Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Época pra ser criança

shurato      Na semana que antecedeu o Dia das Crianças, um amigo — que foi criança na década de 90 — postou no Facebook um trecho de uma animação japonesa que passava na TV. Era um tal de Shurato, de quem nunca ouvi falar, porque meu contato com programação infantil encerrou-se na década de 80. Na ocasião da postagem, fez o seguinte comentário: “sinto pena da criançada de hoje, que não tem coisas tão legais assim”. Me senti na obrigação de responder, dizendo: “Não fiques com pena dos que não têm o que tiveste, senão me sentirei obrigado a sentir pena de ti, que não teve o que eu tive...” Ao que o sujeito, não entendendo o que eu quis dizer, respondeu: “Sinta-se livre para sentir o que quiser, independente das minhas emoções. Acho difícil eu invejar a tua geração, uma vez que na minha já existia propaganda contra cigarro”. Resolvi parar por aí e até agora estou sem saber o que uma coisa tem a ver com a outra, assim como não sei o que pena tem a ver com inveja e Shurato com cigarro. Afinal, de acordo com Shakespeare, “só sou responsável pelo que eu falo, não pelo o que você entende”.
     Sinto pena — no sentido de compaixão, piedade, comiseração — de o amigo não ter entendido que vivemos tempos distintos e que não existe isso de uma época ser melhor que outra; pena que ele não sabe que cada um viveu suas experiências da melhor maneira que pode; pena que trouxe a discussão para outro lado. Em todo caso, já que me liberou pra sentir o que quiser, confesso que não sinto invejo nem pena de alguém que se emocionou com um “herói” japonês de olho grande que fala fazendo gestos marciais. Aliás, como todos os super heróis orientais... Talvez se existissem troços assim no meu tempo de criança eu também fosse fã. Como, porém, posso saber, se no meu tempo não havia essas maravilhas?
     Nasci no último ano da década de 40. Fui criança na de 50 e parte da de 60. Morava com minha família em uma casa, assim como todos os meus amigos de rua e colegas de escola, pois, naquela época, eram raríssimos os edifícios no bairro Higienópolis. Meu colégio ficava a cerca de um quilômetro da minha casa. Eu e outros meninos e meninas da minha rua e de ruas próximas íamos a pé até a Escola Santa Maria Goretti. As freiras nos recebiam na entrada. Da mesma forma voltávamos, juntos, fazendo algazarra pela rua.
carrinho      Depois de fazer os “temas”, a turma se encontrava na pracinha em frente a minha casa. Lá se jogava de tudo (já escrevi sobre isso em Jogos de bola). Além dos jogos, brincávamos de mocinho e bandido, de esconder, de pegar; por um cordãzinho puxávamos pequenos carrinhos de madeira, empinávamos pandorgas; andávamos de bicicleta, fazíamos carrinhos de lomba, enfim, uma infinidade de coisas somente possíveis a quem morava em um bairro residencial. E, com exceção do centro da cidade, todos os bairros eram residenciais na década de 50.
     Depois da janta, a diversão da família (naquela época uma famímlia tinha um pai, uma mãe e pelo menos dois filhos) era reunir-se na sala, em torno do rádio (leia O rádio). E foi assim até o surgimento da televisão, no início da década seguinte, quando o foco mudou. Nos sábados, como não tinha aula, passávamos o dia todo na rua. Nas manhãs de domingo íamos a missa; nas tardes, aos matinês dos cinemas. Havia pelo menos seis cinemas nas proximidades. Antes dos filmes, assistíamos a animações: Pica Pau, Tom e Jerry, Gato Felix, Dom Pixote, Zé Colmeia, Snoopy. Depoiso dia em que a terra parou vinham os filmes de faroeste, com John Wayne, Gregory Peck, Richard Widmark; os de ficção científica, como O dia em que a Terra parou, Guerra dos mundos, Planeta proibido, Vampiros de alma, entre outros (todos refilmados recentemente); os épicos históricos e religiosos, como Quo Vadis, Ben-Hur, Spartacus, Lawrence da Arábia, Cleopatra, além das comédias e dos romances. O legal era levar aquele monte de revistas em quadrinhos pra trocar no intervalo entre os dois filmes que passavam. E era com algumas dessas revistas que tínhamos contato com cowboys famosos (Roy Rogers, Durango Kid, Tom Mix, Buffalo Bill, Buck Jones, Hopalong Cassidy) e com super heróis, não orientais, mas norte-americanos: Super Homem, Batman, Fantasma, Homem de Ferro, Capitão América, etc. Pelo jeito, estes continuam “emocionando” também as crianças de hoje, pois volta e meia um deles aparece nas telas do cinema.
citroen      No caso específico da minha família, no verão passávamos alguns dias em Ipanema — não no Rio de Janeiro, mas no bairro homônimo de Porto Alegre —, onde tínhamos um chalé. Como era longe! O Citroën do meu pai ia lotado. Outras vezes, íamos de barca à praia da Alegria, no outro lado do Guaíba. Isso quando eu não ia pescar com meu pai na Ilha da Pintada. Voltávamos sem peixe algum, pois os devolvíamos para a água...
     Tomo a liberdade de reproduzir o texto que minha amiga Sandra Fagundes postou ontem, Dia das Crianças, no Facebook.

“Quando eu era criança gostava de dias de chuva, às vezes a nossa rua inundava e a gente tomava uns banhos de piscina, banho de mangueira, de tanque, de bexiguinha, ficava o dia inteiro montando casinha e depois tinha que desmanchar tudo porque a mãe chamou...odiava comer e dormir porque era perda de tempo, brincava de 5 marias, elástico, polícia-ladrão. E tem um detalhe eu tinha um grandalhão palh... aço que aprontava junto. Meu pai. Ele fez os móveis da Susy, a minha mãe fez as roupinhas, dia da criança tinha brincadeiras especiais....Não pude ser tudo isso para meus filhos, a correria nem sempre deixou, a vida mudou, entraram os eletrônicos, mas fui a quase todos os lugares que achei que não podiam faltar... Agora espero pelos netos e com eles sim certamente vou voltar a ser criança... Gracias a la vida...”

     Ela tem uns quinze anos a menos do que eu (me perdoa se for mais, Sandra), mas se vê que ainda na época em que ela foi criança as brincadeiras ao ar livre e a liberdade para viver eram bem maiores do que as das crianças nas décadas de 80 e 90 e das de hoje em dia.
balão mágico     Meus filhos foram criança na década de 80. Posso dizer que não tiveram a mesma sorte que eu, de terem sido criados em uma casa, pois sempre viveram em apartamento. E no Bom Fim, bairro movimentado. Não tinham uma pracinha em frente à casa, mas curtiram a Redenção; também podiam ir a pé para as respectivas escolas e chegaram a pegar alguns matinês no Baltimore. Sem fanatismos, foram baixinhos da Xuxa, como todos daquela época. Se eram felizes com aquilo, não seria eu a censurá-los. Afinal, cresceram e são felizes, mesmo tendo assistido à Xuxa, ao He-Man e aos Thundercats na TV.
     Acho que a criançada de hoje, mesmo sem jogar bola na calçada ou soltar pandorga na pracinha — e sem assistir ao anime do Shurato —, além de não ser digna de “pena”, será feliz no futuro, porque, a seu tempo, diverte-se e passa o tempo com excelentes videogames, computadores e internet.
     Quem sou eu, então, pra dizer que as coisas do meu tempo eram melhores que as de hoje? A única diferença é que eu “vivi” e “vi” coisas que não se vive e não se vê hoje.

Um comentário:

Clara disse...

Amor, essa discussão poderia ser "coisa de criança", mas infelizmente não é. Na maioria das vezes, o que presencio, pode-se dizer que é "choque de gerações" ou falta de "alguém" com quem trocar experiências e acaba sobrando prá ti... Desculpe, como gostaria que fosse diferente.