Achei mais alguns escritos perdidos. Dessa vez não foi numa gaveta, mas sim numa caixa que está em cima do guarda-roupa. Fui procurar o discurso que fiz para a minha formatura e, além dele, achei este texto, que é uma brincadeira com a onomatopeia. Procuro reproduzir nele os sons dos coletivos da década de 70 — época em que eu ainda andava de ônibus — e o jeito de falar de seus tripulantes e passageiros.
Num ponto qualquer, a caminho do centro da cidade, ele chegou estabanado. Um guincho pré-histórico fincou-se nos ouvidos dos que ali estavam. Uma fumaça preta espalhou-se por todos os lados. Pela janela saiu uma cabeça vermelha e uma voz de alto-falante de quermesse berrou:
— Ai ô centro, olhaí! Subinu! Sobi mais! Sobiaína! Lieva!
Se fora, com o barulho e a fumaça era ruim, dentro estava pior. A porta traseira se fechou com um estrondo metálico e ficou mordendo minha camisa.
— Ei, abre atrás!
— Vaum cheganu à roleta!
— Abre atrás!
— Favor facilitá o troco.
— Abre atrás, pô!
PRÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ
— Diesce!
— Abre a porta de trás que eu fiquei preso!
— PFSSSSHSHSHSHHHH.
Finalmente se abriu. Mas não foi porque berrei. Já era outra parada. Fui empurrado degrau acima. Quando consegui virar a cabeça, vi a mancha de graxa que tinha ficado na camisa.
— Podi subi que aína há lugares! Ai ô centro!
— Com licença?
— Com licença?
— Subinu! Um passinho à frente a fila do meio!
— Com licença?
— Passa por cima, pô! Não vê que eu tô, trancado!
— Cavalo...
— Vaum subinu e passanu à frente! Quem não qué passá que dá o lado aí, oh! Pode levá
O calor aumentava a cada nariz que entrava. As janelas estavam todas abertas, mas era não adiantava. Quem estava dentro só saía a muito custo. Quem estava fora só entrava por descuido. E lá ia ele. Buraco dentro, buraco fora, uma apertada num táxi, um palavrão de lá, outro palavrão daqui, — só podia sê muié —, uma travada de seco, uma arrancada também, buraco dentro, buraco fora.
— Cheganu à porta!
— Vai pará! Não precisa se pindurá na campainha!
— Com licença?
— Vaum dexá passá na porta. Vaum dá o ladinho. Óia a fila do meio, um passinho mais à frente do carro!
— Falta dez, moço.
— Não tem troco. Aguarda num cantinho aí. Vaum facilitá as passage!
— Ô, Foguinho! Vamu lá-com essa roleta aí que tá muito amarrado!
— Coperanu e passanu à frente da roleta. Vaum dexá livre a subida! Sobiaína! Lieva!
— Segura!
— Desci mais! Fiiiuuuu.
A batalha estava formada. Narizes contra sovacos, dedões contra calcanhares, cotovelos contra nucas. Traseiros contra mãos-bobas. Ombros contra pernas. Joelhos contra braços.
O suor abundando, as sacolas atrapalhando, o cobrador berrando. O sol não dava folga. Atirava seus raios pelas janelas e frestas. O veículo parecia uma frigideira que fritava nossos miolos. Os vidros dos edifícios brincavam de sol e mandavam reflexos contra os olhos de quem estava do lado da sombra.
Uma curva pra esquerda; uma pra direita. Um buraco. Uma sinaleira. Mais uma parada.
Uí-Uí-Uí-Uí-Uí-Uí-Uííí. PFSSSSSHHHH:
— Sobi! Ai ô centro, ao mercado e há lugares.
— Ai!
— Desculpe...
— Cheganu rápido à saída. Passanu à frente a fila do meio, olhai!
— Segura, moço!
— Diesce! Tem vinte aí?
— Ainda falta um cruzeiro.
— Quanto é que eu te dei aí?
— Sete e oitenta.
— Não, eu te dei oito. Tenho certeza.
— Então conta aqui, animal!
— Animal, não! Pede com modos que eu dô! Tomaí!
— Não quero esse teu dinheiro imundo. Tu já sabe o que fazer com ele!
— Ô, Foguinho, tá misquecendo?
— Lieva! Dieu! Fiiiiiuuuu.
Não sei como sempre cabia mais um naquela coisa. Pra cada um que saía, subiam três. O ar não era mais de oxigênio. Era só morrinha de sovaco, gás carbônico, micróbios e muito calor.
As velhas gordas, de pé, queriam sentar. As sentadas queriam descer. No corredor, três filas, às vezes quatro. A ladainha do cobrador nunca parava e ainda faltava a metade do caminho.
Foi numa curva pra direita que o sol ficou de frente e começou a zombar de nossos olhos. Me arrependi de ter sentado. Não podia olhar pra frente, pois não enxergava. E o pior, o motorista também estava de frente pro sol.
Pra terminar logo esta situação chata, aumentou a velocidade. Uma incrível trepidação tomou conta de tudo. Pelas frestas da tampa do motor saía um calor que, dançando, vinha juntar-se ao já existente. Como consequência, aumentou o suor dos corpos. E o resto também.
— Vaum lá que só fica de fora quem qué! Há lugares no corredor.
— Com licença, meu filho?
— Pô, estas velha. A senhora vai descer agora?
— Não.
— Então aguenta aí.
— Maliducado...
— Ai, ai! Calma! Não se pede mais licença?
— Um passinho mais no corredor óia aí. Sóbimais! Subinu! Vai levanu!
— Momentinho que eu vô descê!
— Segura!
O sol rasteiro atravessava o empoeirado para-brisa, varava a retina e não nos deixava olhar em frente. Não sabíamos quantos indefesos automóveis já haviam sido fechados, quantos sinais vermelhos cruzados, quantos pedestres apavorados.
Deu uma chance e olhei para os santinhos colados na cabine do motorista. Infelizmente não me alentaram esperança alguma. Mais umas poucas paradas e estaríamos no centro. Tomara.
— Moço, não dá pra abrir atrás pra mim descer com o meu marido que não está se sentindo bem?
— Não posso fazê nada, minha senhora.
— Mas eu pago. Aqui está o dinheiro. Não vou conseguir passar pra frente.
— Não dá. Se tem um fiscal da secretaria por aí, vai multá a gente.
— Mas que barbaridade.
— Pô! Abre atrás, o sem-vergonha!
— Cumé quié, cara? Excesso de lotação pode, sair da fila indiana pode, correr desta maneira pode. Pra isso não tem fiscal, né?
— Não posso fazê nada. Pede pro motorista. Cheganu à porta e descenu rápido!
Lá fora talvez não estivesse muito diferente. Quem arriscava pôr o nariz pra fora da janela, mudava logo de idéia. A grande capital respirava mal. Os odores industriais insinuavam-se narinas adentro dos cidadãos.
Aqui, do pequeno executivo engravatado ao operário todo suado, espremiam-se, misturando temperaturas e vapores, formando uma massa disforme e fedorenta. Judeus, cristãos, ateus, brancos, negros, crianças, homens e mulheres... animais, quem sabe...
— Ai ô centro, ao mercado:
PFSSSSHSHSHSHHHHH.
— Aimbora:
Agonia das agonias. Parecia nunca terminar. Condições sociais levemente diferentes, mas a expressão nos rostos era a mesma. Socialismo forçado. Calor — comum de todos. Aperto — comum de todos. Suor — comum de todos. Calor, aperto, suor — transporte co letivo.
— Diesce mais. Vaum aproveitá que é a última parada! Fecha atrás que não entra mais nada!
— Com licença que eu desço nesta.
Diescenu aína! Lieva! Dieu!
PFSSSSHSHSHSHSHHHH! CLANG! BROOOMMBROOOMMMMMMM!
— Última parada, a primeira coisa sensata que o Foguinho disse. Só mais uns segundos e seria o fim da linha.
— Vaum aproveitá e ir passanu a roleta. Óia o trocado na mão.
— Cume que eu vô passá com tudo trancado?
— Pobrema teu, cara. Cheganu à frente do carro a fila do meio, é favorrrrr!
Fechou o sinal. Um tempo a mais para que pés, braços e cabeças pudessem se desvencilhar. Olho para o lado e vejo situações semelhantes. Estavam todos eles, os ônibus, cheios. Um pouco abaixo, os táxis. O ronco e a fumaça invadiram célula por célula do meu corpo.
Abre o sinal e todos arrancam ao mesmo tempo. O medo de uma colisão me faz suar a última gota. Ao meu redor, com as caras distorcidas, os passageiros buscando, cada um, ser o primeiro a cair fora.
Uí-uí-uí-uf-uí-uí-uíííí. PFSSHSHSHSHHH.
— Decenu rápido é favorrrr!
Fui levado pelos corpos que se atiravam em direção à porta. Na parada, filas estendiam-se e gente que entrava misturava-se a gente que saía que misturava-se a gente que simplesmente passava.
Corri aproveitando o sinal vermelho e peguei o outro ônibus que já arrancava. Bati com a cabeça no cara que subira na minha frente. A porta se fechou com um estrondo metálico e ficou mordendo minha camisa.
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