Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







domingo, 10 de janeiro de 2010

Tolerância



Não me importa a sua crença
Eu quero a diferença
Que me faz te olhar
De frente

Pra falar de tolerância
E acabar com essa distância
Entre nós dois

     Na postagem anterior falei sobre coerência e o conceito que eu (modéstia a parte) e outros pensadores fazemos dela. O tema, agora, é a tolerância, motivado pelos versos de Ana Carolina, extraídos da música de sua autoria que tem esse nome e que encimam este texto.
     A palavra tolerância é um substantivo que vem do latim tolerantia, derivado do verbo tolerare, que significa sustentar, suportar. O termo define uma tendência a admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou mesmo completamente opostas às nossas. Sob a ótica da sociedade, é aceitar modos de pensar, de agir e de sentir que diferem dos de um indivíduo ou de grupos determinados, políticos ou religiosos. Também há outros usos para o termo: tolerância civil é a discrepância entre a legislação e sua aplicação e impunidade; tolerância religiosa é a atitude respeitosa e de bom convívio diante das confissões de fé diferentes da sua; tolerância medicamentosa é a diminuição do efeito de uma medicação por exposição excessiva do paciente ao seu princípio ativo; em gestão de riscos, tolerância constitui o nível de risco aceitável normalmente definido por critérios pré-estabelecidos.
     No passado, o termo tinha um significado negativo, que qualificava atitudes indulgentes de autoridades diante de posturas sociais impróprias ou erradas. Hoje, no entanto, é uma virtude, através da qual mostramos respeito e consideração pelas opiniões ou práticas dos outros, ainda que sejam diferentes das nossas, além de reconhecer neles o direito de difundi-las e manifestá-las. Voltaire (1694-1778) dizia: “não concordo com nada do que você diz, mas defenderei o seu direito de dizê-lo até o fim”. Já o Marques de Sade (1740-1814), aristocrata francês e escritor libertino, entendia que “a tolerância é a virtude do fraco”. Se você não concorda com ele, há, contudo, que ser tolerante, pois grande parte de suas obras foi escrita quando estava num hospício.
     Outra personalidade importante da história, Mahatma Gandhi (1869-1948), dizia que

“a lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, já que nunca veremos senão uma parte da verdade e sob ângulos diversos”.

     Convém lembrar que Gandhi foi um dos idealizadores e fundadores do moderno estado indiano e um influente defensor do princípio da não-agressão – forma não-violenta de protesto – como um meio de revolução. O termo que define essa filosofia em hindi é Satyagraha (o caminho da verdade ou a busca da verdade). A propósito: aqui no Brasil, Satyagraha é o nome de uma operação da Polícia Federal contra o desvio de verbas públicas, a corrupção e a lavagem de dinheiro, que resultou na prisão de vários banqueiros, diretores de banco e investidores, em julho de 2008. A PF andava em “busca da verdade”, mas se depender do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, periga ela jamais ser encontrada. Sejamos tolerantes com ele também, pois

a intolerância pode ser definida como uma atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a seu estilo de vida e às suas crenças e convicções.¹

     Afinal, nessa pendenga entre Polícia Federal e STF

quem pretende possuir “a verdade”, ou melhor, “a certeza”, termina sendo intolerante em aceitar outros posicionamentos, se fechando à escuta de tudo que se apresente diferente ou incompreensível ao seu esquema conceitual de fala e ação.²

     Há quase 15 anos, em 16 de novembro de 1995, na 28ª reunião da Conferência Geral da UNESCO, em Paris, foi aprovada a Declaração de Princípios sobre a Tolerância³. Se um órgão da ONU se preocupou em discutir princípios sobre a tolerância é porque não é apenas uma palavra no dicionário. Não parece, contudo, que essa Declaração tenha surtido muitos efeitos, senão árabes e judeus estariam andando de mãos dadas no mesmo território, Saddam não teria dado motivos pra ser enforcado e os Estados Unidos não teriam interferido belicamente em outras nações.
     Tolerância não é, no entanto, liberdade total. Numa pequena cidade do interior – conta uma história – um deficiente físico, sem pernas, perambulava pela cidade com auxílio das duas mãos e o apoio do tronco. Durante anos, no seu trajeto, era debochado por um homem que dizia: — Vai gastar o ...! Um dia ele perdeu a paciência e matou o importunador. Na justiça, o aleijado foi duramente atacado, e tido como assassino cruel. O advogado, ao iniciar a defesa, falou durante dez minutos elogiando a qualidade de cada membro do júri, até que o juiz interrompeu: — Se o senhor não iniciar a defesa, não permitirei que prossiga. Sabiamente, o advogado respondeu: — Meritíssimo, se o senhor não aguentou dez minutos de elogios, imagine a situação do réu que suportou anos de insultos. Nestes casos, pode valer o provérbio: “Não seja intolerante a menos que você se confronte com a intolerância”.
     Tolerância tem limites. De acordo com o escritor, jornalista, dramaturgo e poeta português José Saramago (1922), “a tolerância para no limiar do crime. Não se pode ser tolerante com o criminoso. Educa-se ou pune-se”. Na mesma época em que Saramago dizia isto, o prefeito de Nova Iorque, Rudy Giuliani, tomava medidas para conter o crescimento avassalador do crime na cidade, adotando aquilo que foi chamado de tolerância zero contra quaisquer tipos de crime cometidos.
     Não sei se simultaneamente, antes ou depois disso, a expressão passou a ser usada por humoristas. “O sujeito estava voltando de uma pescaria com um balde cheio de peixes, quando é interpelado por um vizinho que pergunta: — Você pescou todos? Ao que o pescador respondeu: — Não, alguns são peixes suicidas e se atiraram no meu balde”. É uma caricatura, mas representa bem a atitude do “intolerante” porque, na verdade, não existe tolerância zero, o que existe é intolerância.

O que leva duas pessoas a entrarem em discórdia? A invasão do direito alheio, o ultrapassar o limite de tolerância, a incapacidade de compreensão mútua ou própria, a falta de empatia, a nossa própria natureza, o nosso temperamento. Somos limitados, e isto se manifesta também no modo tosco com que nos relacionamos muitas vezes com as pessoas.
Nossas limitações são patentes. Não somos o que queremos, não fazemos tudo que sonhamos, não temos o dom de estar onde desejamos. Dentro destes limites é que nos movemos. Conhecer os limites pessoais e os dos outros – pois somos seres que não se repetem – é uma tarefa que dura toda a vida.4

     A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.
     O escritor e pacifista israelense Amós Oz (1939) entende que a tolerância é a questão fundamental do século XXI e nos deixa uma pergunta bem atual: “A tolerância deve se tornar intolerante para se proteger da intolerância?”
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¹ ROUANET, Sérgio P. O eros das diferenças. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/022/22crouanet.htm. Acesso em 08/01/2010.

² DE LIMA, Raymundo. O conceito e a prática da tolerância. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/026/26ray.htm. Acesso em 08/01/2010.

³ UNESCO. Declaração de Princípios sobre a Tolerância. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001315/131524PORb.pdf. Acesso em 08/01/2010.

4 LACAZ-RUIZ, Rogério; OLIVEIRA, Anne Pierre de; SCHOLTZ, Viviane; ANZAI, Nelson Haruo. O limite e a tolerância. Disponível em http://www.hottopos.com/videtur5/o_limite_e_a_tolerancia.htm. Acesso em 08/01/2010

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