Não somos como nos vemos. Somos como os outros nos veem. Quem se olha no espelho não se vê como é. Vê uma imagem invertida de si. Se for destro, vira canhoto e vice-versa. Em assim sendo, achamos que somos o que parecemos ser e, se isso não nos satisfaz, mudamos para tentar parecer aos outros o que não somos, mas o que parecemos ser a nós. Dessa forma, vamos ficando cada vez mais diferentes do que realmente somos para nós e para os outros.
É difícil. Pensando nisso, me deu um nó nas idéias. Em uma de suas músicas, Humberto Gessinger, do Engenheiros do Hawaii, disse que “Somos quem podemos ser”. É verdade. Podemos até parecer quem não somos, mas, no fundo, somos quem podemos ser. A aparência é uma simulação da realidade e, portanto, um ocultamento de uma realidade diferente. O idealismo vê a aparência como tudo aquilo a que temos acesso cognitivo direto, ou seja, só vemos as coisas como elas aparecem, mas nada do que aparece diz como as coisas são em si mesmas. Se colocarmos várias pessoas em volta de um campo de futebol, a cada uma sua dimensão, sua aparência será diferente. Quem ficar atrás de uma das goleiras, por exemplo, terá a ideia de que as linhas laterais, se continuassem, acabariam se encontrando num ponto distante. Na verdade nunca se encontrarão, pois são paralelas. Portanto, o campo de futebol não é como aparece para essa pessoa, e o que aparece não é o que é um campo de futebol.
Enquanto isso, o realismo vê a aparência como o aparecer da realidade. As coisas são simplesmente como se apresentam a nós.
De acordo com Matias Aires (1705–1763), filósofo e escritor brasileiro,
O nosso engenho todo se esforça em pôr as coisas numa perspectiva tal, que vistas de um certo modo, fiquem a parecer o que nós queremos que elas sejam, e não o que elas são.
Mais ou menos um século depois, Ferdinand de Saussure (1857–1913), linguista e filósofo suíço, corroborou o pensamento de Matias Aires com uma frase mais objetiva: “o ponto de vista cria o objeto”.
Costumam dizer que o hábito faz o monge. Na verdade, este ditado é o oposto do que foi criado originalmente por François Rabelais (1483–1553), escritor, padre e médico francês do Renascimento: “O hábito não faz o monge, e há quem, vestindo-o, seja tudo menos um frade”. Nada garante que aquele deputado bem vestido seja o que aparenta: ele pode ser um dos que colocam dinheiro de propina nas meias. Há, no entanto, raras pessoas que confirmam a corruptela do ditado original. Amy Winehouse é uma delas. Por suas roupas, seu penteado, seus dentes (ou a falta de alguns) revela quem é. Mas seria só pela aparência ou também pelas atitudes? Sou fã dela como cantora, mas não me envolveria emocional ou sexualmente com ela por nada deste mundo. Já a Britney Spears... (Não! Não me envolveria com ela nem antes nem depois de mostrar quem realmente é). Para Britney cabe o pensamento do filósofo alemão Friedrich Novalis (1772 – 1801): “Quando vemos um gigante, temos primeiro de examinar a posição do sol e observar para termos certeza de que não é a sombra de um pigmeu.”
Vejamos o caso fictício de dois jovens. Estudaram juntos desde cedo. Fãs de hard rock, tocavam na mesma banda, tinham os cabelos quase até a cintura, barba sempre por fazer e só usavam calças jeans e camisetas. Um deles foi estudar Direito; o outro, Formação de Produtores e Músicos de Rock. Ao final dos cursos, o primeiro foi trabalhar num importante escritório de advocacia; o segundo, numa gravadora, em Miami. O primeiro ficou irreconhecível, se comparado a fotos da adolescência: os cabelos estão sempre aparados e bem penteados, barba feita diariamente, só usa ternos de grife, gravatas italianas e sapatos de matar barata em canto (mas continua gostando de rock). O outro, apesar de ter o cargo de diretor de produção da gravadora, continua o mesmo quanto à aparência.
O que é comum nos dois? O sucesso profissional. O que mudou? Por força da profissão, um deles teve que assumir uma aparência que a sociedade julga ser adequada para um advogado.
Muitos conhecem histórias de arrumadinhos de mau caráter e esculhambados de boa índole. Em todas elas está envolvida a aparência, a simulação de uma realidade, a dissimulação de outra. Muitos escritores, pensadores, filósofos já discorreram sobre a aparência. Vou deixar aqui algumas para que sirvam de reflexão.
Os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que não são (William Shakespeare).
Os ignorantes julgam a interioridade a partir da exterioridade (Giovani Boccaccio).
Os homens são poucas vezes o que parecem; eles trabalham incessantemente por parecer o que não são (Marquês de Maricá).
Ganharíamos mais se nos deixássemos ver tais como somos, do que em tentar parecer o que não somos (François de La Rochefoucauld).
Elis Regina gravou a música “As aparências enganam”, de Sérgio Natureza e Tunai, que começa assim:
As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam porque o amor e o ódio se irmanam [...]
Enfim, as aparências enganam ou isto é só aparência?
2 comentários:
Adorei a reflexão mas tem certeza que tu não fumou nada antes de escrever, rsrsrsrssr. No meu caso acho que até sou o que quero ser só não com o salário que imaginava ter.
Abração
Me lembro de ter fumado um cigarrinho meio amassado. Mas não me lembro oque era...
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