Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sábado, 30 de julho de 2011

2097: do meu bisneto pro meu trineto

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     Desculpe estar escrevendo, meu filho, mas é que a máquina holográfica estragou e não tive tempo de encomendar outra. Para de ler agora e usa o leitor de texto. É até melhor, pois assim me ouves sem deixar tuas tarefas. Pra que irias querer olhar pra essa minha velha cara e esse meu corpinho com mais de meio século?
     Tua mãe, tua irmã e eu ansiamos tua volta. Estamos loucos que termine logo esse longo estágio prático. Tanto tempo longe da família só pra trabalhar noutro planeta! Até parece coisa do tempo do teu avô. Não sei se já te contei, mas, no tempo dele, quem se formava em Direito não poderia exercer a profissão se não fizesse uma prova para habilitar-se perante o conselho profissional (chamava-se Ordem dos Advogados). Acontece que a prova era tão difícil que só passavam cerca de cinco ou seis por cento dos candidatos. E olha que eram uns 120 mil que faziam a prova cada vez, no país todo! Isso, no entanto, é coisa do passado.
     Sei que és bem informado aí em cima (ou embaixo, não sei, é questão de ponto de vista), com notícias diárias e quentinhas da Terra. Não te informam, contudo, sobre as coisas da nossa família. A primeira ruim: teu tio foi multado de novo por estar fumando na rua. Deves saber que, se for pego mais uma vez, perde o plano de saúde por um ano e, depois, tem que fazer todos aqueles exames chatos de novo pra voltar a ter assistência. Não sei até quando vão continuar com esse expediente. Já não bastava terem fechado todas as fábricas de cigarro e proibido a importação de tabaco da África? Depois que descobriram a cura e criaram a vacina contra o câncer poderiam deixar as pessoas voltarem a fumar livremente. Claro, desde que respeitassem lugares fechados, prédios, etc. como sempre foi. Mas na rua? Se um sujeito com mais de 60 como teu tio, que não tomou a vacina, ficar com câncer, grande merda, o tratamento de cura nem é tão dispendioso para o plano de saúde. Em todo caso, o velho rebelde vai ter que ficar ligado e fumar aqueles cigarros fedidos que ele mesmo fabrica só dentro da própria casa. Ainda bem que ele ganha bem, porque a multa é bem alta.
     Enquanto isso, a farmácia daqui da rua está com um movimento fantástico: a última safra de cannabis foi bárbara, o produto é de alta qualidade e o preço baixou. Eu e tua mãe temos fumado uns três por dia. Aliás, eu estava com teu tio quando ele foi pego fumando na rua. Ele ainda disfarçou, jogou o cigarro longe e pegou meu baseado. Mas não adiantou. O mata-rato dele fede muito e o fiscal sentiu o cheiro nele.
     No último fim de semana estive no litoral. O mar ainda não invadiu nossa casa, mas falta pouco. Fui lá pra retirar as últimas tralhas. O chato é que não dá pra chegar perto com o veículo. Tem muita areia úmida e pode-se perder a impulsão e atolar. Dá pena de ver aqueles prédios enormes e luxuosos, onde antes era a beira da praia, transformados em esqueletos. O pessoal dos pavimentos inferiores perdeu tudo. Os dos mais altos não conseguem chegar pra retirar suas coisas. Dizem que ladrões deram um jeito de chegar neles e levaram tudo o que tinha valor.
     Em compensação, na região da fronteira, lá pros lados de Bagé, o deserto tá cada vez mais avançado. Acho que de onde estás deves ter uma visão boa dessa catástrofe.
     O tempo continua quente. Finalzinho de julho e Porto Alegre registra uma média diária de 28 graus. Quando eu era bem pequeno, ainda peguei resquícios de inverno. Me lembro que nessa época tinha dias que fazia 16 ou 17 graus. Outro dia, mexendo numas caixas guardadas na garagem, achei umas fotografias do meu avô. Ele devia ter a tua idade e estava encasacado, com gorro e luvas de lã, na neve, num lugar chamado Bariloche, na Argentina. Lembro também que ele sempre dizia que queria morar no Nordeste, porque não aguentava mais o inverno gaúcho.
     Além da máquina holográfica, outra coisa que estragou aqui em casa foi o sistema de reposição de mantimentos. Cada vez que se dava baixa de alguma coisa — azeite, manteiga, vinho, etc. —, em seguida chegavam duas unidades do mesmo produto, com uma diferença de uns cinco minutos entre a entrega de um fornecedor e de outro. Não sei de onde o computador tirou o segundo fornecedor. Até explicar que não era cavalo, já tinha comido um balde de milho. Finalmente, a administração mandou aqui um técnico do setor de reposição que deu um jeito. Eu atribuo esses problemas a uma interferência cada vez maior das explosões solares nos equipamentos eletrônicos. Enfim...
     Meu filho, vou ter que parar agora porque tá na hora de levar tua avó ao médico. Todos os dias ela pergunta quando vais voltar desse planetinha fajuto, que é como ela chama a estação. A cabeça dela tá meio atrapalhada, mas o corpinho, apesar dos 86 anos, tá em dia. E não desiste de procurar outro marido.
     Muitos beijos e abraços de nós todos. Aguardamos notícias. Tchau!

2 comentários:

vidacuriosa disse...

Bem legal. Fiquei pensando:como estaria o futebol nesse ponto do futuro? Teria o status de religião maior do que tem agora? Por falar em Bagé, e o meu time, o Guarany, teria sido campeão brasileiro em algum ano? Melhor não responder.
Abrs

Clara disse...

Amor, que viagem...! Acho que sobre o Exame de Ordem, continua sendo discutida a inconstitucionalidade...
Muito bom, como sempre!