Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







domingo, 10 de outubro de 2010

Liberdade de expressão



     Hoje é um dia especial, faz um ano que comecei este blog. Como diz no cabeçalho, escrevo aqui “coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que tenho vontade de deixar registradas, nem que seja num blog”. Sempre me deu “coisas na telha”, mas apenas as comentava com alguém próximo ou, no máximo, mandava uma que outra para alguma seção “cartas do leitor”. Na maioria das vezes, contudo, não eram publicadas. Quando eram, o editor da seção “moderava” o texto. Resolvi, então, fazer o blog.
     Nunca tive — e ainda não tenho — grandes pretensões com ele. Não o assumi como uma profissão de “blogueiro profissional”. Repito: coisas que me dão na telha, “de vez em quando”... Já me cobraram mais assiduidade, mas não estou muito ligado. Mesmo assim, além do Brasil, já tive acessos de internautas de Estados Unidos, Portugal, Rússia, Argentina, Canadá, França, Alemanha, Ucrânia e Japão. Viva o Google!
     A coisa que me deu na telha pela primeira vez neste blog foi escrever sobre o casamento do meu filho (Um dia especial). Em duas postagens seguidas falei no evento: a primeiro, no dia do casamento; a segundo, um dia depois. A partir daí, de vez em quando, posto alguma coisa que me incomoda ou que me entusiasma.
     Atualmente, o que me incomoda é a campanha anti Dilma que corre solta desde os grandes veículos de comunicação até os mais desconhecidos blogs, passando pelas nossas caixas de entrada, diariamente. Alguém até se deu o trabalho de compilar todas as falsidades que rolam pelos emails e desmenti-las, desmascarando seus criadores. Procure a Central de Boatos e confira você mesmo.
     Isso me fez pensar na liberdade de expressão. As pessoas que criam esses emails — não sei a troco de quê — alegam que estão usando sua liberdade de expressão. Ledo engano. O que fazem não é o uso da liberdade de expressão. Assim o seria se dissessem que não votariam em A ou B porque não concordam com suas atitudes, ou seus programas de governo, etc. Ou o contrário disso, sempre respeitando o que outros pensem a respeito. Agora, inventar histórias com o intuito de prejudicar um ou outro costuma-se chamar de mentira, de mau caratismo!
     Enfim, liberdade de expressão é um tema que, pela complexidade, não se esgota apenas numa postagem. Vou contar uma história do porquê me desiludi com o hipócrita jornalismo tradicional.

.:: o ::.


Liberdade de expressão

     Em 1984, durante uma grande greve dos funcionários públicos federais, especialmente das universidades — entre os quais me incluo até hoje —, resolvi fazer valer explicitamente meu diploma de jornalista. Só tinha precisado dele para entrar no serviço público federal, em cargo e função exercida por jornalistas, e para dar aulas de radiojornalismo numa outra universidade, só que privada.
     Falei em fazer valer explicitamente meu diploma porque fui convidado para trabalhar na emissora de rádio de uma das duas maiores empresas de comunicação do Estado. Imagino que não tenha sido minha competência o principal motivo do convite. A empresa — então com 89 anos — passava por uma séria dificuldade financeira, muitos funcionários abandonavam o barco, os salários estavam atrasados, fornecedores ficavam na mão e corriam dezenas de ações contra ela nas diversas instâncias judiciais.
     Como estava em greve, e as aulas que ministrava na universidade privada não me consumiam muito tempo, resolvi aceitar o desafio. Comecei como redator de notícias num horário em que ninguém queria trabalhar: das 18 às 23 horas. Havia a promessa de que logo poderia trabalhar num horário melhor.
     Não demorou muito estava redigindo notícias para os radiojornais vespertinos e, especialmente, para as edições das 18h50 e 20h30 do então importante e famoso Correspondente Renner. O leitor mais “experiente” já deve saber de que empresa estou falando. Para os mais novos eu digo: a empresa era a Caldas Júnior; a rádio, a Guaíba.
     Também não levou muito tempo para que — desta vez por terem sido reconhecidas minha competência (e minha modéstia) — eu fosse alçado ao cargo de editor. Os salários estavam em dia, o quadro de funcionários se estabilizara, o serviço fluía normalmente e a liberdade de expressão não era muito controlada. A imprensa, em geral, recém havia saído de um longo período de censura imposto pelos sucessivos governos militares. Falava-se muita coisa, mas bem menos do que hoje. O presidente era o Sarney, em quem nenhum de nós, eleitores comuns, tínhamos votado e que assumira devido à morte de Tancredo Neves, em quem também não tínhamos votado. Pelo menos ambos eram civis.
     Eis que a empresa foi vendida pelos antigos proprietários e comprada por um economista e empresário de soja. Gente que tinha dinheiro, mas nada a ver com jornalismo. Seus parentes todos ganharam cargos nos veículos do grupo. Conta uma lenda que a mulher do novo patrão, indicada ao cargo de diretora da TV, queria acarpetar o piso dos estúdios, porque achava muito feio aquele cimento por onde rodam suavemente os tripés das câmeras. Não sei até que ponto é verdade.
     A direção da rádio ficou com o irmão do empresário, um arquiteto por formação. Numa bela tarde, ao chegar para trabalhar, fui chamado à sala do arquiteto, digo, do diretor. Em lá chegando, do alto de seus cerca de 1,55m, o arquiteto, digo, o diretor, sem nem me convidar a sentar, jogou na minha frente, sobre sua mesa, uma das notícias que haviam sido veiculadas na última edição do Correspondente Renner do dia anterior. Era uma notícia daquelas pra completar os 10 minutos do radiojornal, que eu mesmo havia redigido, e que cujo fato até já tinha sido noticiado na Veja. Ela falava de um então ministro da Justiça que voltava ao Sul todos os fins de semana em jatos da FAB.
     Nem preciso dizer que, a partir desse dia daquele abril, deixei de fazer parte dos quadros de funcionários da Rádio Guaíba, sob a alegação de que o ministro pedira a cabeça do responsável (no caso, a minha).
     Indignado (mas não inconformado), no dia seguinte, falei com um conhecido, assessor direto do ministro em questão. Ele disse que o ministro não sabia nem da notícia, quanto mais que teria pedido a demissão.
     Acreditei. Esse seria mais um caso daqueles em que o súdito é mais realista do que o rei.
     Era 1988, ano de eleição para prefeitos e vereadores. A outra grande empresa de comunicação do Estado deslocava muitos de seus jornalistas para uma central de eleições. Precisava, então, de gente que segurasse o piano do cotidiano. Fui chamado para ser um desses carregadores, das seis da manhã até uma da tarde, temporariamente, até as eleições.
     Nessa empresa, na qual também assumia como editor, já foram me avisando: só se fala em greve quando ela realmente começar; procura-se não falar no PT, a não ser que seja fato muito relevante, etc. Acontece que um dos candidatos à prefeitura era Olívio Dutra, do PT; Acontece, também, que, naquela época, diariamente servidores públicos, petroleiros metalúrgicos e trabalhadores de outros setores viviam ameaçando entrar em greve. Impossível viver-se sem falar no PT e em greves, naquela ebulição toda.
     Várias vezes fui chamado à sala de uma das tantas pequenas autoridades daquela empresa pra ser repreendido por ter violado as regras e, consequentemente, a liberdade de expressão do senso comum, casualmente contrária à liberdade de expressão do grupo.
     Finalmente, numa misteriosa virada das pesquisas, Olívio Dutra foi eleito prefeito. Acabou-se meu período de jornalista temporário. Passados alguns dias, recebo o telefonema de uma daquelas pequenas autoridades me convidando para trabalhar permanentemente na função que exerci temporariamente. Agradeci a lembrança e recusei amavelmente. Não disse a ele, mas esse tipo de jornalismo não me seduzia.
     Muito se tem falado na tal liberdade de expressão. Grandes veículos e importantes (se é que dá pra se classificar assim) jornalistas têm gritado aos quatro cantos que o presidente Lula quer acabar com a liberdade de expressão no Brasil. Comparam-no com Hugo Chavez, que costuma fechar emissoras que não têm o mesmo pensamento dele. Então eu pergunto: como é que fica a liberdade de “expressão” do presidente Lula? Essas empresas e esses jornalistas se julgam representantes da opinião pública, que dá ao presidente Lula 80% de popularidade. A quem representam, então, esses veículos e seus servis jornalistas? Por óbvio, a si mesmos.
     Na semana que passou, aconteceu um fato interessante. O assunto não é novo, foi reproduzido e repercutido em vários blogues e sites de notícias, mas remete ao título desta minha crônica.
     O jornal “O Estado de São Paulo” declarou apoio a José Serra desde o primeiro turno.Tudo bem. Eles têm essa liberdade de se expressar. A campanha de Serra diz que Dilma e o PT são contra a liberdade de expressão e que querem controlar a imprensa. A psicanalista Maria Rita Kehl, colunista do Estadão, publicou, no dia anterior ao primeiro turno, um artigo chamado “Dois pesos...” sobre a desqualificação do voto popular. No texto, a colunista considerou digna a atitude do jornal de declarar explicitamente seu apoio a um dos candidatos. De resto, implicitamente, Maria Rita aplaude a popularidade de Lula, os programas sociais do governo e critica aqueles que menosprezam o voto dos pobres.
     A coluna finaliza assim:


Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

     A colunista Maria Rita Kehl foi hipocritamente demitida do Estadão. Que bom pra ela não mais fazer parte daquele grupo que pretende ser da camarilha de Serra.
     Assim são muitas das empresas de comunicação no Brasil: faça o que eu digo mas não faça o que eu faço. Noutras palavras: use a liberdade de expressão mas critique os que a usam.

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     Leia a coluna “Dois pesos...”, de Maria Rita Kehl, no Estado de São Paulo
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101002/not_imp618576,0.php
     Leia a entrevista da colunista após sua demissão
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4722228-EI6578,00-Maria+Rita+Kehl+Fui+demitida+por+um+delito+de+opiniao.html

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