Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ié-Ié-Ai!



     Mais uma postagem da série “textos antigos encontrados numa gaveta”. Já que falei de novo nos Old Stones, abaixo, aproveito a oportunidade pra mostrar este texto, que fala daquela época.

     A Rua da Praia, desde a sua criação, sempre teve fases definidas de acordo com a moda e os modos de seus frequentadores. Comecei a frequentá-la a partir de 1967. Era a época da Beatlemania, também conhecida como do IÉ-IÉ-IÉ, e seus cabeludos, entre os quais eu me incluía. Que barra ser cabeludo quando poucos o eram. “Vai cortá'sê cabelo, veado” era a expressão mais ouvida. Daí para o palavrão e o soco não custava nada. Cabeludo, para os que se julgavam “normais”, era sinônimo ou de bicha ou de maconheiro (qualidades, aliás, também muito criticadas na época).
     Como todo cabeludo que se prezava, eu tocava em um conjunto. Era o baterista, naqueles anos, do “The Old Stones”. Curtição total. Festa-e-festa todos os fins-de-semana.
     Qual o porto-alegrense com cerca de 60 anos não se lembra do Aimoré – ali na Ponte de Pedra – ou do Dinamite, ou da Sociedade Espanhola, ou das reuniões na LABRE, ou da Casa de Portugal, do Caminho do Meio, do Independente e de tantos outros clubes e salões? Lembram como era a maioria das reuniões dançantes, quando um conjunto tocava uma ou duas horas até a chegada de outro, depois outro, até a manhã do dia seguinte? E dos programas do Daltro Cavalheiro, nos sábados à tarde, na TV Piratini, canal 5? E das bandas “The Cleans”, “The Coyners” (que virou Impacto), “Liverpool” (com Foguete Luz, Mimi, Marcão, Pecos e Edinho), “The Dazles”, “Som 4” e de tantas outras bandas não menos importantes que pintaram nos anos sessenta e poucos?
     Essas, no entanto, são outras histórias. As que quero contar dizem respeito a cenas que vivi na Rua da Praia e no centro de Porto Alegre, naquela época. Eu morava em Higienópolis, mas um dos caras que tocava comigo morava na Rua da Praia. À tarde, éramos assíduos frequentadores de alguns pontos-chave da Rua da Praia: em frente à Sloper ou em frente à galeria Malcon ou em frente às lojas Ultralar e outros. Era por ali que nos reuníamos com outros “canalhas”, vespertinamente.
     Não sei o que pensam ou o que conversam os que ali se reúnem hoje. Nós pensávamos e falávamos de músicas, das reuniões dançantes em que tocávamos, das gatas com quem transávamos e dos porres que tomávamos. Também paquerávamos habituais transeuntes e, não raro, “a gente dava em cima e ganhava umas-que-outras”. Era legal.
     Outro ponto que eu e meu colega de banda costumávamos frequentar era o da esquina da Marechal Floriano com a Duque de Caxias, na frente do Colégio Sevigné, onde estudavam as duas irmãs dele e suas coleguinhas interessantes.
     Às vezes, pra nos sentirmos (talvez) mais machos ou mais malandros ou mais modernos ou mais sei-lá-o-quê, bebíamos cachaça. Se não com Coca-Cola, pura mesmo. Num daqueles dias, eu e meu amigo (a partir de agora vou passar a chamá-lo de X para preservar sua reputação) fomos para a frente do Sevigné com uma garrafa de Três Fazendas comprada no Bar Leão. Era verão. Bebíamos direto da garrafa, em doloridos goles no início e suaves logo depois. A gente costumava ficar cantando músicas dos Beatles e do Renato e Seus Blue Caps.
     De repente, passa um padre daqueles de batina e chapéu preto, em direção à Catedral Metropolitana. Ah! Não tive dúvidas: lasquei um “fala, urubu” pra ninguém botar defeito. O padre parou, virou-se lentamente pra nós e perguntou-me se tinha falado com ele. X não sabia se ria ou se corria. As duas coisas ele já não podia fazer ao mesmo tempo. Quando parei de rir, percebi que não era um, mas sim dois padres, iguais, gêmeos, com a mesma expressão, com o mesmo cheiro de sacristia. Respondi que “sim, falei contigo, seu padreco filho-da-...”, e continuei rindo.
     Vi, então, o brigadiano que cuidava do trânsito em frente ao Sevigné caminhando em nossa direção. Pisquei os olhos e já não era mais um, mas dois brigadianos, iguais, gêmeos, com o mesmo passo, a mesma gana de cassetear de cabeludos, o mesmo cassetete. Aí, vi que os dois brigadianos falavam com os dois padres... Opa! Eram três de cada espécie agora!
     Imaginei que seríamos presos, que cortariam nossos cabelos e que, depois, chamariam nossos pais. E a explicação?
     Que nada. Como bom cristão, o padre parece ter entendido e, depois de conversar qualquer coisa com o Pedro e Paulo (assim eram conhecidos os PMs naquele tempo), foi-se embora. O brigadiano, por sua vez, aproximou-se e, para espanto nosso, apenas aconselhou-nos a sair dali porque já estávamos nos tornando inconvenientes. E, com todo o respeito — sim, senhor —, saímos, ainda que cambaleando, pra voltar noutro dia qualquer, com outra garrafa de Três Fazendas.
     E não é que voltamos mesmo! Dessa vez comemorávamos(?) a fossa de X, que tinha brigado com a gata que curtia, ou coisa parecida. Não houve, no local, maiores incidentes. Naquele dia tinham ido junto dois amigos comuns. Não lembro se já tínhamos terminado com a garrafa, ou melhor, com o que tinha dentro dela, quando X alegou uma dor-de-barriga. Precisava ir rápido pra casa.
     Bem que tentamos caminhar ligeiro. Foi difícil, no entanto, descer a Marechal Floriano até a Rua da Praia e seguir por ela até o edifício em que morava. Eram umas cinco da tarde. Às vezes, nós quatro tentávamos passar por dentro das pessoas, como se fossem fantasmas. Noutras ocasiões, queríamos passar no meio daqueles pares de gêmeos que caminhavam em sentido contrário.
     Enfim, chegamos. No térreo daquele edifício tinha (não sei se ainda existe) um sanitário. X decidiu que não daria tempo pra subir até o nono andar. Foi taxativo (com “x” mesmo): “vou neste aqui!” O sanitário tinha uma porta que dava para o corredor do edifício. Abrindo-a, via-se uma pia e outra porta, atrás da qual estava o vaso. Não tranca, recomendamos. Mas não adiantou, o cara entrou e trancou-se.
     Apesar de relógio de bêbado não ter ponteiros, o nosso tinha. Só o dele que não. O tempo foi passando. Impacientes, começamos a chamar o desaventurado. E nada de resposta. “Bodeou” pensamos. Um de nós, então, pulou sobre a parede interna do sanitário – que acima era aberta para ventilação – e de lá disse que X tinha apagado. “Aqui não tem nem papel e o cara cagou um monte” – completou.
     E agora, o que fazer? O terceiro companheiro não teve dúvidas: comprou uma Folha da Tarde (extinto jornal vespertino de circulação diária). A porta foi aberta por dentro e, enquanto eu e o terceiro segurávamos X pelos braços, o quarto, sem muita cerimônia, passava-lhe as páginas policiais da Folha da Tarde naquele local sem dono. Pobre do X, a cada passada do papel jornal murmurava entre dentes: “ai”, sem nem abrir os olhos.
     Pra disfarçar o meu constrangimento, eu ficava cantando mentalmente She loves you, dos Beatles. Sempre que chegava na estrofe She loves you, Ié, Ié... “Ai!” gemia X.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito Bom o Blog, parabéns
Abraços
Paulo Pruss
(Porto Alegre - Personagens)