Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sábado, 8 de janeiro de 2011

Insônia



     Estou de volta com mais um episódio da série “textos antigos encontrados numa gaveta”.

     Ele já havia assistido ao último filme velho que passara na televisão. Os capítulos finais do livro de ficção foram devorados em pouco tempo. As luzes da casa estavam todas apagadas. A mulher de seus anos passados dormia a seu lado, profundamente. Atirou a cabeça contra o travesseiro que supunha lhe fosse aprazível. Fechou os olhos. Dois a dois, os tique-taques foram sendo contados.
     A quietude do sono não vinha buscá-lo. A viagem para a terra da fantasia, do sonho, custava a anunciar-se. O tique-taquear do carrilhão explodiu numa melodia imponente que veio despejar-lhe nos ouvidos alguns quinze minutos. Poderiam ser quaisquer quinze minutos. As horas já se tinham perdido e ele as queria procurar.
     Cansado de lutar contra os lençóis e de cabecear o travesseiro, sentou-se e tateou a mesa de cabeceira até encontrar o maço de cigarros e os fósforos. O clarão do fósforo aceso berrou para a escuridão enquanto durou a sua curta vida. Recostou-se. Agora, só uma ponta vermelha do cigarro apenumbrava o ambiente. A cada tragada, as curvas da gorda mulher apareciam, avermelhadas, e desapareciam. Ela ressonava.
     Tudo aquilo lhe estava sendo muito penoso: a mulher ressonante, o escuro, os espaços de silêncio. Acabou-se o cigarro e a fumaça da última tragada envolveu um espectro claro e disforme que lhe chamou a atenção. Não sabia o que era, como era, mas estava ali e parecia chamá-lo. Era um espectro faceiro, que dançava contorcendo-se ao embalo do ar tépido. Poderia até estar rindo. E rindo dele, o insone.
     Tirou o lençol de cima do corpo molenga, estirou as pernas para baixo e ficou sentado na cama. Meteu os cotovelos nos joelhos e a cabeça confusa entre as mãos. Impelido por um desejo desconhecido, calçou os chinelos e precipitou-se na escuridão. Perseguiu o fantasma que atravessara o vão escuro da porta, o corredor e a sala. Parou para ao som daquela melodia que novamente saía devagar e preguiçosamente do carrilhão. As notas saltavam da parede e iam cair aos seus pés, dizendo lhe que valiam por alguma hora certa. Mas ele não sabia qual delas, pois não as contara.
     Parou de cara para a porta. Girou a chave duas voltas para a direita. A porta abriu-se e seus olhos, desacostumados à luz, contraíram-se. A lâmpada de mercúrio do poste plantado à frente da casa lançou-lhe, insistentemente, seus raios azulados. Esperou um pouco. Vencido o súbito clarão, saiu e olhou a rua, para cima e para baixo. Desceu-a desviando-se dos buracos da calçada. Não fechou a porta e nem reparou que usava seu velho e desbotado pijama de todas as noites. Já não pensava da mulher, no escuro e no espectro.
     Na esquina com a avenida principal ficou em dúvida: pra que lado ir? Parecem iguais. O lado esquerdo ele conhecia bem, passava por ali todas as manhãs quando ia ao trabalho. O direito parecia ser melhor. Convicto de que era, seguiu para lá.
     Algumas casas de comércio, muitos bares, umas boates e letreiros luminosos compunham a multidão daquela hora. Um canteiro de cimento com árvores que nunca cresciam dividia a avenida em dois riscos pretos que desapareciam numa curva.
     Ouviu, por trás, o ronco abafado de um automóvel que se aproximava e que passou por ele. Jovens algazarreiros lotavam o lento veículo. Segundos depois, suas vermelhas lanternas traseiras sumiam na curva, fundindo-se com a avenida que também desaparecia lá. Não fosse o rastejar de uma cortina de ferro, o silêncio seria completo. As luzes coloridas dos letreiros acendiam e apagavam, lançando raios matizados no chão, nas vitrinas, nos seus olhos. Caminhava com as mãos nos bolsos, os chinelos xaque-xaqueavam no chão.
     Achava estranho aquelas vitrinas abertas, expondo mil bugigangas, os luminosos piscando e ninguém na rua. Ninguém passando ou saindo, ou entrando, nos bares, nas boates. Ele queria uma noite especial. Nesta hora, nas outras noites, estava sempre dormindo. Continuou a caminhar para não sabe onde, desgostoso com as vitrinas, os luminosos, bares e boates, com as noites e suas pessoas ausentes, desgostoso consigo.
     As luzes coloridas que brincavam com o asfalto iam, aos poucos, apagando-se. Os luminosos animados tornavam-se raros, deixando lugar a outros mais simples. O asfalto ganhava sua cor natural a cada lâmpada que deixava de brilhar. Dos vidros saíam arco-íris de reflexos. Parou e olhou para trás. Não tinha noção do que já caminhara e do quanto ainda lhe faltava para chegar nem sabe aonde.
     De repente voltou a pensar na mulher, no filho que ela pôs fora e no seu quase mofo casamento. Como seria bom poder chegar ao fim desta avenida da vida, cheia de luminosos artificiais, de ninguém nas ruas e vitrinas morrinhentas. Quisera voltar e recomeçar tudo, ir para outro lado. Já estava envelhecido e alienado. Sempre fora um desligado. Fez tudo da maneira mais simples e que não lhe desse trabalho: nasceu de cesariana, jogava de goleiro com a gurizada, estudou em colégio pago, namorou a primeira que lhe acompanhou ao cinema sem levar junto a mãe, casou com aquela que lhe deu os lábios no primeiro encontro, estudou Direito e trabalha há muitos anos com o velho tio, no escritório de advocacia. Agora, pela primeira vez, tenta uma coisa nova: na avenida seguiu para a direita por não conhecê-la. Continuou seu caminho. Estava convicto de que algo mudava.
     Encontrou um guarda-noturno dormindo sentado. Tinha um relógio pendurado no ombro e o chão estava cheio de pontas de cigarro. Queria pedir-lhe um cigarro, mas resolveu não incomodá-lo. Logo seria manhã e ele acordaria. Afinal, por que um guarda-noturno teria de ser diferente das outras pessoas que dormem à noite?
     Parou para ler os cartazes que envolviam os postes. Eram cartazes de bailes, deputados, vereadores, loções e teatros. Um cartaz de uma peça teatral chamou sua atenção, dizia: NÃO ADIANTA FUGIR, A AMEAÇA ESTÁ DENTRO DE VOCÊ! Apesar de não lhe ter faltado vontade, ele não correu. Seguiu no seu passo arrastado, vadio. O asfalto dera lugar a paralelepípedos irregulares.
     Entre as casas, agora, havia espaços maiores, terrenos vagos. As pedras do chão falhavam e, em poucos passos, ele pisava em terra vermelha. Logo, a trilha desapareceu. As casas não tinham mais um lugar certo. Umas estavam de frente, outras de lado e até havia algumas de costas. Caminhava entre jardins e quintais, sentia-se um intruso. Parou à frente de uma sepultura de criança. Rezou aos pés daquele monumento ao fracasso da vida.
     Levantou-se e olhou para os lados. Não viu mais o clarão da avenida. Sentiu-se em meio a um grande deserto. Um vulto assanhado, faceiro, veio dançando ao seu encontro.
     Lembrou-se do seu quarto escuro, da falta de sono. Não sabia o que era aquele vulto, mas o foi seguindo até os raios do sol entrarem pelas fendas da veneziana.

3 comentários:

Anônimo disse...

Quase chorei...Parabéns

Aldo Jung disse...

Valeu! Obrigado!

nightrider disse...

Ótimo texto!Há muito não lia algo tão profundo!E acredita que eu me às vezes me pego insone caminhando pela noite adentro?