e os caminhões circulavam por todas as ruas. Eu tinha um tio, casado com uma irmã da minha mãe, que dirigia um GMC enorme, transportando vinho. Pois bem, eu dormia num dos quartos da frente. Como era uma rua muito movimentada, despertava cedo, com o barulho da cidade que também acordava. Hoje em dia, sabendo como funciona uma máquina fotográfica, posso dizer que me sentia no interior de uma delas. As frestas dos tampos das janelas funcionavam como uma lente, que projetava no teto do quarto a imagem de ônibus e caminhões que passavam na rua, iluminados pelo sol nascente. Eu ficava deitado olhando aquele movimento, ouvindo o ronco dos motores e sentindo o cheiro do combustível.
     Logo eu levantava, descia e ia encontrar minha madrinha na cozinha, que me servia café com leite.
     Muita coisa aconteceu naquela época que, hoje, só trago na lembrança e que revivi graças a um simples ronco de motor acompanhado do cheiro de seu combustível. Num momento muitas imagens passaram pela minha cabeça como um filme num DVD em “ff” a uma velocidade de 200X. Quando meu avô morreu e eu já não ia mais a Caxias do Sul a casa foi vendida e, no local, construído um edifício. Todos os meus tios e tias já faleceram. Imagino que alguns dos primos mais velhos também. Por onde andarão os que ainda vivem? Por que perde-se o contato com pessoas que foram tão importantes para nós no passado? E eu não fiquei com nenhuma foto daquela casa, daquele tempo, daquele barulho de motor, daquele cheiro de combustível.
     Hoje, não me lembro do que comi, mas lembrei-me de que há mais de 50 anos tomava café com leite de manhã.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Um anjo chamado Wanda

     Desde pequeno gosto de gatos. Quando criança, sempre tinha um na minha casa. Cresci, casei e continuei tendo gatos. Depois, apesar de continuar gostando deles, passei um longo período sem tê-los, até que, em 1995, meus filhos insistiram pra ter um. Eu já falei aqui sobre isso, em “Uma gata chamada Wanda” (clique aqui pra ler). No texto, entretanto, só falei sobre o dia-a-dia da Wanda, mas não sobre seu lado espiritual, que todos os felinos têm.
     Acredita-se que os gatos têm o poder de, diariamente, remover energia negativa acumulada no nosso corpo. Enquanto dormimos, nosso felino absorve essa energia. Quando dorme, o corpo do gato libera a negatividade que ele removeu de nós. Se há mais do que uma pessoa na família, e apenas um gato, ele pode acumular uma quantidade excessiva de negatividade ao absorver energia de tantas pessoas. Se estivermos excessivamente estressados, ele pode não ter tempo suficiente para liberar tamanha quantidade de energia negativa e, consequentemente, ela se acumula como gordura até que possa liberá-la. Portanto, ele pode se tornar obeso.
     O gato também nos protege durante a noite para que nenhum espírito indesejável entre em nossa casa ou quarto enquanto dormimos. Por isso gosta de dormir na nossa cama. Se perceber que estamos bem, então não dormirá conosco. Se houver algo estranho acontecendo ao nosso redor, ele pulará na nossa cama e nos protegerá. Quando uma pessoa chega a nossa casa e o gato percebe que ela está ali para nos prejudicar ou que é do mal, logo ele nos circundará para nos proteger. Se ele correr para essa pessoa, cheirá-la e quiser ser acariciado por ela, então relaxe.
     Para muitos, o gato ainda é um animal misterioso, quase sagrado, de uma visão além do normal e uma percepção aguçada. Diz-se mesmo que teria poderes paranormais, que saberia muito mais dos segredos da vida do que nós. Quem convive ou conviveu com um gato percebe facilmente que boa parte dessas características parece mesmo ser verdadeira. Os gatos realmente parecem ter uma percepção extrassensorial, uma visão diferenciada, além do normal. Quase sempre dão a impressão de pertencerem a uma esfera superior, a um nível mais elevado de consciência. Os gatos parecem saber exatamente como nos sentimos, mesmo que não externemos nenhuma reação diferente.
     Marta, a mãe dos meus filhos, não era muito simpática à ideia de ter um animalzinho em casa. Quando chegou em casa depois do trabalho, nem percebeu imediatamente a pequena Wanda, recém chegada, sobre a mesa de centro da sala. Cumprimentou-nos, começou a contar coisas da sua manhã e, de repente, surpreendeu-se, não como quem diria em seguida “não quero esse bicho de jeito nenhum”, mas sim como quem se encantava à primeira vista. Depois de prometermos que nós cuidaríamos da Wanda, aceitou passar a conviver com um gato, no caso uma gata, fosse por quanto tempo fosse.
     E assim conviveram durante anos. Um dia Marta adoeceu. Doença grave. E Wanda sentiu isso. Passava os dias deitada num “puf” de uma poltrona onde Marta acomodava os pés. À noite, ia para seu quarto, que era a dependência de empregada do apartamento, pois nunca lhe fora permitido dormir na sala ou nos quartos.
     Muitas vezes observei as duas olhando-se atentamente. Às vezes, Marta dizia à Wanda: se sorrires faço o que quiseres (claro que ela não falava como escrevi aqui). A Wanda não sorria, pois não é de sua natureza, mas acho que entendia o que Marta queria.
     Marta passou seus últimos dias no hospital. Eu estava longe. Numa noite, estava sentado no sofá vendo TV, e, de repente, sem mais nem menos, a Wanda veio em minha direção e sentou-se ao meu lado, bem junto ao meu corpo, coisa que nunca fazia. Não demorou cinco minutos e veio uma ligação dizendo que Marta partira. Seria coincidência?
     Na outra casa em que fui morar, permitimos que Wanda dormisse na cama. E ela levou a sério. Fazia isso diariamente, ou melhor, noturnamente. Às vezes, durante a madrugada, especialmente no verão, ia pra outro canto. Nos seus últimos dias nem saía mais da cama. Recolheu-se em silêncio, quase não comia e mal caminhava. Também partiu, ontem, dia 05 de junho de 2012. Viveu 17 anos, seis meses e quatro dias. Agora é um anjo chamado Wanda.

um anjo chamado wanda
     “O gato imortal existe, em algum mundo intermediário entre a vida e a morte, observando e esperando, passivo até o momento em que o espírito humano se torna livre. Então, ele irá liderar a alma até seu repouso final” (HAUSMAN, Gerald & Loretta. The Mythology of Cats: Feline Legend and Lore Through the Ages. St. Martin's Press, 1st ed, 1998.)

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Fontes:
http://vidaespiritualidade.wordpress.com/2010/05/25/gatos-e-os-beneficios-espirituais/
http://igorbatatinha.blogspot.com.br/2011/04/gato-e-espiritualidade.html

sexta-feira, 25 de maio de 2012

QUIPROQUÓ COM COBRA CRIADA

     Há 15 anos, em maio/junho de 1997, tive um quiproquó com um colunista da Zero Hora. Antes de dizer com quem e sobre o que foi, permitam-me explicar o que é quiproquó.
     De acordo como dicionário Houaiss, quiproquó é um substantivo masculino que significa: 1. (Rubrica: história da medicina) - livro que existia nas farmácias para indicar as substâncias que deveriam substituir as receitadas pelo médico, caso a farmácia não as possuísse; 2. (Derivação: por extensão de sentido) - engano, erro que consiste em se tomar uma coisa por outra; equívoco; 3. (Derivação: por metonímia) - a confusão criada por esse engano.
     A palavra deriva da expressão latina Quid pro quo, que significa “tomar uma coisa por outra”. E foi neste sentido que o assunto se (des)enrolou.
     Quanto ao colunista, trata-se do mega-adjetivável Paulo Megalômano Sant’Anna. Eu de um lado; ele de outro; e um redator babaca no meio, causador do quiproquó.
     Eis os fatos.
     Em sua coluna na edição de ZH do dia 27 de maio de 1997, Sant’Anna escreveu que um repórter de uma emissora de rádio do interior era um dos “dois únicos” radialistas gaúchos que “pronuncia” a palavra necropsia corretamente. Percebi três coisas estranhas na frase: além da questão da concordância, penso não existirem “dois” únicos e sei que ambas as formas (necropsia e necrópsia) são correntes e corretas. Resolvi, então, escrever para a seção SOBRE ZH, que nem sei se ainda existe, corrigindo o colunista sabe-tudo.
     Começou o quiproquó. Claro que as correspondências encaminhadas a um veículo passam por alguém (seria um jornalista?) que, depois de selecionar as que serão publicadas, edita-as. E a pessoa em questão fez o maior estrago, invertendo a ordem dos fatores e alterando o produto. O meu e-mail saiu assim publicado no dia 10 de junho:

     Paula Sant’Anna disse (ZH de 27 de maio) que determinado repórter de uma emissora de Passo Fundo é um dos “dois únicos” radialistas gaúchos que “pronuncia” a palavra necropsia corretamente. Em primeiro lugar, não identificou quem é o outro radialista. Em segundo, não existem “dois únicos” (assim como não há três metades). Em terceiro (o erro mais grave), Sant’Anna escreveu que o tal radialista é um dos que “pronunciam” e não um dos que “pronuncia”. Se o rádio ensina o povo a falar, o jornal ensina-o a escrever*. A concordância é obrigatória no jornal.

(*na sua crônica, Sant’Anna falara sobre a importância de um radialista falar corretamente, porque, segundo ele, o rádio ensina o povo a falar)

     Deu merda. Ao editar meu texto, o cara (devia ser um estagiário) inverteu a ordem das palavras pronuncia e pronunciam. Originalmente eu dissera que “... Sant’Anna escreveu que o tal radialista é um dos que ‘pronuncia’ e não um dos que ‘pronunciam’”.
    
Não deu outra. Virei o assunto da coluna do Sant’Anna dias depois de o meu e-mail ter sido publicado. No dia 14 de junho ele veio com isso:

Três metades e dois únicos

     Não ia responder à carta enviada pelo leitor Aldo Luiz Jung à interessante seção Sobre ZH, em boa hora implantada no nosso jornal, publicada no dia 10 de junho corrente. Mas uma outra carta de uma leitora, Marlise Cardoso, indignada com a clamorosa injustiça de que fui vítima, impeliu-me a bradar contra o despropósito.
     De uma crônica em que eu elogiava um radialista por falar corretamente o português, o senhor Jung pinçou o que ele julgava fossem dois erros meus. Levantou-se contra a minha expressão dois únicos radialistas, dizendo que “único é um só”. Se único fosse sempre um só, meu caro senhor Jung, não se poderia levar a palavra para o plural. Qualquer pessoa ou coisa ou circunstância que seja somente a uma outra, será também única, por diferenciarem-se ambas dos demais. Desculpe, senhor Jung, mas o senhor se quebrou.
    
Mas para pior mal ainda do senhor Jung, ele asseverou que não existem "dois únicos", assim como não podem existir "três metades". Pois eu quero arrasar o senhor Jung dizendo a ele que ainda anteontem eu cortei três laranjas pela metade, chupei três metades e minha filha chupou as outras três metades. Viu, senhor Jung, como uma laranja e meia podem ser ao mesmo tempo três metades? Eu não posso entender como é que o senhor não saca coisa assim tão primária?
    
Finalmente, para culminar o momento azarado que o senhor Jung escolheu para meter o pau no meu português pela sua carta, ele incorreu numa terceira mancada: classificou de completamente errada a minha expressão "um dos que pronunciam corretamente a palavra necropsia", afirmando que o correto é "um dos que pronuncia". No entanto, se tivesse escolhido qualquer das duas formas, não caberia ao senhor Jung corrigir-me.
    
Lamentável, senhor Jung. Não era seu dia. Os professores Hildebrando A. de André (Gramática Ilustrada) e Nélson Custódio de Oliveira (Português ao Alcance de Todos) afirmam em suas obras que, quando o sujeito estiver representado pela expressão "um dos que", o verbo vai para o singular ou para o plural, como quiser quem escreve. E o nosso professor de português aqui da casa. Adalberto J. Káspary, define que o mais aconselhável é usar no plural, embora esteja também certo o singular ("Sou um dos que mais anima” ou "Sou um dos que mais animam", ambos corretos, Mr. Jung).
    
Depois desta goleada de três a zero, quero dizer ao senhor Jung que esta minha vitória estrondosa sobre ele não tem nenhum mérito: é um triunfo do profissional sobre o amador. Eu lido profissionalmente com a língua pátria há decênios e o senhor Jung deve ser uma criança que ainda está se alfabetizando.
    
Mas a julgar pelo seu elogiável interesse gramatical, o senhor Jung tem enormes possibilidades de dominar o léxico na maturidade. Só lhe dou um conselho: outra vez que for terçar armas sobre português, escolha como adversário um iniciante como o senhor. Não se volte contra ninguém como eu, que já sou cobra criada na matéria: dispute nas divisões inferiores primeiro, como o Guga Kuerten humildemente fez, depois pode ser que o senhor tenha chance de desafiar a nós, os 20 primeiros do ranking.

     Ao que, sem mais, respondi-lhe:

     Por favor, imprimam este e-mail e entreguem aos cuidados de Paulo Sant'ana, mas sem intermediação de um “copydesk”.

     “‘Errar’ é humano...
     Mas ninguém gosta de comprovar sua natureza humana por esse caminho. Nem mesmo quando o erro é de Português. Vem sempre uma frustraçãozinha danada se a gente erra, mesmo sabendo que se comunicou.”
(OLIVEIRA. Edison de. Todo Mundo Tem Dúvida, Inclusive Você. Porto Alegre: Gráfica e Ed. Do Professor Gaúcho. 186p.)

     Prezado profissional

     Vamos por partes, como dizia o esquartejador.

Único. [Do lat. Unicu.] Adj. 1. Que é um só. 2. De cuja espécie não existe outro. 3.
Exclusivo; excepcional. 4. A que nada é comparável. 5. Superior a todos os demais.
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira).

ÚNICO, adj. Um; que é só no seu gênero ou espécie, que não tem outro igual a si; singular, que não tem par, desacompanhado de outro.
(Caldas Aulete).

     Nas circunstâncias desses verbetes, não me quebrei, meu caro e único profissional. Apoiado por dois laterais do quilate de Aurélio e Caldas, gol do meu time: 1 X 0.

Metade. [Do lat. Medietate, ] S. f. 1. Cada uma das duas partes iguais em que se divide um todo: metade de uma laranja; a metade do caminho...
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira).

METADE, s. f. cada urna das duas partes que resultam de um todo dividido exatamente pelo meio...
(Caldas Aulete).

     Compreendo teu jogo. O teu todo é formado de três laranjas, ao passo que o meu universo é de uma só laranja. A metade do teu todo, por óbvio, são três metades de três laranjas; a do meu, apenas duas, mas de uma só laranja — justamente aquela a que me referi na carta.
     Entendo, também, a tua confusão no assunto: não deves ter estudado a tal de matemá­tica moderna ou a teoria dos conjuntos, dos universos, tampouco deves ter ajudado tua filha (não sei a idade dela ou se tens outros filhos) a fazer os temas dessa matéria. De mais a mais, isto é uma coisa tão primária, nossos filhos a estudaram no primeiro grau. Quando nós fizemos o primário, que é como se chamava naquele tempo uma parte do atual primeiro grau, nem se estudava isso.
     Acho que a tua tática não me derrubou. Tentaste fazer uma linha de impedimento, mas teu zagueiro foi menos eficiente que meu atacante: 2 X 0.
     Por fim, caro Sant'ana, devo explicar que minha carta foi muito mal “copidescada” por um dos profissionais que fazem isto em ZH. Não deves lembrar o texto exato da tua crônica, caso contrário terias percebido a confusão que o
copydesk criou. Na verdade, disseste na crô­nica “um dos dois únicos que pronuncia”; eu rebati dizendo que deveria ser “um dos dois úni­cos que pronunciam”. Só que o profissional que redigitou o meu e-mail escreveu exatamente o contrário, ou seja, que tu terias dito “pronunciam” e eu, “pronuncia”. Viste que confusão o teu, ou melhor, o profissional de ZH criou? E quando digo que não lembras do teu texto falo com propriedade. Na tua réplica publicada sábado, dia 14, dizes assim: “...classificou de completamente errada a minha expressão ‘um dos que pronunciam corretamente a palavra necropsia’, afirmando que o correto...”. Saliento: a expressão que usaste foi: “um dos que pronuncia corretamente a palavra necropsia”.
     Vou anexar a esta carta o meu e-mail original e o que saiu publicado. Procure ler a tua crônica de 27 de maio.
     A propósito deste assunto, do mesmo livro do Édison de Oliveira do qual copiei a cita­ção do começo desta carta, extraí o seguinte:

     “É APENAS UM, MAS LEVA O VERBO PARA O PLURAL

     A expressão ‘um dos que...’ significa ‘um dentre os quais’. Assim, quando dizemos, por exemplo, ‘Um dos fatores que mais nos prejudicam é a presunção’ o sentido é: ‘Um dentre os fatores que mais nos prejudicam é a presunção’. Por isso é que o verbo (neste caso ‘prejudicar’) pode ir para o plural. Ele concorda com o termo ‘quais’ (plural) e não com o termo ‘um’ (singular)”
(OLIVEIRA. Edison de. Todo Mundo Tem Dúvida, Inclusive Você. P.145)

     Para não deixar assim, pesquisei também em Gramática, de Faraco & Moura (13ª edi­ção, 1994, p. 402), e verifiquei que ambas as formas são aceitas. Dizem eles que numa oração principal onde aparece a expressão “um dos”, seguida ou não de substantivo, mais “que”, o verbo vai para a 3ª pessoa do plural ou fica na 3ª pessoa do singular. Exemplo:
     O professor C. V. é um dos que estão deixando o seu secretariado. O professor C. V. é um dos que está deixando o seu secretariado.
     Mas, como diz Adalberto J. Káspary, o mais aconselhável é usar no plural (como eu disse que era o correto), embora seja também certo o singular (como tu o escreveste na crôni­ca).
     Nesta eu me quebrei: achei que o gol tinha sido válido, mas me pegaram em impedimento e o anularam. Portanto, continua 2
X 0.
    
A par dessas questões técnicas, tens razão, Sant'ana, em classificar como elogiável o meu interesse gramatical. Foi só o que me moveu ao ousar criticar a tua correção. Contudo esqueci a quem estava criticando e cutuquei (o verbo é “cutucar” e não “cotucar’, como afir­maste em Sala de Redação outro dia) a fera com vara curta e te coloquei no mesmo nível de outros profissionais desse jornal, como os
copydesks que tentam resumir as cartas que rece­bem dos leitores e, cortando frases e termos, confundem tudo. Eu não soube ser “humilde” como o Guga e como tu, que humildemente te classificas como “cobra criada”, “profissional que lida há decênios com a língua pátria”, “um dos 20 primeiros do ranking”. Realmente essa tua humildade me comove: tu és único; não há ninguém como tu; dessa espécie não existe outro, és um só; nada e ninguém se compara a ti; és superior a todos os demais; e, assim mesmo, continuas humilde.
     Quanto ao meu amadorismo e o teu profissionalismo tenho a dizer que é muito fácil ser profissional em 60cm/coluna (ou 390cm2) e em corpo 12, ao mesmo tempo em que é muito difícil ser amador em 6cm/coluna (ou 39 cm2) e em corpo 9.
     Devo salientar que para criança já não sirvo: confesso que tenho 47 anos. Para amador tampouco: eu já era maduro quando, em 1978, me formei em jornalismo. Depois disso, já fui redator e editor de duas das melhores rádios de Porto Alegre, uma delas a tua Gaúcha. Sabes por que desisti da profissão? Porque percebi que jamais haveria lugar para dois únicos Paulos Sant'anas: seria eu ou tu. Foste tu. Uma das metades venceu.
     Temos, porém, algumas coisas em comum: além de sermos gremistas e de fumarmos muito, consegui aparecer na coluna inteira de um dos 20 primeiros do ranking e num sábado.

Até o próximo jogo. Cordiais saudações.

Aldo Luiz Jung

     Não sei se ele chegou a receber este e-mail. Sei, contudo, que tive apoiadores. Abaixo duas cartas enviadas à coluna SOBRE ZH.

     Como faço diariamente, com prazer, li a crônica de Paulo SantAna do dia 14 de junho ("Três metades e dois únicos") em que ocupa a coluna inteira para replicar a crítica que lhe fez o leitor Aldo Luiz Jung em cin­co linhas, que também li, sobre o emprego e­quivocado de plural sintático. Lamento que Paulo Sant'Ana, um corifeu do jornalismo rio-grandense, reconhecido por todos, tenha se excedido na réplica ao revidar de forma cruel e violenta uma simples critica.
    
Episódios como esse demonstram o po­der discutível da imprensa. Com efeito, Paulo Sant'Ana, um ente insuspeito, utiliza sua coluna diariamente para criticar o que não considera correto, quase sempre com razão. Porém, quando um reles mortal. lei­tor seu. ousa criticá-lo, recebe dele desme­dida e desproporcional critica. Pisaste na bola, meu caro Paulo Sant'Ana, a humilda-de no sucesso continua sendo o corolário da grandeza.

Paulo Fernando Martins
Advogado, Novo Hamburgo (RS)

 

     O Sr. Paulo Sant'Ana rebate (ZH de 14 de junho) a “clamorosa injustiça de que foi vítima” e “brada contra o despropósito” de um leitor. Vejam o que faz a falta de pauta... O Sr. Sant'Ana, que “lida profissionalmente com a língua pátria há decênios”, parece se dar pouco com a ÉTICA. Acho que há muito não tem adversários para destilar seus “triunfos profissionais”: expressões como “pois eu quero arrasar o senhor Jung”, “depois dessa goleada de três a zero” e “nós, os 20 primeiros do ranking” são as de um desportista frustrado. Pelo visto, o senhor “cobra criada” gosta de jogar nas várzeas, golear os Barranco Sport Clubs e achincalhar seus leitores por causa de pequenas esgrimas lexicais. Belo ranking, senhor Sant'Ana!

Roberto Alejandro Wild
Jornalista, Porto Alegre (RS)

     Enfim, sem reler sua crônica original, que motivou o envio de minha primeira carta, o “cobra criada que lida há decênios com a língua pátria” embarcou na babaquice do redator e confirmou que realmente estava enganado quanto à concordância.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Petição

     Tenho recebido emails pedindo que eu assine petições para acabar com o Big Brother Brasil. Petição, como todo mundo sabe, é um pedido a uma autoridade, mais comumente a um funcionário governamental ou entidade pública. No sentido coloquial, uma petição é um documento oficial assinado por vários indivíduos. Uma petição pode ser oral, escrita, e, agora, também através da Internet. A petição nesses termos também é conhecida como abaixo-assinado, documento coletivo, de caráter público ou restrito, que torna manifesta a opinião de grupo e/ou comunidade, ou representa os interesses dos que o assinam.
     Resolvi dar uma olhada em dois sites que disponibilizam o serviço de petições online. Comecei olhando só as que querem o fim do BBB e, até onde tive paciência, encontrei seis abaixo-assinados. Somando as assinaturas dessas seis petições até às dez e meia do dia 28 de janeiro de 2012, encontrei o fantástico número de 30.069! Puxa vida: seja lá pra quem for — Rede Globo, Ministério Público, etc. —, os destinatários, com certeza, ficarão muito sensibilizados com tamanha quantidade de assinaturas. Vão comparar esse número de indignados assinantes com o número de ávidos votantes dos paredões, que chega a muitos milhões e dar risadas.
     Os argumentos para a retirada do programa do ar são, em geral, os mesmos. Pelos textos dos cabeçalhos das petições tem-se uma ideia do nível do autor. Escolhi um deles, cujos signatários asseveram que o Reality Show Big Brother Brasil, DEVE SER RETIRADO DO AR, pois, o mesmo:

1. Divulga e promove desde de (SIC) suas etapas de pré-seleção de seus candidatos e durante sua programação, a ética da exclusão;
2. Promove e privilegia a mulher-objeto, fazendo com que suas participantes femininas sirvam tão somente de objetos de voyeurismo sexual de suas audiências;
3. Incita e dar (SIC) a entender que “pelo jogo” vale tudo, atentando contra todo tipo de ética estabelecida para as boas relações, no que diz respeito as (SIC) conquistas de oponentes;
4. Ajuda a alimentar a alienação da população com a sedução da ilusória participação telefônica;
5. Não ajuda na formação de um povo consciente e cidadão de bons costumes e de boa índole.

Ética da exclusão? Qualquer dia vão querer acabar com os torneios de futebol estilo mata-mata, com o vestibular, com o Exame da OAB (este seria ótimo se acabasse). Mulher-objeto? Ah, então foi o BBB que inventou isso? Quanto aos itens 3, 4 e 5, sem comentários. O pessoal da TFP[1] (Tradição, Família e Propriedade) deve ter adorado.
     Ora, abaixo-assinado pra acabar com um programa da Rede Globo. As pessoas gostam de perder tempo, paciência e pagar mico. Eu tenho uma solução pra acabar com o BBB. Preste atenção: se você estiver assistindo à Globo, assim que terminar a novela das 21 hclip_image002oras estique-se um pouco, pegue o controle remoto que está sobre a mesa de centro da sala e escolha outro canal de televisão qualquer. Se for assinante de alguma TV a cabo ou satélite — ou seja lá o que for —, você terá dezenas de canais pra escolher. Na pior das hipóteses, você terá a Record, a Rede TV, o SBT, a Educativa (Cultura) e a Band pra assistir, pelo menos pela próxima hora. Se quiser ser mais radical, no entanto, desligue o aparelho de TV e vá fazer amor com seu parceiro ou parceira.
     Quanto aos abaixo-assinados em geral, achei umas pérolas nos sites que oferecem o serviço de petições online. Veja alguns.

Quero RETIRAR minha assinatura do Projeto do Bem-estar Animal do Deputado Tripoli

Eu abaixo assinado quero RETIRAR o meu apoio e assinatura anteriormente conferidos, por engano e inadvertidamente, ao projeto do “bem-estar” animal do Deputado Tripoli.
NÃO concordo com as cláusulas que permitem a eutanásia de animais e o não-tratamento de animais considerados “muitos doentes”.
Considero que caí numa armadilha.
Feito o contato com a WSPA, que recolhe as assinaturas da referida pétição, fui informado de que a entidade não sabe como devo proceder.
Sendo assim, EXIJO, através da atual petição, que seja considerada NULA e RETIRADA a assinatura anteriormente dada ao referido projeto.

118 pessoas assinaram isso.

O serviço de transporte já está melhorando (Será???)

Bem, na minha opinião, os preços das passagens do transporte público em PE são absurdamente altos. Essa constatação só aumenta quando correlacionamos esses preços a qualidade dos serviços prestados pelas empresas.
Ontem - 1° dia da prática dos novos preços - já percebi a diferença na prestação do serviço (Será????):
1 - O ônibus da linha Igarassu / Sítio Histórico, que peguei pra ir ao trabalho, quebrou duas paradas após eu ter subido nele.
Resultado: tivemos (eu e todos os demais passageiros) que esperar na chuva para entrar num Igarassu / BR 101 lotado. (23/01/12 às 13:50)
2 - No ônibus Paulista / Lot. Bonfim, que saiu do Pelópidas Silveira às 22:40, que peguei na volta para casa, não tinha o sinalizador de parada.
Resultado: o motorista queimou minha parada, mesmo eu tendo sinalizado, e ainda fica soltando piada junto com o motorista. (23/01/12 às 23:00)
Isso é que é Brasil! Isso é Pernambuco!

As duas pessoas que assinaram isso nem estão pedindo, estão perguntando.

E outros:

Suspenssão (SIC) do trio elétrico no horario (SIC) da missa aos Domingos

Conscientização dos motoristas contra o desrepeito (SIC) ao pedestre e ciclista em Belo Horizonte.

Queremos A Banda Mais Bonita da Cidade no Programa Altas Horas

Contra o visto da Mercenária Cubana Yoni Sanchez no Brasil

     Resumindo: as coisas estão ficando muito vulgares. No campo das petições, por exemplo, vê-se de tudo. Vou ter que tomar uma atitude e fazer uma petição pra acabar com as petições. Você assinaria?


[1] Tradição, Família e Propriedade (TFP) ou Sociedade brasileira de defesa da tradição, família e propriedade (1960), é uma organização católica tradicionalista e conservadora brasileira.
Foi fundada em 1960 por Plínio Correia de Oliveira, deputado federal Constituinte em 1934 e jornalista católico, pautada nos princípios de sua devoção à Santíssima Virgem(...). A nova sociedade baseava-se em sua obra Revolução e contra revolução (1959) e propõe uma vigorosa reação com base no amor à ordem cristã e na aversão à desordem.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Simplesmente Manu

     Era junho de 1979. Há pouco mais de dois anos eu havia saído de um casamento insosso que durara quatro anos, não dera frutos nem produzira lucros. Fazia pouco menos de um ano e meio que já estava noutro e, naquele mês, surgia uma menina na minha vida que a mudaria pra sempre.
     Praticamente recém-casado pela segunda vez e já entrava outra mulher na minha história. E muito mais moça do que eu. Sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. É da natureza. O que fazer? Assumir, claro, com desenfreada paixão. Não resisti àqueles grandes e expressivos olhos, àquela boquinha bem desenhada, àquele narizinho empinado — no bom sentido — e àquela simpatia que contagiava a todos, especialmente a mim.
     Eu havia mudado de cidade. Trabalhava em Porto Alegre, mas estava morando em São Leopoldo. Conhecia-a no fim da tarde de um dos dias mais frios daquele inverno. Justamente num dia em que não tinha ido trabalhar, pois estava no hospital, onde minha mulher havia baixado no dia anterior. Vi-a passar no corredor, com uma enfermeira. O que me chamou a atenção foram os gemidos baixinhos que ela emitia e que me deixaram apreensivo. O que teria acontecido? Curioso, fui atrás, perguntei aqui e ali e descobri que não era nada e, também, que aquela era a Manuela que, a partir desse dia, passou a fazer parte da minha vida.
     Como só trabalhava à tarde, passávamos as manhãs juntos. No começo, por causa do frio, apenas fazia companhia a ela na sua própria casa. Com o fim do inverno, passeávamos por quase toda Independência — ou Rua Grande, como é conhecida —, a rua principal de São Leopoldo. Íamos até a Praça Imigrante, na margem do Rio dos Sinos, e voltávamos. Às vezes parávamos em alguma lancheria para tomar um refrigerante, pois eram quentes aquelas manhãs ensolaradas. Algumas pessoas que cruzavam conosco nas movimentadas manhãs da Rua Grande paravam para elogiar a beleza daquela garota, que nada dizia, apenas sorria. Noutros dias, estendíamos um pano na grama, em frente à casa dela, e ficávamos à sombra, lanchando e vendo o movimento da rua. Quando voltava do trabalho, no fim da tarde, ela me recebia cheia de gracejos e sorrisos, que eu retribuía com muitos abraços e carinhos. Era um sonho. O melhor de tudo é que o surgimento daquela paixão melhorou ainda mais meu casamento, que já era bom.

.:: o ::.

     Viemos morar em Porto Alegre. O tempo passou rápido, como sempre. A distância entre nossas idades não aumentara, mas dava a impressão de crescer numa razão logarítmica: enquanto ela amadurecia, eu envelhecia.
     Chegou o dia em que ela passou a preferir divertir-se junto a suas muitas amigas, sair com elas à noite. Claro que eu não fazia parte desse plano. Entendi, conformei-me e, ainda por cima, levava-as e buscava-as nas festas que frequentavam. Lembro-me do despertador me chamando às cinco da madrugada, inclusive no inverno. Eu nem guardava o carro na garagem pra não ter que abri-la. Lá ia eu, todo encasacado, cheio de lã, de boné e tudo, pra Dom Pedro II, pra Goethe, pra Plínio ou pra onde houvesse festa. Entre seis e seis e meia aquele bando invadia meu carro, cada uma a sua vez dizia “oi, tio” e passavam a tagarelar todas ao mesmo tempo. Manuela ia quieta ao meu lado. Eu nem perguntava se ela tinha gostado. Sabia que no fim de semana seguinte a cena se repetiria, portanto, sinal que era bom.

.:: o ::.

     Hoje, 32 anos se passaram desde aquele junho de 1979 em que Manuela entrou na minha vida pra despertar em mim um amor diferente, que eu nunca sentira antes. E 32 anos é exatamente a idade de Manuela, ou simplesmente Manu, que nasceu no fim de tarde daquele dia frio, que passou gemendo nos braços da enfermeira desde a sala de cirurgia até a maternidade do hospital, cena que eu, casualmente, presenciei da porta do quarto.
     Em janeiro de 1980, há 32 anos, todo orgulhoso, eu exibia minha filha, Manu, pra quem passasse pela Rua Grande.

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     Hoje, 32 anos depois, não passeamos mais pela Rua Grande nem a levo e busco da balada, mas meu orgulho continua.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Guri bom de bola

     Não. Não vou falar sobre o torneio promovido por uma empresa de comunicação do estado. Apenas aproveitei o título.
     Recebi um email contando a história do incrível Lionel Messi, craque do Barcelona, eleito três vezes melhor jogador do mundo. Eu já a conhecia. Para quem não conhece, um resumo.
     Lionel Andrés Messi nasceu em Rosário, na Argentina (ninguém é perfeito), em 24 de junho de 1987. Aos oito anos era considerado autista e, aos 13, media 1,10m. Os médicos diziam que ele chegaria no máximo a 1,50m quando adulto. O tratamento contra o nanismo era caríssimo, inviável para os pais do garoto. Eram necessários quatro meses de salário da família pra pagar um mês do tratamento.
     Aos 10 anos, o baixinho despontava no Newell's Old Boys, clube que negou pedido do pai de Lionel para bancar o tratamento. A família foi, então, bater à porta do famoso River Plate, que também negou ajuda.
     Com o amparo de uma tia, a família Messi foi para Lérida, na Catalunha, Espanha, em 2000. Pouco antes de completar 13 anos, Lionel fazia teste no Barcelona. Nem é preciso dizer que foi imediatamente contratado. A proposta era bancar-lhe um tratamento à base de hormônios. 42 meses depois de tomar injeções diárias, Messi alcançou o tamanho que tem hoje: 1,69m.
     Em 2004, com 17 anos, contratado como profissional, entrou para a equipe B do Barcelona. Depois de cinco jogos, contudo, começou a jogar na equipe principal.
     O resto da história todos conhecem.

     Pois eu, sem falsa modéstia, poderia ter tido um Messi na vida, claro que sem as características do autismo e do nanismo. Vou contar a história.
     Já escrevi aqui que para o futebol sempre fui um perna de pau (Jogos de bola). Torcia, claro, para um time de Porto Alegre, mas sem fanatismo, como torce a média das pessoas. Não era de ir ao estádio e nem de ficar ouvindo jogos no rádio ou vendo na TV, salvo quando fosse um grande jogo: Grenal, Copa do Mundo, Libertadores, final de brasileiro ou gauchão, etc.
     Um dia, como acontece naturalmente com muita gente que se multiplica, tive filhos. O segundo a nascer foi um menino. É de praxe que meninos brinquem de carrinho e de bola, e o meu não fugiu à regra. Na segunda série do ensino fundamental percebi alguma coisa estranha naquele menino: era o craque da turma nos recreios da escola. O que fazer? Incentivar, é claro! Sempre que possível, batia bola com ele.
     Na terceira série foi para um colégio grande e continuou jogando bola o tempo todo. Um dia, não sei exatamente quando, chegávamos em casa voltando da praia, o guri vestia uma camiseta do Grêmio, aproximou-se um senhor e disse que tinha uma escolinha de futebol e que, se o garoto gostasse, poderia participar. Deu as dicas e no primeiro sábado de tarde lá nos fomos. Os treinos eram num campo onde hoje é a Praça Sport Club Internacional, no miolo entre as ruas General Lima e Silva, Érico Veríssimo, Ipiranga e Dr. Sebastião Leão. Logo em seguida a área foi isolada para urbanização e a gurizada se transferiu para uns campos que havia atrás da Secretaria da Receita Federal, o chocolatão.
     O tal senhor que instruía a garotada se chamava Amarante e fora jogador de futebol. A parte que acreditei do que ele disse foi de ter jogado no Guarani de Bagé e no Flamengo de Caxias; quando falou que jogou no Santos, ao lado de Pelé, só fingi ter acreditado. Mas era gente fina. Na época ele tinha um irmão que jogava no Grêmio como zagueiro e um sobrinho no Inter, também zagueiro. Não me lembro o nome deles, mas eram conhecidos.
     Pois o Amarante, que era zelador de um prédio próximo ao que eu morava, me perguntou um dia se eu queria vaga para meu filho na escolinha do Grêmio, onde uma das equipes precisava de um quarto zagueiro. Dito e feito. Numa tarde de sábado do segundo semestre de 1992 nos apresentou ao Rubem, também um ex-jogador que treinava uma das equipes daquela escolinha e, a partir de então, o garoto, apesar de ter talento pra atacante, ficou guardando um dos lados da entrada da grande área. Naquele ano nunca foi driblado e sua equipe chegou ao quarto lugar da categoria 79/80 no campeonato da escolinha do Grêmio.

clip_image002O time de 1992

     A escolinha tinha aulas no estádio Olímpico, num dia da semana. Nesses treinos, os meninos faziam exercícios físicos e aprendiam os fundamentos do futebol. Sábados à tarde havia torneio entre as equipes daquela categoria nos campos do Cristal. Para o guri continuar participando em 1993 tive que me associar ao clube. Até que foi bom, porque me obrigou a começar a ir aos jogos do Grêmio.
     Termina ano, começa ano e, em relação a esse assunto, o que mudou foi o dia dos jogos: como trocou de categoria, em vez de sábados à tarde os jogos passaram para os domingos pela manhã. Imagine no inverno, acordar domingo lá pelas seis e meia para estar no Cristal às oito... Mas lá estávamos: eu, de fora das quatro linhas, todo entrouxado, esfregando as mãos e batendo queixo; o garoto, de calção e camiseta, correndo pela ponta direita, entortando zagueiros e cruzando para a área. Nesse ano, porém, o time para o qual foi sorteado não conseguiu boa classificação, mas pelo menos o guri já estava jogando no ataque.

clip_image004 A equipe de 1993

     Em 1994 sim, começou num time que não tinha pra ninguém. Depois das primeiras goleadas nos adversários — inclusive com vários gols do meu garoto—, os “cartolas” se reuniram e resolveram misturar aqueles atletas nas outras equipes para equilibrar as coisas. Não adiantou. O time para o qual o meu craque foi ficou forte, sagrando-se campeão ao final do ano. Valeram aquelas manhãs frias de domingo na torcida.

clip_image006 O time campeão de 1994

     No ano seguinte, Marcos já não tinha idade pra escolinha. Se quisesse ser jogador de futebol tinha que fazer teste pra categoria sub-15 e, logo em seguida, pra juvenil. E os testes são fortes. Se o sujeito coloca aquilo como um ideal de vida e não é classificado, a frustração é grande e pode ser sentida o resto da vida. Felizmente, ele não quis. Enveredou pro futebol de salão, mas só por diversão, sem objetivo de profissionalizar-se.

     Já houve um Garrincha, um Pelé, um Maradona e um Ronaldo (o Fenômeno, porque o outro não conta); agora tem um Messi. Confesso que não troco nenhum deles por aquele que vai continuar sendo o meu craque pelo resto dos meus dias, mesmo sem ter ganho 33 milhões de euros por ano.