Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







domingo, 16 de janeiro de 2011

Atropelamentos


     Finalizando a série “textos antigos encontrados numa gaveta”, um texto triste e curto.


     Para Bebeto, a repressão não era mais sentida. Era visível. Trancado no quarto, obrigado a estudar, viu pela janela chegarem os guardiões da liberdade e da segurança. Capacetes brancos e cacetetes. Começou a chorar.
     Entre a multidão que passava na rua, uns paravam para olhar; outros, simplesmente olhavam. As gotas da umidade de agosto escorregavam pelos muros e telhados, fazendo jogos malabares até, atônitas, estatelarem-se no chão.
     As árvores quase desfolhadas, plantadas nas lajes, não se importavam com o que muitos diziam a respeito delas: bem que poderiam haver postes no lugar dessas árvores frias. Eles carregariam fios. Elas, o que fazem?
     Alheio ao movimento que se formava, um cão sarnoso tentava expulsar algumas das pulgas que furtavam os últimos glóbulos do seu sangue. E Bebeto só espiava. Do seu quarto não enxergava a rua principal. Continuava chorando.
     Um policial – bigode, costeletas, cabelos com brilhantina, óculos escuros, casaco marrom, calça verde e camisa floreada — um verdadeiro uniforme de quem costuma andar à paisana seria correto dizer — chamou um padre que passava. O reverendo olhou para os automóveis engarrafados que buzinavam e foi até onde o policial lhe levara. O dono da mercearia, de guarda-pó branco, falava, à porta da loja, com uma cliente gorda. Quase todas o eram. Ninguém entrava. Ninguém comprava nada.
     Na rua do lado parou um carro. Trazia um repórter e um fotógrafo. Bebeto os viu de seu obscuro posto. Ficou excitado e soluçou.
     Já era tarde na tarde cinza. O movimento parecia ter normalizado. Os automóveis buzinavam menos. O carro da imprensa e o da polícia estavam saindo. Bebeto viu, em sentido contrário, passar uma ambulância de sirena aberta, com o sinal fechado. Já tinha parado de chorar, mas seus olhos ardiam.
     Ouviu o silêncio por uns instantes. Sua mãe não estava mais costurando. O ruído da máquina havia cessado. Caminhou devagar até a porta do quarto e abriu-a. Não estava mais chaveada por fora. Passou silenciosamente pelo corredor e alcançou a porta do apartamento. Sua mãe não estava por perto. Não o vira sair. Estava ansioso para saber o que acontecera.
     Desceu correndo os dois andares que o separavam da rua. Sem parar de correr, atravessou em direção à pequena multidão ociosa.
     A mãe de Bebeto foi ao seu quarto. Não encontrando o filho, olhou pela janela e viu chegar o carro da polícia e o da imprensa, pouco antes de passar uma ambulância de sirena aberta, com o sinal fechado.

6 comentários:

Luis Felipe R. Freitas disse...

Como assim, "finalizando a série"?

/a><\"voz do mestre Yoda">> A gaveta está na tua cabeça, tu és a gaveta.<</<<close quoting//

Abraços!!!
No aguardo por mais textos inspirados pela "antiga gaveta".

Sonia Rivadávia disse...

Estas crônicas do quotidiano estão cada vez melhores, boas do começo ao fim. O David Coimbra que se cuide.

Aldo Jung disse...

Hehe, Felipe, o Yoda está certo.

Aldo Jung disse...

Obrigado, Sonia.

Maria Célia Santos- Ijuí-RS disse...

Adorei, adorei,adorei. Continues escrevendo tá???

Aldo Jung disse...

Puxa, Maria Célia, assim vou acabar ficando exibido...
Obrigado!