Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quinta-feira, 19 de maio de 2011

Por uma vida melhor

     Por uma vida melhor é o título do livro que integra a coleção Viver, Aprender, destinada aos alunos do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), distribuído pelo MEC a 485 mil alunos de 4,2 mil escolas, através do Programa Nacional do Livro Didático.
     Essa obra tem dado o que falar com a polêmica levantada pela imprensa escrita, falada, televisionada e “blogueada”. Cronistas, articulistas e editorialistas — muitos dos quais, tenho certeza, nem leram o livro didático —, todos fantasiados de donos da verdade e da língua portuguesa, insurgiram-se contra a obra porque, segundo eles, admite erros de português, coisa que acham que não cometem e não aceitam que se cometa. Alguns dizem que o livro ensina a falar errado; outros falam como se fosse para crianças (desconhecem, inclusive, que se destina ao EJA). Um grande jornal do Rio de Janeiro disse, em seu editorial, que Este atentado à educação pública brasileira, considerada por unanimidade o maior empecilho a que o país atinja um estágio superior de desenvolvimento e se mantenha nele, se assenta numa visão ideológica da sociedade alimentada pela ‘mitologia do excluído’, ligada à ‘síndrome da tutela estatal’. Qual unanimidade, caras pálidas? Aquela burra, do Nelson Rodrigues? Eu fora! Neste caso, já não é mais unanimidade.
     O primeiro capítulo do livro em questão, “Escrever é diferente de falar”, procura explicar aos alunos jovens e adultos (aqueles que não completaram os anos da educação básica em idade apropriada) que não há um só jeito de escrever e de falar, e que a língua portuguesa apresenta muitas variantes. Diz que uma delas é de origem social: “As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio — vale lembrar que a língua é um instrumento de poder —, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular”.
     Numa das seções desse capítulo, os autores explicam o funcionamento da concordância entre as palavras:

A concordância entre as palavras é uma importante característica da linguagem escrita e oral. Ela é um dos princípios que ajudam na elaboração de orações com significado, porque mostra a relação existente entre as palavras.

Verifique como isso funciona:

Alguns insetos provocam doenças, às vezes, fatais à população ribeirinha.

insetos (masculino, plural) ◄ alguns (masculino, plural)
doenças (feminino, plural) ◄ fatais (feminino, plural)
população (feminino, singular) ◄ ribeirinha (feminino, singular)

As palavras centrais (insetos, doenças, população) são acompanhadas por outras que esclarecem algo sobre elas. As palavras acompanhantes são escritas no mesmo gênero (masculino/feminino) e no mesmo número (singular/plural) que as palavras centrais.

Essa relação ocorre na norma culta. Muitas vezes, na norma popular, a concordância acontece de maneira diferente.

     Nesse sentido, seu conteúdo traz por escrito alguns exemplos de “falas” de pessoas de classes menos favorecidas, que tiveram pouco ou nenhum contato com a chamada norma culta da língua portuguesa. Entre outras, usam essas três frases para explicar as variedades: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”; “Nós pega o peixe”; e “Os menino pega o peixe”. O que os cronistas e articulistas fizeram foi pinçar essas frases de seu contexto original e manipulá-las, como, aliás, soem fazer com tudo. Foi o que bastou para que a obra fosse considerada assustadora, absurda e outros adjetivos menos elogiosos. Nenhum deles, no entanto, falou sobre o contexto em que as frases foram apresentadas. Veja isso:

Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado

Você acha que o autor dessa frase se refere a um livro ou a mais de um livro? Vejamos:

O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Reescrevendo a frase no padrão da norma culta, teremos:

Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados.

Você pode estar se perguntando: “Mas eu posso falar ‘os livro?’.”

Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.

Os autores também explicam que na variedade popular é comum a concordância funcionar de outra forma.

Nós pega o peixe.

nós = 1ª pessoa, plural
pega = 3ª pessoa, singular

Os menino pega o peixe.

menino = 3ª pessoa, ideia de plural (por causa do “os”)
pega = 3ª pessoa, singular

Nos dois exemplos, apesar de o verbo estar no singular, quem ouve a frase sabe que há mais de uma pessoa envolvida na ação de pegar o peixe. Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala.

     O capítulo todo tem 17 páginas. O texto que está recuado acima não chega a duas páginas e é o que está provocando toda essa celeuma. Na introdução do capítulo, os autores salientam que a língua é um instrumento de poder. A polêmica está provando isso. Os exemplos usados nada mais são do que a fala da gente simples, que jamais terá o “poder” de um cronista ou articulista da nossa imprensa ou de um especialista em gramática (leia-se norma culta) de nossas universidades.
     Se o tema lhe interessar, não deixe de ler o capítulo todo em um desses links:
http://www.advivo.com.br/sites/default/files/documentos/v6cap1.pdf

http://zerohora.clicrbs.com.br/pdf/11055740.pdf

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     Coloquei no Google o título do livro, Por uma vida melhor, acompanhado das palavras-chave livro e EJA. O buscador retornou 643 mil resultados. Escolhi aleatoriamente uma dessas entradas. Era a notícia de que a Associação Brasileira de Letras criticara o livro e havia inúmeros comentários de leitores. A grande maioria dando força para o texto. Selecionei alguns dos poucos que faziam o contrário, ou seja, criticavam o texto e davam força para o livro. Eis um deles:

Vergonhosa mesmo é a reação da mídia até o momento. Totalmente desinformados. Todos defendem a Gramática tradicional em detrimento da ciência que se chama Linguística. Assim como a Física Quântica e a da Relatividade, as duas não se “bicam” mesmo. Todos devem estudar um pouco mais e saber que nada há de errado no conteúdo do livro da escritora Heloísa Ramos, que o MEC, acertadamente, defende. Basta consultar Marcos Bagno, Sírio Possenti, este, um dos principais membros da Academia Brasileira de Letras, dentre outros.
É uma pena que estas pessoas achem que o idioma é estático e nunca muda. Há vida nas línguas de qualquer país e, por isso, mudam a cada geração. O Português não é diferente. Leiam qualquer obra do século XVIII ou XIX para verem que a Linguística está correta. Defender a rigidez que prega Pasquale Cipro Neto é atentar contra a inteligência do falante.

     Nesse mesmo site havia um comentário que considero uma pérola, ainda mais vindo de um, pasme, “professor”:

Um absurdo!!! Só pode ser brincadeira…, e por sinal de muito mal (SIC) gosto. Livro didático, pregando que é possível e admissível erros grosseiros (SIC) de portugues (SIC), comprado com o dinheiro público pelo MEC, para ensinar jovens brasileiros… essa a verdadeira herança maldita. E me perdoem os outros, mas são um bando de PTistas interesseiros. Deve ter havido dinheiro por fora e alguns sempre levando uma vantagem – a famosa lei de Gerson .Triste, muito triste ver pessoas que ainda vão defender essa nova lingistica… (SIC), incrível mesmo. E ainda vão se dar (?) de “cultos”. Como professor, já lhes aponto grandes problemas futuros: com a desvalorização e desrespeito por que passam os professores de todos os níveis e por todo nosso país, tenho certeza, que em futuro próximo, veremos professores sendo processados por “preconceito liguístico” (SIC) por estudantes interessados nessa educação que se prega. É triste… e é de envergonhar qualquer um. No fundo é de dar nojo de ver o que estão fazendo com a educação no Brasil. Dessa forma vai ser dificil (SIC) dizer que querem investir na educação para libertar o povo brasileiro e fazermos nós que o Brasil dê um salto de qualidade. Assim, com essas coisas acontecendo por aqui, vamos sim nos enterrar na imbecilidade de “alguns”, infelizmente. Pobre desse Brasil.

     Pobres dos alunos desse professor que não sabe, por exemplo, a diferença entre mal e mau, que não acentua palavras e que não sabe o que é “linguística”, mas conhece muito bem a lingistica e inventou o preconceito ligístico.
     Quanto aos “istas”, sejam eles da imprensa ou da gramática, que me perdoem, mas é muita ignorância não entenderem que a língua é um organismo vivo, em constante movimento, e que isso deve ser ensinado.
     Quando estava no ginásio, na década de 60, aprendi a concordar o numeral da porcentagem dessa forma: 60 por cento dos gaúchos ainda não entregaram a declaração de rendimentos ou 60 por cento da população gaúcha ainda não entregaram a declaração de rendimentos. Com o tempo, por desconhecerem essa regra — decerto por algum problema entre o tico e o teco, ou melhor, entre a semântica e a sintaxe —, os redatores de jornal começaram a escrever assim: 60 por cento da população gaúcha ainda não entregou a declaração de rendimentos. Em vista disso, os gramáticos de ocasião passaram a considerar correta essa forma. Não sei como ficaria se, ao escrever, resolvesse inverter a ordem da frase: Da população gaúcha, 60 por cento ainda não (entregou ou entregaram?) a declaração de rendimentos. Há vários exemplos como esse, em que o uso da língua por incultos acabou mudando a regra dita culta.
Veja os textos a seguir. Eles são a prova de que a língua muda.

Razoões desvairadas, que alguuns fallavam sobre o casamento delRei Dom Fernamdo

Quamdo foi sabudo pello reino, como elRei reçebera de praça Dona Lionor por sua molher, e lhe beijarom a maão todos por Rainha, foi o poboo de tal feito mui maravilhado, muito mais que da primeira; por que ante desto nom enbargando que o alguuns sospeitassem, por o gramde e honrroso geito que viiam a elRei teer com ella, nom eram porem çertos se era sua molher ou nom; e muitos duvidamdo, cuidavom que se emfa daria elRei della, e que depois casaria segundo perteemçia a seu real estado: e huuns e outros todos fallavam desvairadas razõoes sobresto, maravilhamdose muito delRei nom emtemder quamto desfazia em si, por se comtemtar de tal casamento.

(Trecho de crônica escrita em português arcaico na primeira metade do século XV, de Fernão Lopes, escrivão de livros do rei D. João I e escrivão do infante D. Fernando.)

Gréve dos Alfaiates – Esteve, hontem, na Chefatura de Policia, o official alfaiate Ulysses Henrich, que entregou ao dr. Vasco Bandeira, chefe de policia, um officio em que a União dos Alfaiates diz que nenhum grevista tentou, até hoje, aggredir qualquer collega. Depois de ouvil-o, o dr. Bandeira declarou...

(Trecho de notícia publicada no Correio do Povo em 19 de maio de 1911)

     Daqui a alguns anos, todos estarão escrevendo e dizendo que “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” ou que “nós pega o peixe” e os cronistas e gramáticos do futuro estarão defendendo essa forma como a mais culta e absoluta. Não sei se a regra será considerada melhor ou pior que a do passado, mas espero que a vida seja melhor.

5 comentários:

Alexandre S. Peña disse...

Prezado Aldo:
Vi seu comentário sobre a nota do Juremir e, obviamente, segui até seu blog para verificar diretamente sobre o que você se referiu.
Alguns tópicos me parecem interessantes, mas a raiz das questões eu gostaria de deixar claro que estão incorretas.
Não se admite, em nenhuma hipótese, que erros passem a ser acertos ou até mesmo algum tipo de opcional. Não se está discriminando pessoas ou atitudes quando apontamos seus erros. Existe uma conduta correta, um padrão mínimo aceitável na língua portuguesa, como também existe nos comportamentos socialmente aceitáveis em público.
No meu blog (Sinto, Escrevo e Publico"), meu último artigo fala um pouco disso, entre outras coisas.
Aceitar o erro, conviver com ele, tapar o sol com a peneira, tudo isso seria aceitável, se não fosse no Brasil, tão atrasado em educação.
Impor um padrão elevado é o mínimo que se pode fazer para evoluir em educação.
Em vez de fraquejar e afrouxar as regras para o EJA, poderiam exigir duas leituras obrigatórias mensais, que tal? Até para o Bolsa-família ser pago poderia ser um critério!
Abraços,
Alexandre S. Peña

Lesrrie disse...

Alexandre,
Não existe "UM MÍNIMO ACEITÁVEL" pois a sociedade reconstrói(e portanto desconstrói) um pouco desse mínimo todos os dias. Antigamente não aceitávamos casais homossexuais se beijando em público. Antigamente não aceitávamos nem os próprios homossexuais; em determinada época esses eram queimados apenas por serem quem são. Na língua não é diferente. Não existe uma conduta "correta" como algo divinamente determinado. A língua é constantemente reconstruída(e portanto descontruída), em um processo vivo que escapa qualquer normatização. Erros viram acertos o tempo inteiro, ou ainda falaríamos o português de portugal do séc XV. E se a educação do Brasil hj é uma bosta(com o perdão da expressão) é porque os militares se concentraram em ensinar a geração de vocês apenas o português "correto"(naquela época a educação era o bixo não é?), e não a pensar sobre o mundo. É o que a escola de filosofia de Frankfurt chama de "razão instrumental" - uma racionalidade que não questiona o sistema, apenas trabalha pra ele.

Enfim, em momento algum a autora estimula a escrever fora dos padrões. Ela é apenas realista e traz o que se pensa sobre o assunto no meio acadêmico linguístico (e aqui cabe avaliar muito bem o argumento de autoridade da mesma).

Abraços!

Luis Felipe R. Freitas disse...

Aldo!

Seu texto está muito bom mesmo, ele promove a reflexão e o entendimento. Nós conseguimos notar, só pelos comentários que o caso tem gerado, quem sabe do que está falando (porque leu o capítulo do Por Uma Vida Melhor e tirou suas próprias conclusões) e quem, por outro lado, tem suas ideias formatadas pela mídia global, abrindo mão do direito de pensar por conta própria.

Grande abraço.

Anônimo disse...

Prezado, "desde que mundo é mundo" algumas crianças, outros jovens e até adultos falam de "forma errada". Então, o que leva o professor a não trabalhar essa questão em sala de aula quando ela acontece? Não creio que um livro seja um professor motivador para que se tenha "resultados" esperados no processo de aprendizagem do aluno.

Anônimo disse...

Falouuuu cara, é isso aí!