Passava um pouco das seis da manhã quando abri a janela da área de serviço. O céu de outono trazia, de cima para baixo, um azul escuro que ia clareando e se transformava num amarelo alaranjado. Duas ou três estrelas maiores ou mais próximas tinham se esquecido de sair da cena e ainda brilhavam no degradê distante do céu da pátria naquele instante. Um cobertor de morros tapava o sol, que acordava anunciando o fim da madrugada.
Em primeiro plano, as árvores mais altas e os telhados das casas vizinhas; logo adiante, os grandes edifícios residenciais e os altos prédios da PUC; bem ao fundo, morro acima, uma infinidade de luzes tremeluziam tal qual um exército de velas bruxuleantes batendo em retirada.
Além dos diferentes trilares de pássaros de diversas espécies ouvia o rugido ainda suave da avenida que despertava, a pouco menos de 200 metros. Aquela mistura de roncos, de automóveis, de ônibus, de caminhões e de motocicletas chegava a mim como o som distante das ondas do mar durante as madrugadas, numa praia qualquer.
Senti o contato ameno dos pelos da minha gata, que se esfregava nas minhas pernas. Olhei-a e ela emitiu um miado quase inaudível. Depois de um carinho retribuído, enchi seu pote de ração, que ela passou a devorar.
Enquanto a cafeteira cuspia golfadas de água fervendo sobre o pó do café, e moléculas de leite chacoalhadas pelas micro-ondas do forno se esfregavam freneticamente dentro de uma xícara, eu lia as manchetes do jornal que acabara de pegar sob o capacho, na porta de entrada. Numa sintonia perfeita, cafeteira e forno terminaram suas tarefas ao mesmo tempo. Completei a xícara de leite com um pouco de café e bebi vagarosamente lendo a matéria da capa do jornal.
Depois de um banho morno que tirou o sarro de sono que ainda estava grudado ao meu corpo, voltei ao quarto. Sem acender a luz e sem fazer barulho, separei a roupa para o dia e vesti-a. Ao sentir o cheiro da colônia que borrifava sobre meu rosto, minha mulher acordou sorrindo, como sempre, e me deu bom dia. Beijei-a e dela me despedi com uma promessa: — Eu vou e volto.
Na saída do edifício cumprimentei a vizinha, que estava com seu filho pequeno. Já dentro do carro, esperei o portão da grade abrir-se cerimoniosamente enquanto passava a van que levaria o menino pa-ra a escola e tomei o rumo da rua. Pra variar, a primeira sinaleira es-tava fechada. Pelos dois lados da rua passavam crianças e adoles-centes que iam para a escola; homens e mulheres indo até a parada dos ônibus que lhes levariam aos respectivos trabalhos; ônibus, táxis e automóveis seguiam pela avenida levando trabalhadores. O sinal ficou verde e fomos, eu e os outros que se enfileiravam na esquina, alguns para a direita e muitos para a esquerda, pois é pra lá que fica o centro.
Cinco quilômetros depois, antes de subir ao oitavo andar, fui até o Bar do Antônio tomar um cafezinho. Abre parênteses: esse bar, antes conhecido como o Bar da Filô (filosofia), existe desde os anos de chumbo e é onde intelectuais e acadêmicos se reuniam pra falar mal do governo militar. Grande parte deles foi expulsa dos quadros da UFRGS, simplesmente por não pensar como o governo da época queria que se pensasse. Naquele tempo não se podia falar mal do governo, mas ali se podia fumar e tomar cerveja, coisas hoje proibidas. O Bar do Antônio é, dos tantos do campus central da UFRGS, o mais famoso. Fecha parênteses.
No seu interior as pessoas de sempre: o homem que lê o jornal e marca frases com uma caneta; o chefe dos seguranças; o segurança da Reitoria; algumas gurias bonitas dando a última olhada na matéria antes da aula; uns guris da Engenharia, de calças largas, caras de sono e calculadoras científicas sobre a mesa; e o senhor que traz as garrafinhas de suco de laranja natural. Tomei o cafezinho e saí.
Eram cerca de sete e meia. Fui saudado e cumprimento pelo o colega que chega junto comigo. No refrigerador guardei o sanduíche que trago de casa e sempre como lá pelas nove horas. Na minha sala liguei os três estabilizadores aos quais estão conectados três computadores e outras parafernálias da informática. Liguei meu computador, digitei a senha e, enquanto o lerdo sistema operacional se espreguiçava pra enfrentar um dia, fui até a janela olhar o movimento na rua.
O sol saíra de debaixo do cobertor e lançava seus primeiros raios sobre a avenida. Uma fila de veículos ia em direção ao túnel; outras esperavam na avenida. Depois a cena se inverteu. Passou uma ambulância com a sirene ligada, em direção ao Pronto Socorro. Começou cedo.
Voltei para a mesa. O Windows XP se iniciara e esperava por minhas ordens. A primeira era olhar os emails. Separei o joio do trigo, colhi apenas o trigo importante e comecei o dia de trabalho.
Às 12 e 30, antes de a carruagem virar abóbora, cliquei em Iniciar e Desligar o computador. Desliguei o monitor e o rádio, levantei, empurrei a cadeira pra baixo da mesa e disse ao meu colega e à estagiária: — Então tá, então! Era a senha pra saberem que estava indo embora.
Voltei pelo mesmo caminho da ida. Cinco quilômetros depois fui recebido em casa com um beijo da mulher, latidos e festa da Lila e um olhar lânguido e azul da Wanda, que cedinho já se esfregara nas minhas pernas. Senti o cheirinho da comida, que já estava pronta.
O que aconteceu depois é outra história.
Assim foi minha manhã de ontem. Poderia ter sido de anteontem ou do mês passado; pode ser uma de amanhã ou de depois de amanhã ou, ainda, de um dia qualquer no futuro. Em algumas o cenário foi e, noutras, será diferente: numa o céu estava nublado; em outra está chovendo, nem consigo olhar pela janela da área de serviço sem receber uns pingos na cara; noutra mais ventará. São minhas manhãs de um dia de semana, que pessimistas e desafortunados chamam de rotina. Agradeço, contudo, pela rotina que me mantém vivo.
Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.
sábado, 24 de abril de 2010
Um dia de semana qualquer
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