Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O ronco


     Não adiantarão insistentes pedidos pra eu voltar a postar textos antigos achados seja em uma gaveta ou numa caixa em cima do guarda-roupa. Definitivamente, este é o último. Se, no entanto, meus seis leitores ficarem muito indignados, escrevo textos atuais com estilo e cenários de cerca de 35 anos atrás.
     Abaixo, então, uma rápida síntese do momento mais importante da vida de Políbio, um velho rabugento em que, invariavelmente, nós, homens, nos tornamos a partir de certa idade.
 
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ronco
     Desde seu casamento, Políbio acordava com um mau-humor que nem ele aguentava. Quando se dava conta de que não valia a pena, tornava-se o gordo normal de antes.
     Pelo menos pra ele o azedume tinha motivo: quando passava da metade da garrafa de cana, falava entre dentes para os gambás amigos que era o ronco de sua mulher que o incomodava de noite. Dizia que, seguidas vezes, acordava sobressaltado e cutucava com força as graxas da consorte com o roliço cotovelo. Em seguida, dormia até novo susto.
     Vinte anos de vida em comum tinham-se ido e Políbio não se acostumara. Matutinamente, o mau-humor; à noite, os sobressaltos.
     Havia vezes em que ele até se engasgava, contava aos amigos. Na metade da garrafa os caras come­çavam a rir. No último gole, Políbio rebentava numa gargalhada gostosa e voltava à vida do bairro.
     A vizinhança gostava muito de comentar o ranço do Políbio. Tudo sem muita malícia. Quando ele descia, ninguém falava nada, nem olhavam. Quando subia, as coma­dres, de avental e vassoura, sorriam e perguntavam Inocentemente como tinha passado a noite. Poli só di­zia “bom-dia” ou “boa-tarde”.
     Querida, sua mulher, trazia sempre uma cara de choro. Não sei se era do berço ou conseguiu-a depois de casar, assim como a gordura. Como as outras mulheres do bairro, era dona de casa por inércia. Sua vida havia sido um só trabalhar-trancado. Nas mãos havia encaixes para o cabo da vassoura, da frigideira, das panelas e da sacola de cordas. Um eterno chinelo arrastava-se sob seus pés. Sua fala mansa, contínua e chorosa cansava a quem com ela dialogasse.
     Na vida de Políbio e Querida houve uma vez um menino. Coisa quase sem importância, pois durou pouco. Mal comprou uma guitarra usada já arpejou a valsa do adeus. Enamorou-se do rock para nunca mais voltar.
     Cansado da rotina, o velho barrigudo, pensio­nista do INAMPS, resolveu dar uma de guri: estendeu um pouco mais seu domínio geográfico e foi até a avenida conhecer Mariana. Era uma mulata de sentar em duas ca­deiras e virar o prato de sopa. A caduquice que o fazer-nada trouxe ao Poli levou-o à paixão absoluta. Todas as tardinhas vestia sua roupa menos velha e ia pra avenida encontrar-se com Mariana. De lá, iam pra pensão.
     Mas Poli era um cara meio moralista. Nada de passar a noite fora e muito cuidado pra não ser visto. Era uma ginástica. A mulata era exigente, sempre querendo mais. E a paixão aumentava a cada dia.
     À noite, seus sobressaltos tornaram-se mais frequentes. Querida andava chateada. O mau-humor contagi­ou-a, tantas eram as vezes que acordava sendo sacudida. Seu braço esquerdo já tinha uma marquinha roxa de tanto cotovelada.
     O Poli ia pro bar e desabafava com a garrafa e os amigos. Dizia não aguentar mais os roncos da Querida. Era tal de pesadelo a noite toda. Nem falava mais com a mulher. Só ia em casa pra comer e ter pesadelos.
     E a Mariana dando em cima. Era um desembolsa grana daqui, desembolsa dali que o Políbio tava ficando naquela dureza. Mas era algo muito especial. Deixou, com muito sacrifício, de visitar o boteco, mas não deixou a mulata.
     Teve uma idéia: e se Querida morresse? Ele venderia o barraco, compraria outro e levava Mariana pra casa. Saía com a vantagem de sustentar um só “lar” e, o melhor, não ouviria mais roncos. Mas como conseguir isso?
     Doente ele não era. Só resta uma maneira. Remorso? Nem pensar. Já não podia mais acomodar as suas graxas com as da mulher. Era uma convivência impossível que ele ia tolerando. Desquite não valeria a pena. Ah! Aquela crioula redonduda, bem onde devia ser...
     Entre mais umas noites mal dormidas Poli achou a maneira mais conveniente: veneno a prazo. E foi numa far­mácia distante comprar um vidro de veneno.
     Noite após noite, colocava umas gotinhas no chá de Querida. Dia após dia, a indisposição dela crescia. Tonturas, enjôos e desmaios. E o Poli a dizer que não era nada, não precisa de doutor, é a menopausa...
     As repentinas acordadas continuavam sempre cres­cendo. As sacudidas cada vez mais violentas. Políbio ouvia o ronco mais forte, cutucava a mulher que só fazia “hum”. E pensava num momento próximo qualquer em que ele a sacudiria e sua cabeça tombaria para o lado do traves­seiro. Já tinha até comprador pro seu barraco e outro em vista. Faltava pouco pra Mariana ser sua, só sua. Tudo aquilo do seu lado, o dia todo, a noite toda — e sem roncos. Oh, vida...
     E foi numa noite quente e suarenta que Querida levou sua gordura pra baixo da terra. Bem como Políbio imaginara: uma cutucada no rim esquerdo, e a cabeça tombou com o ronco mortal.
     Foi tudo muito rápido: no atestado de óbito, uma insuficiência cardíaca; pra vizinhança, uma pena; pro Poli, a independência.
     No dia seguinte, Políbio já dormiu com a crioula na pensão. Na outra semana, despediu-se da vizinhança e foi pro seu barraco novo. Pequeno e sem muita coisa por dentro, que era pra mulata não se cansar e pra não gastar muito dinheiro. Aquela mulher foi feita pra outras coisas e não pro trabalho de dona de casa.

     Algum tempo se passou e Mariana voltou à antiga esquina de todos os dias. Quando lhe perguntavam por que havia sumido por uns tempos, dizia que fora morar com um velho barrigudo que tinha algum dinheirinho, mas que passava a noite acordando sobressaltado, dando uma cutucada nela e logo continuava roncando a todo volume. Não aguentou.

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