Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sábado, 25 de agosto de 2012

Agonia

     Despertei assustado e engasgado com alguém tirando um enorme tubo da minha garganta. Eram nove e meia da noite e a última coisa de que me lembrava era de que duas horas atrás eu olhara para aquele mesmo relógio.
     — Tá acordado, Aldo? Tá me ouvindo?
     Respondi que sim olhando na direção da voz. Era o médico que me operara, ainda de costas pra mim.
     Caminhando em minha direção disse que a cirurgia foi um sucesso, mais tranquila do que esperava. Fazendo entre dois dedos um sinal de coisa pequena, completou:
     — O corte foi desse tamanho.
     Alguns enfermeiros, enfermeiras e o próprio médico pegaram o lençol sob meu corpo e me transferiram para uma maca. Imediatamente me empurraram por aqueles corredores confusos, com gente indo e vindo, macas estacionadas, cadeiras de rodas não pilotadas, técnicas em enfermagem sorridentes e feéricas lâmpadas fluorescentes.
     Em seguida me deixaram na sala de recuperação, onde começaria um dos meus calvários. Essa rotina eu já conhecia. Havia feito, antes, duas cirurgias de hérnia inguinal e uma de Rizartrose do polegar esquerdo. Numa das cirurgias de hérnia, no entanto, sofri uma anestesia raquidiana (ou peridural, sei lá!), que é aquela em que o corpo fica anestesiado do peito para baixo. Quando despertei da cirurgia, não sentia minhas pernas. Foi horrível. Além do mais, a técnica em enfermagem que me acompanhou na recuperação me perguntava a toda hora se eu queria fazer xixi. Por que ela queria saber isso é o que eu queria saber. Então ela me disse que se eu não fizesse xixi não poderia ir para o quarto e, além disso, teriam que me enfiar uma sonda “peru” adentro para esvaziar a bexiga. Ah! Pedi um papagaio e urinei na hora!
     Pois bem, desta vez a anestesia também tinha sido raquidiana (ou peridural, sei lá!). Assim sendo, morria de medo de não sentir vontade de mijar e ter que ser “sondado” pelo “pinto” (a essa altura já nem era mais peru). Eis que, porém, ao conseguir movimentar minhas pernas, percebi um caninho sob uma delas. Levantei o lençol, espichei o pescoço e lá estava uma sonda devidamente enfiada na minha uretra. Maravilha! Fizeram isso enquanto eu estava anestesiado. Uma agonia a menos.
     Na sala de recuperação, rodeado de outros infortunados ou desafortunados, alguns gemendo, alguns roncando, estava eu, nem gemendo nem roncando, mas acordado, começando a sentir dor e amarrado por fios e tubos a um monitor e a um litro de soro. De vez em quando vinha um técnico em enfermagem, anotava meus sinais vitais, aplicava algum medicamento e sumia. Meus olhos vasculhavam a sala tentando adivinhar quantos pacientes estariam ali. O sono não chegava. O tempo não passava. Cada vez mais a boca secava.
     De vez em quando me surpreendia despertando. Era apenas um cochilo daquele torpor anestésico, mas logo caía dos braços de Morfeu. Os tubos de soro, as lâmpadas, os monitores dos sinais vitais e tudo que pertencia àquele ambiente se misturava formando um quebra-cabeça que eu tinha que resolver durante as cochiladas. E assim fui até o amanhecer, ainda na sala de recuperação. O quebra-cabeça não fora resolvido.
     Fiquei sabendo que não havia leito no hospital. Por isso eu e outros em melhores condições permanecíamos ali. Até quando.
     No meu abdômen havia uma batalha. E do tempo da II Guerra, pois os aviões que iam de um lado a outro eram com motores aspirados. Do lado esquerdo, alguns canhões antiaéreos Flak 36 da Luftwaffe, respondiam efusivamente ao ataque dos P-51 Mustang norte-americanos; do lado direito, granadas explodiam dentro de trincheiras. E os gases que se formavam com essa batalha ficavam todos dentro de mim...
     Tenho certeza de que as visitas da minha mulher e de meus filhos, na sexta-feira bem cedinho, me fizeram sorrir um pouco. Mas foi tudo muito rápido e mais um longo, muito longo dia começava. À noitinha, conforme o protocolo, eles puderam voltar pra me olhar. Para que o tempo passasse, eu ficava tentando imaginar como seria uma cirurgia dessas. Aliás, eu nem disse que cirurgia foi!
     Através de um exame de rotina (colonoscopia), foi verificada a presença de uma neoplasia em determinada área do cólon. Essa neoplasia leva o nome de adenoma, que pode ser de baixo ou de alto grau. Retirado material para exame, ficou constatado que o adenoma era de alto grau, necessitando, então, ser retirado. A cirurgia para extirpar o adenoma chama-se colectomia parcial ou hemicolectomia, que é a remoção parcial (metade ou menos), do intestino grosso (cólon). A colectomia parcial é realizada através de uma grande incisão na parede abdominal. A área afetada do intestino é removida e é efetuada a ligação das duas terminações restantes através de um grampeador que usa grampos de titânio. No meu caso foi retirado um pedaço de 22 cm do intestino grosso e o local da incisão é uma ferida com cerca de 15 cm de extensão na zona abdominal (e o médico havia feito o sinal afastando dois dedos a uma distância de mais ou menos uns 8 cm). O material retirado seguiu para a patologia a fim de verificar se seria ou não de um adenocarcinoma (câncer). Pois bem, estou com 15 pontos bem espaçados num corte vertical na linha do umbigo.
     Sugiro que o leitor retome a leitura a partir do 8º parágrafo: “Na sala de recuperação, rodeado de outros infortunados ou desafortunados (.../...)” e vá até o 13º, onde se lê “Mas foi tudo muito rápido e mais um longo, muito longo dia começava”. Acrescente-se a essa sexta-feira um pouco mais de dor, de outras batalhas, agora também navais, de delírios com quebra-cabeças e de tentativas de adivinhar quando terminaria aquela agonia. Nem água eu podia beber. Ganhava uns flaconetes de 10ml para molhar a boca.
     A sexta-feira acabou nos calendários. Na minha vida não. Foram as 24 horas mas demoradas da minha vida. Depois de nova visita dos familiares, continuava acordado. Pedi um remédio pra dormir e fui atendido: deram-me meio comprimido de alguma coisa. Com essa dose consegui suportar um pouco melhor a madrugada. Ganhei mais tempo pra tentar resolver os quebra-cabeças durante os cochilos. Mas não os resolvi.
     Pra saber como foi a noite de sexta pra sábado sugiro ao leitor retomar a leitura a partir do 8º parágrafo: “Na sala de recuperação, rodeado de outros infortunados ou desafortunados (.../...)” e vá até o 13º, onde se lê “Mas foi tudo muito rápido e mais um longo, muito longo dia começava”.
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     Amanheceu o sábado e lá estavam minha mulher e meus filhos, que só podiam me olhar, sorrir, dar um apoio, dizer que estavam me esperando e que era pra eu ter força. Meus colegas de sala de recuperação iam aos poucos sendo levados para os quartos, enquanto eu continuava ali, vendo e ouvindo chegarem pacientes estropiados, sem alguma parte interna do corpo. Oh, como gemem esses coitados! Seria soldados das batalhas travadas dentro de mim?
     De repente uma notícia: uma alegre técnica em enfermagem me pergunta se quero ir para um quarto. Acho que sorri e ela entendeu como um sim. Pouco mais de meia hora depois, por volta do meio-dia, estava passeando de elevador, descendo do 6º para o 4º andar, em meio a profissionais da saúde falando sobre a burocracia do trabalho. Só o fato de me livrar da sala de recuperação me fez ignorar aquele blábláblá.
     Foi meio que um sufoco sair da maca que levou até o quarto para a cama hospitalar. Tive que fazê-lo sozinho. A última vez que havia me movimentado por minha conta fora na quinta feira, quando caminhei da sala de espera do centro cirúrgico para a mesa da cirurgia. Mas, enfim, estava no quarto, teria companhia, televisor, comida. Não foi, contudo, bem o que me trouxeram, e sim uma sopinha ralinha e sem gosto, da qual tomei algumas colheradas. E também pude tomar um pouco mais de água. Aliás, eu nem estava com fome, só com vontade de sentir um gostinho bom na boca que, com certeza, não foi aquele. À tarde veio uma gelatina gostosinha e, à noite, batatas, arroz e strogonoff de frango bem desfiado. Confesso que não me atirei naquilo, apenas provei e deixei de lado, pois já começava a sentir uma certa náusea, azia e um desconforto muito grande em todo abdômen.
     Quando fiquei sozinho, não podia nem engolir a saliva, porque voltava em forma de queimação. Chamei o técnico em enfermagem que estava de plantão e pedi um remédio para azia. Ele disse que não tinha nada nesse sentido prescrito no meu prontuário, mas que falaria com a enfermeira para que essa entrasse em contato com o médico. Entendi que era uma forma elegante de me dizer “te fode, meu”. Cada vez que ele entrava no quarto, por um motivo ou outro, eu pedia, implorava e suplicava até que no meio da madrugada me trouxe um copinho com hidróxido de alumínio. De nada adiantou.
     Passei toda a madrugada de sábado pra domingo muito mal, sem poder nem engolir. Veio a manhã, veio Clarinha, meu anjo da guarda, veio um vômito e veio o médico. Queixei-me com ele sobre o que sentia. Disse que era normal, uma vez que o intestino estava paralisado, mas produzindo líquido que, por não ter por onde sair e devido à distensão pós-operatória, subia para o estômago. Resolveu esperar um pouco mais pra ver se as coisas se moveriam normalmente. Não se moveram. No meio da tarde, bem na hora do jogo do Grêmio, uma enfermeira entrou no quarto dizendo que teria que colocar uma sonda até meu estômago para que o líquido que lá estava saísse. Imaginei que seria uma coisa muito desagradável, mas, enfim...
     — Encoste o queixo no peito, respire fundo e, quando sentir o tubo na garganta não vomite, engula. Vou passar um anestésico para o senhor não sentir dor. Pronto: falou em dor me caguei todo! E começou o suplício. Agarrei-me com todas as forças na mão da Clarinha, que estava ao meu lado ajudando a me manter com o queixo encostado ao peito. Aquela mangueira entrava estuprando minha narina direita, fazendo um barulho com se estivesse rasgando a carne esponjosa do meu nariz. Eu tinha certeza de que meus olhos saltariam da cara; minha cabeça estava prestes a explodir numa dor quente, muito quente...
     — Engole! Engole! Engole pra não ir pro lado errado!
     Pela primeira vez eu gritava e gemia em um hospital, sem vergonha de quem ali estivesse. A cada engolida uma náusea. A enfermeira berrava que não era pra eu vomitar. Até que a ouvi dizer entre parênteses para sua auxiliar: — Acho que foi para o lado errado... E, mais calma, disse pra mim que ia fazer um teste pra ver se estava no lugar certo. E estava. A terrível dor daquele procedimento invasivo passou milagrosamente, ficando só uma sensação de que eu tinha espirrado pra dentro e um incômodo na glote ao engolir. Quando tudo estava quase terminando, chegou o médico, que ajudou a terminar o processo, fazendo uma aspiração daquele líquido que crescia em mim feito um alien. Saiu quase um litro de um suco preto e, enquanto saía, eu sentia meu abdômen desinchar. O Grêmio fazia o segundo gol, virando o jogo.
     O domingo praticamente acabara ali. Durante a madrugada consegui dormir melhor, mas sempre ancorado num remedinho. O ruim, agora, era quando tinha que ir ao banheiro: no braço esquerdo tinha o soro; na narina direita e dirigida para o lado direito a sonda, que terminava dentro de um pote. Precisava sempre pedir ajuda. Ainda bem que Clarinha não saiu do meu lado.
     Fiquei toda segunda-feira com aquele apêndice no nariz (aliás, meu nariz é o próprio apêndice). De vez em quando faziam um procedimento de aspiração e muito líquido saía, aliviando-me. A sonda só foi tirada na quarta-feira de manhã, bem cedinho, pelo próprio médico, que antes das 7h30 já estava no hospital pra me ver. Uma última aspirada constatou que já não havia mais líquido no estômago além do normal.
     Passei a me alimentar devagarzinho, comendo uma gelatina, tomando um suco, um chá. Ainda tomava soro porque precisava equilibrar a função renal, que tinha ido pro saco. Aos pouquinhos fui me recuperando e na sexta-feira, sete dias e meio depois da cirurgia, fui pra casa.
     Ainda faltava o resultado da biópsia do adenoma. E a notícia veio por telefone, na noite de quinta-feira, dada pelo próprio Dr. Cláudio Tarta, meu cirurgião salvador, que me visitava duas vezes por dia enquanto estive internado: o tumor era B E N I G N O! Essa notícia só poderia ter sido dada por ele, a quem devo todo o reconhecimento e gratidão do mundo.
     Ainda me recupero. Acho que vai demorar uns dias mais. Estou louco pra voltar pra bateria, pra tomar uma gelada, pra almoçar fora e, principalmente, pra fazer amor!
     Pra isso espero pela sua alta, Dr. Cláudio. Menos, é óbvio, pra fazer amor, porque isso faço com a Clarinha!


4 comentários:

Clara disse...

Mais uma batalha vencida, meu amor, e essa pode ser a dois!
Parabéns pela coragem, pelo comportamento diante de tantas adversidades.
Te amo e sempre vou estar contigo, seja num hospital ou num cruzeiro!

Inês Bernal disse...

Oi, Aldo
deves te lembrar de mim, sou amiga da Dudy...
tb sou paciente do Dr. Tarta, ele é um sujeito maravilhoso !!!!
Tiveste sorte dupla: pelo resultado do exame e por ele ser teu médico.
Boa recuperação e "happy beats",
Ines Bernal

Ney Gastal disse...

Dizem que pior do que estar em um hospital no pós-operatório só mesmo estar em um panelão de antropófagos ainda vivo. Bom que escapaste. Abraço.ey

Anônimo disse...

Sem definição.