Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Vai tudo bem, obrigado.

     Semana passada fui numa formatura. Nesta, vou a outra. Ambas do curso de Direito.
     Formaturas, hoje em dia, são um verdadeiro show. Parece até um jogo da NBA ou de futebol americano. Um espetáculo.
     E acho que estão certos os formandos. Antigamente era uma coisa muito chata, sem qualquer atrativo. Era bom (ou quase) apenas para quem estava se formando e seus orgulhosos familiares. Me agrada, hoje, ver aquele set list musical variado, com os formandos procurando mostrar sua individualidade através do trecho de uma música. As mais tocadas são as eletrônicas que embalam as baladas do momento. Algumas músicas se repetem, como I gotta feeling, do Black Eyed Peas. A personalidade desses formandos que escolhem a mesma música deve ser a mesma. Daqui a alguns anos, quando virem o vídeo da formatura, com certeza se arrependerão de terem escolhido esse tema, em vez de algum que continue dizendo algo para sempre.
     Quando meus filhos se formaram — Direito e Relações Públicas — já era assim. Lembro de ter pago uma nota para uma produtora fazer a produção (óbvio, né!) de tudo: desde os convites, passando pelas várias festas e encontros, as fotos, o vídeo e a solenidade.
     Enfim, lembrei-me da minha formatura. Era 1978. No Brasil imperava a ditadura militar. O déspota de plantão era o general Ernesto Geisel. Todos já conhecem a história. Caso contrário, deveriam conhecer.
     As solenidades de colação de grau ainda eram tradicionais: todo mundo sentado quietinho, um respeito muito grande, um cerimonial, digamos, “careta”. Mudamos um pouco aquilo tudo, mas sem pagar produtora alguma. Fizemos nós mesmos. Colocamos música no show, e não era o hino nacional. Entramos correndo no Salão de Atos da PUC ao som da abertura da Guilherme Tell, interpretada por Walter Carlos, da trilha sonora do filme A laranja mecânica. Depois, conforme o momento, tocavam músicas de Chico Buarque, especialmente Cálice e O que será. Eram músicas que representavam o momento pelo qual o Brasil passava.
     Antes, no entanto, depois de muita briga entre futuros jornalistas, publicitários e relações públicas, chegamos a um consenso sobre como seria a formatura, desde os convites até a cerimônia da colação de grau. Nem preciso dizer que valeu a opinião dos jornalistas. Os publicitários nem estavam aí e os RPs, como minoria, tiveram que nos engolir.
     O tema do evento mostrava os formandos como uma nova safra de hortifrutigranjeiros. O convite foi confeccionado em forma de um pequeno jornal, com oito páginas (a capa reproduzo abaixo). O editorial, na página 2, falava das expectativas dessa nova safra em relação momento atual brasileiro; na página 3 tinha um anúncio dos formandos de Publicidade e Propaganda; na página central estavam os nomes dos formandos; na página 6, um texto dos RPs; na 7, vários textinhos da turma de jornalismo e uma charge (feita por mim); na última, uma reflexão sobre a educação, o ensino, o mercado, etc.
     O discurso foi um tema também polêmico. Foi à votação. Os RPs apresentaram um e os jornalistas, outro. Venceu o dos jornalistas, que foi redigido por mim, fazendo as vezes de ghost writer da turma.
     Escrevi, mas não li. Quem o leu da tribuna foi um colega, o Eliseu Pacheco, que tinha uma bela voz (ainda tem). Naquela época era locutor numa rádio de Porto Alegre. Depois, transferiu-se para São Paulo e não mais o vi. Por um tempo, ainda ouvia sua voz em comerciais de TV. Agora, não mais.
     Abaixo, após a reprodução da capa do convite, o discurso de formatura da Safra 78. Bem abaixo, a charge da seção dos jornalistas no convite-jornal.
safra78
A capa do convite-jornal

     Sosseguem, não vai doer. Vai tudo bem, obrigado.
     Estamos vivendo num mundo em que as coisas só acontecem lá fora, os males só aparecem para os outros: na India estão passando fome; no Irã não querem mais Xá; no Líbano estão em guerra. Nós estamos em paz, vai tudo bem, obrigado. Aqui, além da tranquilidade, é tudo muito bonito. E muito prático também. Desenvolvimento altamente tecnológico, progresso... Progresso. Vejam as comunicações, por exemplo: aconteceu lá na Tailândia, segundos depois estamos sabendo aqui. Seja o que for, aonde for, somos informados na hora, via-satélite. Micro-ondas, lasers e outras ondas cruzam sobre nossas cabeças em intermináveis monólogos eletrônicos. Todos nós sabemos de tudo sobre o mundo, principalmente o que está na TV, no rádio, nos jornais e revistas. Tudo o que se possa imaginar sobre o mundo que nos rodeia. Mas tem uma coisa que nem todos sabem ou do que sabem muito pouco: a realidade brasileira.
     É claro que o mundo nos interessa — estamos nele — mas, em primeiro lugar, deveríamos saber sobre nossas coisas. Você sabe, realmente, como é a vida do brasileiro?
     É tudo muito claro: temos dois partidos políticos para escolher, temos dirigentes pra não escolher, temos pacotes pra nos encolher... E por falar em escolha, como vai o nosso irmão nordestino? E o seu primo do Amazonas? E o seu tio do Mato Grosso? Como vão nossos empregos e nossos salários? Vai tudo bem, obrigado...
     Obrigado a ir tudo bem!
     É... Todo mundo pensa que sabe de tudo e não dói nem um pouco. Será que vai doer em vocês se souberem que a opinião pública é habilmente manipulada por minorias privilegiadas?
     Que, nos últimos anos, no Brasil, a censura impediu a denúncia de medidas que intensificaram a exploração econômica, a dominação política e a marginalização de segmentos preferenciais da sociedade?
     Mas vai tudo bem, obrigado. Itaipu, carnaval, energia nuclear, futebol, pólos petro-carbo-químicos, obrigado...
     Todos sabemos que o direito social à informação é conquista dos povos e não pode ficar nas mãos do arbítrio governamental ou privado. Todos sabemos que a propaganda pode e deve ter um papel formador e não deformador, que tem o dever de enriquecer e dignificar o ser humano. Todos sabemos que relações públicas é a preocupação com a integração de uma empresa ou instituicão com seu público.
     Sendo assim, dói em nós, jornalistas, saber da existência de uma estrutura montada para impedir o acesso da população às informações básicas necessárias à compreensão e transformação da realidade. Dói em nós, publicitários, saber que existe certa propaganda mentirosa, usada como forma de alienar pessoas, desinformar, anestesiar e imbecilizar em massa. Dói em nós, profissionais de relações públicas, saber que falsos profissionais manipulam o público com brindes e sorrisos e que vai tudo bem, obrigado.
     Hoje, vamos sair daqui com o grave compromisso de não sermos instrumentos passivos desse poder devastador.
     Nós, jornalistas, nos propomos a protestar contra a violação de um dos direitos fundamentais da sociedade, que é o de informar e ser informada. Nos propomos a defender a liberdade de manifestação, não como prerrogativa para nós, mas sim como um direito de toda a sociedade de manifestar suas aspirações e debater suas opiniões.
     Nós, publicitários, seremos co-responsáveis por tudo aquilo que a propaganda fizer ao nosso povo, à nossa cultura, ao nosso país. Nossos compromissos não devem se esgotar apenas na venda de um produto, serviço ou ideia. Nos propomos a participar ativamente pela expansão do mercado interno e, consequentemente, por um maior número de consumidores, que são o objeto do nosso trabalho
     Nós, de relações públicas, nos propomos a orientar a conscientização dos públicos internos das organizações estatais ou privadas, para que realmente prestem seus serviços em favor de uma coletividade e que possam, assim, garantir a verdadeira integração da empresa na comunidade a que pertence. Nos propomos a fazer valer o processo de troca de ideias e do diálogo entre público e empresa, visando o bem comum.
     Nós todos, jornalistas, publicitários e relações públicas sabemos que estamos entrando num sistema alheio aos nossos ideais, um sistema preocupado apenas com o capital, custe o que custar aos trabalhadores. E, como trabalhadores da comunicação, reconhecemos o papel estratégico que temos no processo de transformação social. Por isso, até agora, temos sido alvo de castrações. Apesar de nossas especializações diferirem um pouco na forma, mantêm o mesmo conteúdo.
     Até hoje, estivemos unidos, mas e daqui pra frente? Será que conseguiremos permanecer juntos na luta pela construção de uma sociedade democrática, onde não existam fantasmas, onde não haja medo disfarçado de tranquilidade, desemprego, fome e forças ocultas?
     Se conseguirmos, aí sim, estará tudo bem, obrigado.
     ... mesmo que doa.

chargeA charge da página 7 

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