TRÊS leitores deste modesto blog — um número incrível — postaram comentários ao texto “Atropelamentos”. Eu dizia que esse post finalizava a famosa série “textos antigos encontrados numa gaveta”. Um dos leitores questionou: “— Como assim, ‘finalizando a série’”? Além disso acrescentou um comentário: “A gaveta está na tua cabeça, tu és a gaveta.” Outra leitora disse que “Estas crônicas do quotidiano estão cada vez melhores, boas do começo ao fim”. Por fim, a terceira lascou: “Adorei, adorei,adorei. Continues escrevendo tá?”.
Tenho que concordar: em time que tá ganhando não se mexe. Então lá vai mais um. Antes, porém, uma explicação de como surgiu o texto.
Logo que casei pela segunda vez, em 1978, por três anos morei em São Leopoldo, mas continuei trabalhando em Porto Alegre. Fazia o trajeto diariamente de ônibus. Todos os dias estava na mesma parada, na mesma hora da manhã, esperando o mesmo ônibus, com o mesmo motorista e os mesmos passageiros. Era uma rotina infernal. Naquele tempo se podia fumar nos ônibus que faziam as viagens entre os municípios da Região Metropolitana. Numa dessas viagens ocorreu-me escrever sobre uma de tantas coisas que poderiam acontecer nessas viagens, com qualquer um dos passageiros. Quando mostrei o texto para minha mulher, logo depois de escrevê-lo, ela chegou a ficar com ciúme, acreditando ser um fato que pudesse ter acontecido comigo.
O título tem dois sentidos: um pela escrita, outro pelo som. O primeiro, vai no próprio título; o segundo, ao final.
Tenho que concordar: em time que tá ganhando não se mexe. Então lá vai mais um. Antes, porém, uma explicação de como surgiu o texto.
Logo que casei pela segunda vez, em 1978, por três anos morei em São Leopoldo, mas continuei trabalhando em Porto Alegre. Fazia o trajeto diariamente de ônibus. Todos os dias estava na mesma parada, na mesma hora da manhã, esperando o mesmo ônibus, com o mesmo motorista e os mesmos passageiros. Era uma rotina infernal. Naquele tempo se podia fumar nos ônibus que faziam as viagens entre os municípios da Região Metropolitana. Numa dessas viagens ocorreu-me escrever sobre uma de tantas coisas que poderiam acontecer nessas viagens, com qualquer um dos passageiros. Quando mostrei o texto para minha mulher, logo depois de escrevê-lo, ela chegou a ficar com ciúme, acreditando ser um fato que pudesse ter acontecido comigo.
O título tem dois sentidos: um pela escrita, outro pelo som. O primeiro, vai no próprio título; o segundo, ao final.
A deusa do ônibus
Lá vem ele. Vou chegar bem na beira da calçada pra ser o primeiro a entrar. Bah! Hoje é segunda-feira, acho que vem mais cheio. Taí. Com licença. Até que nem tá tão cheio. Tá lá meu lugarzinho de sempre. Agora, boto a bolsa no outro banco e ninguém senta. São mais duas paradas. Na terceira ela entra e senta do meu lado. Hoje eu falo com ela. Não dá mais pra ficar nesta placidez.
Já a estou vendo na parada. Tomara que seja a primeira a subir. Parou. Opa! Não enxergo quase nada. Subiu! Putz... Aquele alemão subiu na frente. Ela vem atrás. Linda, linda... Roupa nova, bolsa nova. Hum! Grandes festas no fim-de-semana. O cabelo ainda guarda vestígos do que foi um penteado diferente. Bacana, hein! Acho que li essa expressão em algum lugar: “guarda-alguns-vestígios-do-que-foi...” Tenho que ler mais. Quando falar com ela tenho que dizer que já li isso, já li aquilo, gosto de Fulano... Ela sempre traz um livro pra ler na viagem. Ai, aquele corpinho sob meus braços. Ih! O alemão vem olhando pro meu lado. Não, não, sai, sai! ...azar. Fica pra amanhã. Ô, alemão desgraçado.
Ela deve conhecer todo mundo. Cumprimenta todo mundo. Lá tá ela, do outro lado, bem pertinho, conversando com aquele cara. Bem que eu podia ser ele... Que sorriso... Aqueles dentes mordendo a pontinha da minha orelha e eu dizendo: “Clarice, Clarice, meu amor... Ela tem cara de Clarice. Poderia ser Cláudia também. Sei lá, não quero me iludir quanto ao nome, pode ser que até seja um nome feio. Isso não interessa. O que vale é que ela é linda. Gostosa!
Hoje ela nem tá lendo, só fica de papo com aquele cara. Acho que é só amigo dela. Nunca vi! Todo mundo se conhece nesta cidade. Só eu que não conheço ninguém. Não conheço esta coisa linda. Mas amanhã eu vou conhecer. Quando ela sentar do meu lado, se estiver lendo, pergunto sobre o livro, digo que queria comprar mas achei que blá-blá-blá, etc. Se quiser fumar, acendo o cigarro dela, peço licença pra fumar ao mesmo tempo, olho bem dentro daqueles olhos mansos, fico desejando aquela boca úmida... Ou então começo a falar da chatice de ter-se que viajar todos os dias — ida e volta — do engarrafamento, dos acidentes, do cobrador, da velocidade. Bem...
Pô! Acabei dormindo e não pude prestar atenção na conversa dela com o cara. Estamos chegando — que saco! — agora ela desce e vai pra outro lado depois de acender um cigarro... E se eu for atrás e falar com ela na rua? Não. Isso é meio baixo nível. Ela não ia topar. Tem que ser aqui mesmo, amanhã.
Poderia ter sido ontem. Pena que perdi o ônibus das sete. Ela deve ter ido nele. Subiu com aquele sorriso branco, cumprimentando todo mundo. Se eu estivesse naquele ônibus, bem que ela poderia ter sentado do meu lado. Mas eu sou um babaca mesmo, devia ter aproveitado na primeira vez que a vi. Tava ali, sentadinha do meu lado e eu só olhei pra ela duas vezes: quando entrou e quando saiu. Devia ter fixado meu olhar nos olhos dela quando pediu licença pra sentar. Ah, se fosse agora... Eu deveria ter sabido antes que o amor só existe à primeira vista. Lá vem o ônibus. Deixa eu chegar pra frente pra subir primeiro.
Hoje eu vou trocar de lado. Vou sentar do lado direito pra ver se dá sorte. Droga! Ta meio vazio. Tem muito lugar sobrando. A chance é de que ela sente noutro banco. Tenho que confiar na sorte.
Ué... Não tá na parada. Peraí, deve estar, eu é que não vejo. Não, o ônibus nem vai parar, não tem ninguém, não, não... Saco! Mais um dia perdido, dois seguidos. Quantos ainda vou ter que esperar, dois ou até mais. E se ela não vier nunca mais? E se mudou de emprego? E se mudou de horário? Ou mudou de endereço? Não. Deve estar doente. Com esse tempo ninguém agüenta. E ela é tão delicada, tão indefesa. Amanhã é outro dia e, se Deus quiser, ela vai estar na parada, vai pegar o ônibus e sentar do meu lado. Então não precisarei mais curtir esta paixãozinha platônica, que nem quando a gente tava no primário e dizia: “tô namorando a Fulana, mas ela não sabe.”
Não poderia ser melhor, hein! Todos os dias juntos: a gente saía de manhã cedo, viajava junto e passava o dia trabalhando. Depois, à tardinha, voltava junto, ia pra casa dela, jantava, curtia um sofazinho com televisão e velhos na varanda e, finalmente, quando eles fossem dormir, beijos e abraços, carícias e promessas, gemidos e esperanças... Não quero nem pensar.
Por que será que a gente nunca se encontra na volta? Será que ela sai mais cedo do trabalho? Ou mais tarde? Não. Deve estar na faculdade. Tem cara de quem estuda comunicação, relações públicas. É, relações públicas. Fica bem: Clarice, Relações Públicas, morena, olhos pretos, cabelos lisos — não muito compridos — mais ou menos um metro e setenta, sessenta quilos, tudo na medida e tudo pra mim. Só pra mim.
Outro dia que começa cheio de esperança. Hoje há algo mais do que esperança: é quase certeza. Tem que ser hoje. Não vou nem deixá-la respirar: quando sentar ao meu lado vou fazer que já conheço e perguntar o que houve, por que não veio ontem, fiquei surpreso, pois, sendo tão bonita, sua ausência se fez notar e patati-patatá, etc. e tal. Hoje é quinta-feira e tem que dar certo.
Lá tá ela, na parada. Vou espichar o pescoço pra ela notar que estou interessado. Oba! Hoje ela foi a primeira a subir. Sorrindo como sempre, distribuindo sorrisos. Quando ela me olhar vou arriscar um sorriso. Ai... Ai... Enxergou algum conhecido lá atrás... Vou ver quem é. Não conheço. Vem vindo. Olha! Olha pra mim, boneca. Olha pro titio aqui que tá louco por ti. Vem, vem, senta aqui... Não, não, não... Merda! Foi lá pra trás.
Mal me olhou. Nem me deu oportunidade de sorrir. Não me dá chance. E eu cada vez mais tarado, mais louco. Tenho que ficar nessa passividade a vida toda? Tenho que esperar que a sorte a traga pro meu lado? Até quando? Não agüento mais. Amanhã, juro, se ela não sentar ao meu lado, espero que desça do ônibus e vou atrás. Chego e explico tudo.
E se eu falar tudo e ela disser que é noiva? Não, noiva não é, nem tem aliança. E se tiver namorado? Aí to ralado. Vou ter que mudar de horário, sair ou mais cedo ou mais tarde, sei lá... Se for assim, tô perdido. Já pensou, depois de eu gastar o meu papo ela dizer: “Sinto muito. Desculpe se provoquei tudo isso em você. Foi sem querer, não tive intenção alguma. Além do mais, acho que houve uma certa presunção de sua parte, pois eu só lhe conheço de vista.” Já pensou com que cara eu fico? Depois vai contar pra todos os conhecidos do ônibus o que aconteceu. Vai até rir da minha cara. Não, nunca mais vou poder pegar o ônibus neste horário.
Mas isto tudo é bobagem. Vou esperar que ela sente ao meu lado e, quando acontecer, vou falar com ela e as coisas vão-se encaminhar. De mais a mais não é a primeira vez que dou em cima de alguém sem conhecer. E quase nunca me dei mal. Devagar se vai ao longe. Depois que ela me conhecer, vai querer sentar ao meu lado todos os dias. Daí pra frente é em dois toques. Amanhã a gente vê como as coisas vão ficar.
Faz duas semanas que estou nesta batalha. Sexta-feira é dia de o ônibus vir mais cheio. Lá vem ele. Sempre no horário. Dentro dele eu e, daqui a pouco, ela.
É, tá bem cheio. Mas meu lugarzinho ainda tá sobrando. Meu lugar não: nosso lugar! Se Deus quiser, não passa de hoje.
Já a estou vendo na parada. Tá de vestido! Nunca tinha visto suas pernas descobertas. E que vestido legal. Realça suas curvas. Como caminha lindo esta mulher, mexe com tudo, inclusive e especialmente comigo. Linda, linda, linda! Só falta eu ali do lado dela. Os braços em volta da sua cintura, pressionando seu corpo levemente contra o meu, fazendo-a sentir que tem um Homem com ela. Sinto o calor, o perfume do seu corpo. Roço meu rosto nos cabelos dela, caminho com os lábios pelo seu rosto e encontro sua boca úmida, de hálito morno, desejosa por meus beijos. Ai, Deus! Que loucura!
Subiu! Subiu a rainha! Clarice, Cláudia, Relações Públicas, Advogada, noiva ou namorada, não interessa nada, subiu e vem vindo. Cada passo é uma tortura. Olha em volta, troca sorrisos, parece comercial de televisão, propaganda de cigarro, deusa dos meus dias, vem vindo, vem vindo, deixa eu me ajeitar, cada vez mais perto, vem, vem meu amor, tô pronto pra ti, te amo, te amo, olhou! Ela olhou pra mim, vai sentar do meu lado, olhou de novo, olhou pro outro lado, parou aqui, vai sentar, vai sentar...
— Po... Pois não...
— O senhor tem fogo?
— Te... Tenho sim. Cla... Claro. Po... Pois não. Tava bem aqui... Achei! Co... Com licença. Ih! Droga de isqueiro! Tava bom até agora... Só um momentinho. Já vai funcionar. Nã... Não quer acender. Ma... Mas não faz mal, não. Eu... Eu te amo, eu te amo, eu te amo assim mesmo!
E, assim, dei adeus à deusa do ônibus...
2 comentários:
E o que faltou na hora H, foi o fogo... hehehe, muito bom!
Parabéns, retratastes MUITO bem esta situação inusitada. Foi cômico e trágico! Mas será que a deusa se importaria de conhecer um gago?
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