Dia desses, na verdade há alguns meses, percebi que começava a construção de uma casa, bem na frente do prédio onde moro, na esquina. O espaço, ali, é minúsculo, mas habitar é preciso.
Pensei em fotografar a construção todos os dias, na mesma hora, pra ver a evolução ao final. Mas não deu. Saio muito cedo pra trabalhar, faço tudo na correria. Se ainda tivesse que acrescentar mais essa tarefa ao cotidiano, teria que acordar antes das seis da manhã. De mais a mais, em alguns dias chovia e, além disso, àquela hora, o sol nasce bem atrás da construção, o que iria atrapalhar as fotos. Nem cogitei de fazer em outro horário.
Não fotografei, mas observei a evolução da obra. Era um casal de operários. Imaginei que ele deveria ser um habilidoso pedreiro e tenha ensinado à parceira as artes do ofício.
Na frente não havia qualquer placa dizendo que o projeto arquitetônico era de fulano de tal; que o engenheiro responsável era beltrano de tal; que a inscrição do INSS era número x ou que a obra estava sob fiscalização do CREA. Normal. Quase todas as novas moradias desse bairro esquecido pelo poder público não têm placa alguma. Os puxadinhos das velhas habitações também não. Placa na frente só se vê depois da obra concluída: VENDE-SE.
Os meus novos vizinhos tocavam a obra sem mostrar preocupação com a aparência do bairro. Nem ligavam para aquela camada esburacada de asfalto que um dia foi derramado sobre o calçamento por algum prefeito que pretendia a reeleição. Não sei se foi reeleito. De qualquer maneira, permaneceram ali os buracos irregulares deixando à mostra os paralelepípedos irregulares. Aliás, candidatos por aqui só aparecem em época de eleição e, mesmo assim, não pessoalmente, mas sim com seus jingles sendo tocados a todo volume em carros de som, justamente na hora em que se quer sestear.
Os novos vizinhos nem estavam aí para grande parte dos moradores do bairro que deixam lixo, caixas de eletrodomésticos, pedaços de isopor e restos de construções nas calçadas, na frente de suas casas; que esse lixo é levado pela chuva e cai nas bocas de lobo, entupindo-as; não queriam nem saber da vegetação que cresce impiedosamente nos meios-fios e que, de muito em muito tempo, é cortada pela prefeitura; não se importavam com a grande quantidade de cães vadios que passam pra cima e pra baixo, provocando latidos ensurdecedores dos que estão atrás dos portões das casas ou nas sacadas dos edifícios; nem com as árvores condenadas por podas mal feitas só para permitir que entre seus ramos passem os fios de energia elétrica e comunicação. Dia-a-dia tocavam o barco, ou melhor, a obra que lhes serviria de domicílio.
Só ontem, meses depois de a casa estar pronta, procurei saber quem eram, afinal, terei que conviver com eles, pelo menos quando estiver na sacada da sala ou na área de serviço. Descobri que são da família Furnariidae, e que se chamam Furnarius rufus. Intimamente, contudo, preferem ser chamados de joão-de-barro e joaninha-de-barro. É isso mesmo: são aves Passeriformes. Descobri que se alimentam revirando as folhas, buscando insetos no solo. Alimentam-se também de outros invertebrados, como minhocas, e de restos alimentares humanos, como pedaços de pão.
O Furnarius rufus, ou melhor, o joão-de-barro, constrói seu ninho de barro em forma de forno, misturando palha e esterco seco com barro úmido. Instala seu ninho sobre árvores, postes de eletricidade o peitoris de janelas. No caso desses meus vizinhos, construíram o ninho num poste. Soube que não utilizam o mesmo ninho por duas estações seguidas, fazendo um rodízio entre dois ou três ninhos, reparando ninhos velhos semidestruídos. Quando não há mais espaço para a construção de novos ninhos, o pássaro o constrói em cima ou ao lado do velho.
Diariamente, a partir de seis ou sete da manhã, o casal solta a voz extremamente estridente e canta em dueto, ao lado da nova casa. O ninho é uma bola de barro, dividida em dois compartimentos. A porta, que permite ao pássaro entrar sem se abaixar, impede que o vento atinja o interior, pois é sempre voltada para o norte. No compartimento maior, forrado com musgo, cabelos e penas, a fêmea deposita de 3 a 4 ovos brancos, três vezes ao ano. Ao que me consta, a minha vizinha ainda não pôs ovos. Parece que fará isso no mês que vem. Estou ansioso.
Existe um mito de que a Joaninha pula a cerca. Inconformado porque a esposa mudou de amor, João tampa a abertura da casa, fechando-a para sempre. Descobri que mesmo pessoas experientes afirmam isto com a maior convicção. É mentira! A Joaninha não trai o João e este não comete um assassinato passional.
De acordo com o Portal São Francisco, este mito pode ter surgido do fato de que alguns ninhos abandonados do joão-de-barro são aproveitados por abelhas, que fecham a entrada do ninho com uma cera, dando a impressão de ter sido fechado pela ave.
Outra possível explicação é de Guillermo Enrique Hudson (ornitólogo argentino), em uma obra de 1920, que cita um interessante episódio ocorrido em Buenos Aires. Uma das aves (não foi possível saber se o macho ou a fêmea, pelo fato de serem muito parecidos) foi acidentalmente pega em uma ratoeira que lhe quebrou ambos os pés. Após liberada com muita consternação por quem havia armado a ratoeira, voou para o ninho onde entrou e não foi mais vista, certamente morrendo. O outro membro do casal permaneceu por ali mais dois dias, chamando insistentemente pelo parceiro. Em seguida, desapareceu, retornando três dias após com um novo parceiro. Imediatamente começaram a carregar barro para o ninho, fechando a sua entrada. Depois, construíram outro ninho sobre o primeiro, e ali procriaram. Hudson viu este fato como mais uma “qualidade” do joão-de-barro, por ter tido o cuidado de sepultar sua parceira.
Aliás, por falar em ornitólogo argentino, o joão-de-barro é a ave símbolo da Argentina, onde é conhecido como hornero. Não sei por que, já que o pássaro é tido como trabalhador e inteligente... (brincadeira).
No livro Moça Lua e outras lendas, Walmir Ayala, relata o seguinte:
Contam os índios que, há muito tempo, numa tribo do sul do Brasil, um jovem se apaixonou por uma moça de grande beleza. Melhor dizendo: apaixonaram-se. Jaebé, o moço, foi pedi-la em casamento. O pai dela perguntou:
— Que provas podes dar de sua força para pretender a mão da moça mais formosa da tribo?
— As provas do meu amor! — respondeu o jovem.
O velho gostou da resposta mas achou o jovem atrevido. Então disse:
— O último pretendente de minha filha falou que ficaria cinco dias em jejum e morreu no quarto dia.
— Eu digo que ficarei nove dias em jejum e não morrerei.
Toda a tribo se espantou com a coragem do jovem apaixonado. O velho ordenou que se desse início à prova.
Enrolaram o rapaz num pesado couro de anta e ficaram dia e noite vigiando para que ele não saísse nem fosse alimentado. A jovem apaixonada chorou e implorou à deusa Lua que o mantivesse vivo para seu amor. O tempo foi passando. Certa manhã, a filha pediu ao pai:
— Já se passaram cinco dias. Não o deixe morrer.
O velho respondeu:
— Ele é arrogante. Falou nas forças do amor. Vamos ver o que acontece.
E esperou até a última hora do novo dia. Então ordenou:
— Vamos ver o que resta do arrogante Jaebé.
Quando abriram o couro da anta, Jaebé saltou ligeiro. Seu olhos brilharam, seu sorriso tinha uma luz mágica. Sua pele estava limpa e cheirava a perfume de amêndoa. Todos se espantaram. E ficaram mais espantados ainda quando o jovem, ao ver sua amada, se pôs a cantar como um pássaro enquanto seu corpo, aos poucos, se transformava num corpo de pássaro!
E exatamente naquele momento, os raios do luar tocaram a jovem apaixonada, que também se viu transformada em um pássaro. E, então, ela saiu voando atrás de Jaebé, que a chamava para a floresta onde desapareceu para sempre
Contam os índios que foi assim que nasceu o pássaro joão-de-barro.
A prova do grande amor que uniu esses dois jovens está no cuidado com que constroem sua casa e protegem os filhotes. E os homens amam o joão-de-barro porque se lembram da força de Jaebé, uma força que vinha do amor e foi maior que a morte.
Um comentário:
Que lindo, meu amor!
Parabéns por mais este belo texto. Obrigada por me deixar conviver e amar esse homem, que não é lá um joão-de-barro, mas é o homem que me fez a sua joaninha.
Beijo.
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