Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O ronco


     Não adiantarão insistentes pedidos pra eu voltar a postar textos antigos achados seja em uma gaveta ou numa caixa em cima do guarda-roupa. Definitivamente, este é o último. Se, no entanto, meus seis leitores ficarem muito indignados, escrevo textos atuais com estilo e cenários de cerca de 35 anos atrás.
     Abaixo, então, uma rápida síntese do momento mais importante da vida de Políbio, um velho rabugento em que, invariavelmente, nós, homens, nos tornamos a partir de certa idade.
 
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ronco
     Desde seu casamento, Políbio acordava com um mau-humor que nem ele aguentava. Quando se dava conta de que não valia a pena, tornava-se o gordo normal de antes.
     Pelo menos pra ele o azedume tinha motivo: quando passava da metade da garrafa de cana, falava entre dentes para os gambás amigos que era o ronco de sua mulher que o incomodava de noite. Dizia que, seguidas vezes, acordava sobressaltado e cutucava com força as graxas da consorte com o roliço cotovelo. Em seguida, dormia até novo susto.
     Vinte anos de vida em comum tinham-se ido e Políbio não se acostumara. Matutinamente, o mau-humor; à noite, os sobressaltos.
     Havia vezes em que ele até se engasgava, contava aos amigos. Na metade da garrafa os caras come­çavam a rir. No último gole, Políbio rebentava numa gargalhada gostosa e voltava à vida do bairro.
     A vizinhança gostava muito de comentar o ranço do Políbio. Tudo sem muita malícia. Quando ele descia, ninguém falava nada, nem olhavam. Quando subia, as coma­dres, de avental e vassoura, sorriam e perguntavam Inocentemente como tinha passado a noite. Poli só di­zia “bom-dia” ou “boa-tarde”.
     Querida, sua mulher, trazia sempre uma cara de choro. Não sei se era do berço ou conseguiu-a depois de casar, assim como a gordura. Como as outras mulheres do bairro, era dona de casa por inércia. Sua vida havia sido um só trabalhar-trancado. Nas mãos havia encaixes para o cabo da vassoura, da frigideira, das panelas e da sacola de cordas. Um eterno chinelo arrastava-se sob seus pés. Sua fala mansa, contínua e chorosa cansava a quem com ela dialogasse.
     Na vida de Políbio e Querida houve uma vez um menino. Coisa quase sem importância, pois durou pouco. Mal comprou uma guitarra usada já arpejou a valsa do adeus. Enamorou-se do rock para nunca mais voltar.
     Cansado da rotina, o velho barrigudo, pensio­nista do INAMPS, resolveu dar uma de guri: estendeu um pouco mais seu domínio geográfico e foi até a avenida conhecer Mariana. Era uma mulata de sentar em duas ca­deiras e virar o prato de sopa. A caduquice que o fazer-nada trouxe ao Poli levou-o à paixão absoluta. Todas as tardinhas vestia sua roupa menos velha e ia pra avenida encontrar-se com Mariana. De lá, iam pra pensão.
     Mas Poli era um cara meio moralista. Nada de passar a noite fora e muito cuidado pra não ser visto. Era uma ginástica. A mulata era exigente, sempre querendo mais. E a paixão aumentava a cada dia.
     À noite, seus sobressaltos tornaram-se mais frequentes. Querida andava chateada. O mau-humor contagi­ou-a, tantas eram as vezes que acordava sendo sacudida. Seu braço esquerdo já tinha uma marquinha roxa de tanto cotovelada.
     O Poli ia pro bar e desabafava com a garrafa e os amigos. Dizia não aguentar mais os roncos da Querida. Era tal de pesadelo a noite toda. Nem falava mais com a mulher. Só ia em casa pra comer e ter pesadelos.
     E a Mariana dando em cima. Era um desembolsa grana daqui, desembolsa dali que o Políbio tava ficando naquela dureza. Mas era algo muito especial. Deixou, com muito sacrifício, de visitar o boteco, mas não deixou a mulata.
     Teve uma idéia: e se Querida morresse? Ele venderia o barraco, compraria outro e levava Mariana pra casa. Saía com a vantagem de sustentar um só “lar” e, o melhor, não ouviria mais roncos. Mas como conseguir isso?
     Doente ele não era. Só resta uma maneira. Remorso? Nem pensar. Já não podia mais acomodar as suas graxas com as da mulher. Era uma convivência impossível que ele ia tolerando. Desquite não valeria a pena. Ah! Aquela crioula redonduda, bem onde devia ser...
     Entre mais umas noites mal dormidas Poli achou a maneira mais conveniente: veneno a prazo. E foi numa far­mácia distante comprar um vidro de veneno.
     Noite após noite, colocava umas gotinhas no chá de Querida. Dia após dia, a indisposição dela crescia. Tonturas, enjôos e desmaios. E o Poli a dizer que não era nada, não precisa de doutor, é a menopausa...
     As repentinas acordadas continuavam sempre cres­cendo. As sacudidas cada vez mais violentas. Políbio ouvia o ronco mais forte, cutucava a mulher que só fazia “hum”. E pensava num momento próximo qualquer em que ele a sacudiria e sua cabeça tombaria para o lado do traves­seiro. Já tinha até comprador pro seu barraco e outro em vista. Faltava pouco pra Mariana ser sua, só sua. Tudo aquilo do seu lado, o dia todo, a noite toda — e sem roncos. Oh, vida...
     E foi numa noite quente e suarenta que Querida levou sua gordura pra baixo da terra. Bem como Políbio imaginara: uma cutucada no rim esquerdo, e a cabeça tombou com o ronco mortal.
     Foi tudo muito rápido: no atestado de óbito, uma insuficiência cardíaca; pra vizinhança, uma pena; pro Poli, a independência.
     No dia seguinte, Políbio já dormiu com a crioula na pensão. Na outra semana, despediu-se da vizinhança e foi pro seu barraco novo. Pequeno e sem muita coisa por dentro, que era pra mulata não se cansar e pra não gastar muito dinheiro. Aquela mulher foi feita pra outras coisas e não pro trabalho de dona de casa.

     Algum tempo se passou e Mariana voltou à antiga esquina de todos os dias. Quando lhe perguntavam por que havia sumido por uns tempos, dizia que fora morar com um velho barrigudo que tinha algum dinheirinho, mas que passava a noite acordando sobressaltado, dando uma cutucada nela e logo continuava roncando a todo volume. Não aguentou.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Desconhecido de mim

desconhecido2
 
     Há anos, quando meus filhos eram pequenos e morávamos no Bom Fim, ia passear no brique da Redenção com a família. De cada 10 pessoas que por nós passavam, metade me cumprimentava. Minha mulher de então dizia que eu poderia tranquilamente me candidatar a vereador. Seria eleito.
     Eu só ria. Alguns eu conhecia. Outros, nunca vira mais gordo.
     Com o tempo, foi diminuindo o número de pessoas que me cumprimentava. Decerto porque, envelhecendo, minhas feições se alteraram e deixei de ser parecido com alguém que pelo menos três daquelas pessoas que me cumprimentavam antes achavam que eu era.
 
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     Hoje, estou noutro bairro, sem brique, sem minha família e sem redenção.
     Estava na sacada e vi um vizinho da rua aproximar-se. Vinha caminhando tranquilamente pelo outro lado da calçada, assoviando e olhando distraidamente para os lados. Viu-me e meneou levemente a cabeça como um cumprimento, sem interromper sua melodia. Repeti o gesto e acrescentei um breve aceno.
     A rua não é movimentada. Por ali passam poucas pessoas, nos dois sentidos. Algumas eu conheço só de ver passar. Diariamente.
    Percebi que não tinha mais cigarros e fui ao mercadinho, na quadra de baixo. Cruzei com outras pessoas no caminho. Todas desconhecidas, a quem nem olhei e que também não me olharam. O mercado estava razoavelmente cheio. Como não precisava andar por entre as gôndolas, fui direto pra fila da caixa. Na minha frente havia duas senhoras, certamente moradoras do bairro, mas que eu não conhecia. A moça da caixa eu conhecia, mas só de ali comprar cigarros vez que outra. Respondi ao seu gentil bom dia e pedi o que queria.
     Na volta, passei por mais pessoas. Algumas eu conhecia só de por ali passar, vez que outra, e sabia morarem naquela rua. Não nos olhamos.
     Na entrada do prédio encontrei um vizinho do mesmo andar que saía e que ficou segurando o portão para eu entrar. O diálogo não poderia ter sido mais trivial:
     — Bom dia, professor – disse o vizinho. E esse calor?
     — Bom dia. Tá brabo – respondi.
     Entrei e ele fechou o portão atrás de mim. Era dia de faxina no edifício. Cumprimentei a moça da limpeza, a mesma de todas as semanas, mas de quem eu não sabia o nome. Ao subir a escada, mais um encontro casual. Era uma vizinha do andar de cima. Novamente um diálogo corriqueiro se fez ouvir.
     — Olá, seu Walter. Bom dia. E a dona Bela, está bem? Com esse calor acho que tá todo mundo meio mal, né? Mas vai melhorar assim que chover!
     Aquilo não era apenas um cumprimento. Era vontade de falar com alguém. Eu, sem parar de subir; dona Jandira, sem parar de descer. Quase não ouvi o final do seu “discurso”, mas encadeei as respostas na mesma sequência, sem saber se ela tinha ouvido.
     — Bom dia. Tudo bem. É. Acho que não passa de hoje.
     Se fosse um filme com legendas, o profissional que as faz não saberia como resolver. Mas não importa se ouvimos um ao outro ou se nos entendemos. O importante são as convenções. Afinal, vizinho é vizinho e é preciso cumprimentá-los.
 
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     Desconhecidos: pessoas de quem, mesmo morando no mesmo bairro, na mesma rua, não sei o nome nem sabem o meu.
     Conhecidos: pessoas com quem vivi ou vivo, com quem trabalho, que moram no mesmo bairro, na mesma rua, no mesmo prédio e de quem se conhece pelo menos o nome, mas que, muitas delas, não sabem o meu..
     Elas têm pai e mãe? Têm filhos? De onde vêm? Elas sabem se tenho pais e filhos? Sabem se preciso de alguma coisa? Como estou me sentindo?
     Conhecer alguém é algo muito relativo. Há cinco anos, quando terminei o casamento de 27 anos por ter me apaixonado por uma mulher que recém conhecera, minha ex-esposa — aquela que disse que eu deveria me candidatar a vereador — disse que “achava” que já me conhecia e que jamais imaginaria isso de mim.
     Nessa mesma época, entrei numa rede social da internet que estava na moda. Era um tempo em que se precisava ser convidado para fazer parte dela. Meu filho me convidou. A partir daí, comecei a conectar-me virtualmente a conhecidos que encontrava na mesma rede. Amigos, amigos de amigos e assim por diante. O número de contatos crescia a cada dia, assim como de visitas a meu perfil.
     Há poucos dias ganhei um selo dessa rede por ser um dos mais antigos participantes. Resolvi, então, fazer uma auditoria nos meus conhecidos da rede. Muitos eu nem sabia como e por que haviam se instalado lá. Com muitos mais nunca tinha trocado um recado. Outros com os quais só me comunicava nos dias de aniversário, isso porque o software da rede avisava. A maioria não respondia. Poucos eram os que me cumprimentavam no meu aniversário. Apaguei quase todos. Sobraram meus filhos, minha atual mulher, o filho dela (que mantive por respeito a ela) e um que outro colega de trabalho ou de lazer.
     Entre os que sobraram, só conheço plenamente (eu acho) e só me conhecem os meus filhos. De resto são apenas conhecidos — pra não dizer desconhecidos — de quem sei o nome porque está lá escrito.
 
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     Voltando aos (des)conhecidos de hoje. Entrei no apartamento e fui direto lavar as mãos. Tinha andado na rua, mexido em dinheiro, etc. Molhei as mãos, ensaboei-as, enxaguei-as e sequei-as sem olhar no espelho. Eu sabia que minha imagem estava ali. Mas, assim como fiz em relação aos desconhecidos com quem cruzei na rua, ignorei-a. Poderia ter feito o mesmo que fiz com o vizinho da rua e meneado a cabeça pra minha imagem. Até ter dado um aceno. Poderia ter dado bom dia, como a moça da caixa do mercado, a faxineira ou os vizinhos do prédio. Com certeza seria correspondido. Se falasse do tempo, no entanto, não obteria resposta. Mas não faria diferença. Quando se fala do tempo não se quer, na verdade, a resposta que o interlocutor possa dar, a menos que ele seja meteorologista. Só se quer falar. Só se quer sentir acompanhado. Saber que existe outro no mundo além de você.
     É uma coisa mais ou menos como seus contatos numa rede social da internet. Você sabe que estão lá porque vê que se comunicam com outros, porque seus perfis têm fotos, porque há um nome ou apelido lá escrito.
     Voltei ao espelho e me encarei. Mas, por mais que me olhasse, me desconhecia. Sentia-me só.
     A porta do apartamento se abriu. Era minha mulher que chegava. Ela tinha ido à casa da mãe dela, pertinho daqui.
     Novamente um notório e retórico diálogo.
     — Oi! Já voltaste?
     Eu teria certeza de que estava ficando louco se Bela me respondesse que ainda não tinha voltado.
     — É. Já são onze e meia. Vou fazer o almoço.
     Ufa! – pensei – ainda bem que ela levou ao pé da letra minha pergunta e deu a resposta certa.
 
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     Em pouco menos de uma hora, cruzei com várias pessoas. A maioria desconhecidas, algumas conhecidas de vista, um vizinho de rua dois de condomínio, uma faxineira semanal e minha mulher, com quem há poucas horas tinha passado mais uma de todas as noites dos últimos cinco anos. Dessas pessoas, quem eu conhecia e quem delas me conhecia?
     Posso dizer que conheci minha família de 27 anos — apesar de a ex ter dito que “achava” que me conhecia — porque tinha, então, uma identidade: era o marido da fulana, pai da sicrana e do beltrano e todas as implicações que essa rede familiar proporciona. Havia parentesco. Além disso, por ser marido e pai, fazia parte de uma grande rede social. Os conhecidos de fulana, sicrana e beltrano também eram meus conhecidos. Eu sabia quem eram seus pais, seus irmãos, seus filhos, suas famílias.
     Depois que conheci e me apaixonei por Bela, o “conhecer” tomou outra forma. Hoje, percebo que nesses últimos cinco anos perdi aquela referência familiar. Sinto-me um desconhecido, um intruso numa família que se formou sem mim, a ponto de o enteado (do latim antenatu, nascido antes) me classificar apenas como o “namorado da mãe dele”. Certamente os que com ele têm laços de sangue me classifiquem apenas pelo nome: o Walter... Mas o que é o Walter?
 
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     — E foi assim que, hoje, não reconheci aquele do espelho a minha frente e percebi que sou só. Por isso estou aqui, doutor. Sou um desconhecido meu. Quero voltar a me conhecer, a conviver comigo, a saber do que preciso, para onde vou, o que vou fazer, quais meus planos, quais são meus sentimentos...
     — Muito bem. Interessante, mas, agora, fale-me um pouco sobre sua mãe.
 
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Espio no espelho o espião
que existe em mim
mas ei-lo que logo se esconde
atrás da imagem
que espio em mim.

(Flávio Moreira da Costa - O espião)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Vai tudo bem, obrigado.

     Semana passada fui numa formatura. Nesta, vou a outra. Ambas do curso de Direito.
     Formaturas, hoje em dia, são um verdadeiro show. Parece até um jogo da NBA ou de futebol americano. Um espetáculo.
     E acho que estão certos os formandos. Antigamente era uma coisa muito chata, sem qualquer atrativo. Era bom (ou quase) apenas para quem estava se formando e seus orgulhosos familiares. Me agrada, hoje, ver aquele set list musical variado, com os formandos procurando mostrar sua individualidade através do trecho de uma música. As mais tocadas são as eletrônicas que embalam as baladas do momento. Algumas músicas se repetem, como I gotta feeling, do Black Eyed Peas. A personalidade desses formandos que escolhem a mesma música deve ser a mesma. Daqui a alguns anos, quando virem o vídeo da formatura, com certeza se arrependerão de terem escolhido esse tema, em vez de algum que continue dizendo algo para sempre.
     Quando meus filhos se formaram — Direito e Relações Públicas — já era assim. Lembro de ter pago uma nota para uma produtora fazer a produção (óbvio, né!) de tudo: desde os convites, passando pelas várias festas e encontros, as fotos, o vídeo e a solenidade.
     Enfim, lembrei-me da minha formatura. Era 1978. No Brasil imperava a ditadura militar. O déspota de plantão era o general Ernesto Geisel. Todos já conhecem a história. Caso contrário, deveriam conhecer.
     As solenidades de colação de grau ainda eram tradicionais: todo mundo sentado quietinho, um respeito muito grande, um cerimonial, digamos, “careta”. Mudamos um pouco aquilo tudo, mas sem pagar produtora alguma. Fizemos nós mesmos. Colocamos música no show, e não era o hino nacional. Entramos correndo no Salão de Atos da PUC ao som da abertura da Guilherme Tell, interpretada por Walter Carlos, da trilha sonora do filme A laranja mecânica. Depois, conforme o momento, tocavam músicas de Chico Buarque, especialmente Cálice e O que será. Eram músicas que representavam o momento pelo qual o Brasil passava.
     Antes, no entanto, depois de muita briga entre futuros jornalistas, publicitários e relações públicas, chegamos a um consenso sobre como seria a formatura, desde os convites até a cerimônia da colação de grau. Nem preciso dizer que valeu a opinião dos jornalistas. Os publicitários nem estavam aí e os RPs, como minoria, tiveram que nos engolir.
     O tema do evento mostrava os formandos como uma nova safra de hortifrutigranjeiros. O convite foi confeccionado em forma de um pequeno jornal, com oito páginas (a capa reproduzo abaixo). O editorial, na página 2, falava das expectativas dessa nova safra em relação momento atual brasileiro; na página 3 tinha um anúncio dos formandos de Publicidade e Propaganda; na página central estavam os nomes dos formandos; na página 6, um texto dos RPs; na 7, vários textinhos da turma de jornalismo e uma charge (feita por mim); na última, uma reflexão sobre a educação, o ensino, o mercado, etc.
     O discurso foi um tema também polêmico. Foi à votação. Os RPs apresentaram um e os jornalistas, outro. Venceu o dos jornalistas, que foi redigido por mim, fazendo as vezes de ghost writer da turma.
     Escrevi, mas não li. Quem o leu da tribuna foi um colega, o Eliseu Pacheco, que tinha uma bela voz (ainda tem). Naquela época era locutor numa rádio de Porto Alegre. Depois, transferiu-se para São Paulo e não mais o vi. Por um tempo, ainda ouvia sua voz em comerciais de TV. Agora, não mais.
     Abaixo, após a reprodução da capa do convite, o discurso de formatura da Safra 78. Bem abaixo, a charge da seção dos jornalistas no convite-jornal.
safra78
A capa do convite-jornal

     Sosseguem, não vai doer. Vai tudo bem, obrigado.
     Estamos vivendo num mundo em que as coisas só acontecem lá fora, os males só aparecem para os outros: na India estão passando fome; no Irã não querem mais Xá; no Líbano estão em guerra. Nós estamos em paz, vai tudo bem, obrigado. Aqui, além da tranquilidade, é tudo muito bonito. E muito prático também. Desenvolvimento altamente tecnológico, progresso... Progresso. Vejam as comunicações, por exemplo: aconteceu lá na Tailândia, segundos depois estamos sabendo aqui. Seja o que for, aonde for, somos informados na hora, via-satélite. Micro-ondas, lasers e outras ondas cruzam sobre nossas cabeças em intermináveis monólogos eletrônicos. Todos nós sabemos de tudo sobre o mundo, principalmente o que está na TV, no rádio, nos jornais e revistas. Tudo o que se possa imaginar sobre o mundo que nos rodeia. Mas tem uma coisa que nem todos sabem ou do que sabem muito pouco: a realidade brasileira.
     É claro que o mundo nos interessa — estamos nele — mas, em primeiro lugar, deveríamos saber sobre nossas coisas. Você sabe, realmente, como é a vida do brasileiro?
     É tudo muito claro: temos dois partidos políticos para escolher, temos dirigentes pra não escolher, temos pacotes pra nos encolher... E por falar em escolha, como vai o nosso irmão nordestino? E o seu primo do Amazonas? E o seu tio do Mato Grosso? Como vão nossos empregos e nossos salários? Vai tudo bem, obrigado...
     Obrigado a ir tudo bem!
     É... Todo mundo pensa que sabe de tudo e não dói nem um pouco. Será que vai doer em vocês se souberem que a opinião pública é habilmente manipulada por minorias privilegiadas?
     Que, nos últimos anos, no Brasil, a censura impediu a denúncia de medidas que intensificaram a exploração econômica, a dominação política e a marginalização de segmentos preferenciais da sociedade?
     Mas vai tudo bem, obrigado. Itaipu, carnaval, energia nuclear, futebol, pólos petro-carbo-químicos, obrigado...
     Todos sabemos que o direito social à informação é conquista dos povos e não pode ficar nas mãos do arbítrio governamental ou privado. Todos sabemos que a propaganda pode e deve ter um papel formador e não deformador, que tem o dever de enriquecer e dignificar o ser humano. Todos sabemos que relações públicas é a preocupação com a integração de uma empresa ou instituicão com seu público.
     Sendo assim, dói em nós, jornalistas, saber da existência de uma estrutura montada para impedir o acesso da população às informações básicas necessárias à compreensão e transformação da realidade. Dói em nós, publicitários, saber que existe certa propaganda mentirosa, usada como forma de alienar pessoas, desinformar, anestesiar e imbecilizar em massa. Dói em nós, profissionais de relações públicas, saber que falsos profissionais manipulam o público com brindes e sorrisos e que vai tudo bem, obrigado.
     Hoje, vamos sair daqui com o grave compromisso de não sermos instrumentos passivos desse poder devastador.
     Nós, jornalistas, nos propomos a protestar contra a violação de um dos direitos fundamentais da sociedade, que é o de informar e ser informada. Nos propomos a defender a liberdade de manifestação, não como prerrogativa para nós, mas sim como um direito de toda a sociedade de manifestar suas aspirações e debater suas opiniões.
     Nós, publicitários, seremos co-responsáveis por tudo aquilo que a propaganda fizer ao nosso povo, à nossa cultura, ao nosso país. Nossos compromissos não devem se esgotar apenas na venda de um produto, serviço ou ideia. Nos propomos a participar ativamente pela expansão do mercado interno e, consequentemente, por um maior número de consumidores, que são o objeto do nosso trabalho
     Nós, de relações públicas, nos propomos a orientar a conscientização dos públicos internos das organizações estatais ou privadas, para que realmente prestem seus serviços em favor de uma coletividade e que possam, assim, garantir a verdadeira integração da empresa na comunidade a que pertence. Nos propomos a fazer valer o processo de troca de ideias e do diálogo entre público e empresa, visando o bem comum.
     Nós todos, jornalistas, publicitários e relações públicas sabemos que estamos entrando num sistema alheio aos nossos ideais, um sistema preocupado apenas com o capital, custe o que custar aos trabalhadores. E, como trabalhadores da comunicação, reconhecemos o papel estratégico que temos no processo de transformação social. Por isso, até agora, temos sido alvo de castrações. Apesar de nossas especializações diferirem um pouco na forma, mantêm o mesmo conteúdo.
     Até hoje, estivemos unidos, mas e daqui pra frente? Será que conseguiremos permanecer juntos na luta pela construção de uma sociedade democrática, onde não existam fantasmas, onde não haja medo disfarçado de tranquilidade, desemprego, fome e forças ocultas?
     Se conseguirmos, aí sim, estará tudo bem, obrigado.
     ... mesmo que doa.

chargeA charge da página 7 

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Vai levanu!

     Achei mais alguns escritos perdidos. Dessa vez não foi numa gaveta, mas sim numa caixa que está em cima do guarda-roupa. Fui procurar o discurso que fiz para a minha formatura e, além dele, achei este texto, que é uma brincadeira com a onomatopeia. Procuro reproduzir nele os sons dos coletivos da década de 70 — época em que eu ainda andava de ônibus — e o jeito de falar de seus tripulantes e passageiros.

vai_levando

     Num ponto qualquer, a caminho do centro da cidade, ele chegou estabanado. Um guincho pré-histórico fin­cou-se nos ouvidos dos que ali estavam. Uma fumaça preta espalhou-se por todos os lados. Pela janela saiu uma cabeça vermelha e uma voz de alto-falante de quermesse berrou:

     — Ai ô centro, olhaí! Subinu! Sobi mais! Sobiaína! Lieva!

     Se fora, com o barulho e a fumaça era ruim, dentro estava pior. A porta traseira se fechou com um estrondo metálico e ficou mordendo minha camisa.

     — Ei, abre atrás!

     — Vaum cheganu à roleta!

     — Abre atrás!

     — Favor facilitá o troco.

     — Abre atrás, pô!

     PRÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ

     — Diesce!

     — Abre a porta de trás que eu fiquei preso!

     — PFSSSSHSHSHSHHHH.

     Finalmente se abriu. Mas não foi porque berrei. Já era outra parada. Fui empurrado degrau acima. Quando consegui virar a cabeça, vi a man­cha de graxa que tinha ficado na camisa.

     — Podi subi que aína há lugares! Ai ô centro!

     — Com licença?

     — Com licença?

     — Subinu! Um passinho à frente a fila do meio!

     — Com licença?

     — Passa por cima, pô! Não vê que eu tô, trancado!

     — Cavalo...

     — Vaum subinu e passanu à frente! Quem não qué passá que dá o lado aí, oh! Pode levá

     O calor aumentava a cada nariz que entrava. As janelas estavam todas abertas, mas era não adiantava. Quem estava dentro só saía a muito custo. Quem estava fora só entrava por descuido. E lá ia ele. Buraco dentro, buraco fora, uma apertada num táxi, um palavrão de lá, outro palavrão daqui, — só podia sê muié —, uma travada de seco, uma arrancada também, bura­co dentro, buraco fora.

    — Cheganu à porta!

     — Vai pará! Não precisa se pindurá na campainha!

     — Com licença?

     — Vaum dexá passá na porta. Vaum dá o ladinho. Óia a fila do meio, um passinho mais à frente do carro!

     — Falta dez, moço.

     — Não tem troco. Aguarda num cantinho aí. Vaum facilitá as passage!

     — Ô, Foguinho! Vamu lá-com essa roleta aí que tá muito amarrado!

     — Coperanu e passanu à frente da roleta. Vaum dexá livre a subida! Sobiaína! Lieva!

     — Segura!

     — Desci mais! Fiiiuuuu.

     A batalha estava formada. Narizes contra sovacos, dedões contra calcanhares, cotovelos contra nucas. Traseiros contra mãos-bobas. Ombros con­tra pernas. Joelhos contra braços.

     O suor abundando, as sacolas atra­palhando, o cobrador berrando. O sol não dava folga. Atirava seus raios pelas janelas e frestas. O veículo parecia uma frigideira que fritava nossos miolos. Os vidros dos edifícios brincavam de sol e mandavam reflexos contra os olhos de quem estava do lado da sombra.

     Uma curva pra esquerda; uma pra direita. Um buraco. Uma sinaleira. Mais uma parada.

     Uí-Uí-Uí-Uí-Uí-Uí-Uííí. PFSSSSSHHHH:

     — Sobi! Ai ô centro, ao mercado e há lugares.

     — Ai!

     — Desculpe...

     — Cheganu rápido à saída. Passanu à frente a fila do meio, olhai!

     — Segura, moço!

     — Diesce! Tem vinte aí?

     — Ainda falta um cruzeiro.

     — Quanto é que eu te dei aí?

     — Sete e oitenta.

     — Não, eu te dei oito. Tenho certeza.

     — Então conta aqui, animal!

     — Animal, não! Pede com modos que eu dô! Tomaí!

     — Não quero esse teu dinheiro imundo. Tu já sabe o que fazer com ele!

     — Ô, Foguinho, tá misquecendo?

     — Lieva! Dieu! Fiiiiiuuuu.

     Não sei como sempre cabia mais um naquela coisa. Pra cada um que saía, subiam três. O ar não era mais de oxigênio. Era só morrinha de sovaco, gás carbônico, micróbios e muito calor.
     As velhas gordas, de pé, queriam sentar. As sentadas queriam descer. No corredor, três filas, às vezes quatro. A ladainha do cobrador nunca parava e ainda faltava a metade do caminho.
     Foi numa curva pra direita que o sol ficou de frente e começou a zombar de nossos olhos. Me arrependi de ter sentado. Não podia olhar pra frente, pois não enxergava. E o pior, o motorista também estava de frente pro sol.
     Pra terminar logo esta situação chata, aumentou a velocidade. Uma incrível trepidação tomou conta de tudo. Pelas frestas da tampa do motor saía um calor que, dançando, vinha juntar-se ao já existente. Como consequência, aumentou o suor dos corpos. E o resto também.

     — Vaum lá que só fica de fora quem qué! Há lugares no corredor.

     — Com licença, meu filho?

     — Pô, estas velha. A senhora vai descer agora?

     — Não.

     — Então aguenta aí.

     — Maliducado...

     — Ai, ai! Calma! Não se pede mais licença?

     — Um passinho mais no corredor óia aí. Sóbimais! Subinu! Vai levanu!

     — Momentinho que eu vô descê!

     — Se­gura!

     O sol rasteiro atravessava o empoeirado para-brisa, varava a retina e não nos deixava olhar em frente. Não sabíamos quantos indefesos automó­veis já haviam sido fechados, quantos sinais vermelhos cruzados, quantos pedestres apavorados.
     Deu uma chance e olhei para os santinhos colados na cabine do motorista. Infelizmente não me alentaram esperança alguma. Mais umas poucas paradas e estaríamos no centro. Tomara.

     — Moço, não dá pra abrir atrás pra mim descer com o meu marido que não está se sentindo bem?

     — Não posso fazê nada, minha senhora.

     — Mas eu pago. Aqui está o dinhei­ro. Não vou conseguir passar pra frente.

     — Não dá. Se tem um fiscal da se­cretaria por aí, vai multá a gente.

     — Mas que barbaridade.

     — Pô! Abre atrás, o sem-vergonha!

     — Cumé quié, cara? Excesso de lotação pode, sair da fila indiana pode, correr desta ma­neira pode. Pra isso não tem fiscal, né?

     — Não posso fazê nada. Pede pro motorista. Cheganu à porta e descenu rápido!

     Lá fora talvez não estivesse muito diferente. Quem arriscava pôr o nariz pra fora da janela, mudava logo de idéia. A grande capital respirava mal. Os odores industriais insinuavam-se narinas adentro dos cidadãos.
     Aqui, do pequeno executivo engravatado ao operário todo suado, espremiam-se, misturando temperaturas e vapores, formando uma massa disforme e fedorenta. Judeus, cristãos, ateus, brancos, negros, crianças, homens e mulheres... animais, quem sabe...

     — Ai ô centro, ao mercado:

     PFSSSSHSHSHSHHHHH.

     — Aimbora:

     Agonia das agonias. Parecia nunca terminar. Condições sociais levemente diferentes, mas a expressão nos rostos era a mesma. Socialismo forçado. Calor — comum de todos. Aperto — comum de todos. Suor — comum de todos. Calor, aperto, suor — transporte co letivo.

     — Diesce mais. Vaum aproveitá que é a última parada! Fecha atrás que não entra mais nada!

     — Com licença que eu desço nesta.

     Diescenu aína! Lieva! Dieu!

     PFSSSSHSHSHSHSHHHH! CLANG! BROOOMMBROOOMMMMMMM!

     — Última parada, a primeira coisa sensata que o Foguinho disse. Só mais uns segundos e seria o fim da linha.

     — Vaum aproveitá e ir passanu a ro­leta. Óia o trocado na mão.

     — Cume que eu vô passá com tudo trancado?

     — Pobrema teu, cara. Cheganu à frente do carro a fila do meio, é favorrrrr!

     Fechou o sinal. Um tempo a mais para que pés, braços e cabeças pudessem se desvencilhar. Olho para o lado e vejo situações semelhantes. Estavam todos eles, os ônibus, cheios. Um pouco abaixo, os táxis. O ronco e a fumaça invadiram célula por célula do meu corpo.
     Abre o sinal e todos arrancam ao mesmo tempo. O medo de uma colisão me faz suar a última gota. Ao meu redor, com as caras distorcidas, os passageiros buscando, cada um, ser o primeiro a cair fora.

     Uí-uí-uí-uf-uí-uí-uíííí. PFSSHSHSHSHHH.

     — Decenu rápido é favorrrr!

     Fui levado pelos corpos que se atiravam em direção à porta. Na parada, filas estendiam-se e gente que entrava misturava-se a gente que saía que misturava-se a gente que simplesmente passava.
     Corri aproveitando o sinal vermelho e peguei o outro ônibus que já arrancava. Bati com a cabeça no cara que subira na minha frente. A porta se fechou com um estrondo metálico e ficou mordendo minha camisa.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A geometria da vida


     O que é a vida de um indivíduo senão um segmento de reta na reta da existência humana?
     O “pai da geometria”, Euclides de Alexandria, deixou escrito em sua obra Os elementos que “um segmento de reta é o conjunto dos pontos da reta que ficam entre dois outros pontos”. Ora, se a reta é um objeto geométrico infinito a uma dimensão, pode ser comparada à existência humana. A vida de um indivíduo, portanto, é o segmento determinado por dois pontos demarcados entre outros dois pontos infinitos.
     Um dos preceitos de Euclides, no entanto, o preocupava: um segmento de reta pode ser prolongado indefinidamente para construir uma reta. No caso dele — e de qualquer indivíduo — isso não seria possível. O segmento vida tem um ponto de início e um de fim; estes sempre estarão entre outros dois pontos, sem começo nem fim, indefinidos.
     Esse era o pensamento do professor Geraldo naquele momento, na sacada de seu apartamento, enquanto esperava esquentar a água para o chimarrão. O sol recém surgido de trás do morro feria-lhe os olhos recém saídos do sono, pois eram recém seis e meia da manhã de uma quinta-feira de verão.
     De retas, segmentos e pontos seu pensamento voltou-se para o tempo: a sucessão dos anos, dos dias, das horas, etc., que envolve, para o homem, a noção de presente, passado e futuro; período contínuo no qual os eventos se sucedem.
     Naquele exato momento, pensava que tudo que é recém é um momento presente, foi futuro e será passado. E que assim ocorre com todos os momentos que se sucedem na vida. Professor de matemática recém aposentado, enxergava os momentos como pontos. Se o ponto é uma configuração geométrica sem dimensão, que se caracteriza por sua posição, assim o são, também, os momentos.
     Ouviu o barulho da chaleira chiando, espreguiçou-se e foi até a cozinha. Derramou a água aquecida na garrafa térmica, pegou a cuia que havia deixado sobre o balcão com a erva inchando e delicadamente serviu-se o primeiro mate matutino. Sorveu os primeiros goles, ainda mornos, olhando para o nada.
     Voltou à sacada. Ajeitou a cadeira de praia de lado para a rua, sentou-se e serviu-se do segundo mate. Agora estava no ponto. Ponto? Apesar de ser outro tipo de ponto, determinante de uma circunstância, uma situação, um estado, a palavra o fez pensar de novo na geometria, no ponto, retas, segmentos de reta, semirretas; e no tempo...
     Como segmento de reta que era, Geraldo teve seu ponto A definido no momento de seu nascimento. Desde lá, vários momentos — ou seja, um conjunto dos pontos — haviam passado: a infância, a adolescência, a maioridade e, agora, a terceira idade. Como um turbilhão, vários momentos vieram-lhe ao pensamento, do passado até o presente momento, que foi futuro e será passado.
     Lembrou-se da reação dos alunos quando lhes tentava ensinar, por exemplo, o Teorema de Pitágoras. Em qualquer triângulo retângulo, o quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos. — Putz! O que eles vão fazer com isso? Mas têm que aprender! Tá no currículo... — acrescentava conformado.
     É. Além do ponto, retas, segmentos de reta e semirretas, em seus momentos também houve planos, como o triângulo do tal teorema. Por falar nisso, tinha também o Teorema de Tales, afirmando que se A, B e C são pontos em uma circunferência cuja reta AC é o diâmetro, então os pontos ABC formam um triângulo retângulo. E o Teorema de Laplace, então (que não é geometria mas é chato pra caramba): o determinante de uma matriz quadrada de ordem n é dado pela soma dos produtos dos elementos de uma fila qualquer, linha ou coluna, pelos seus respectivos co-fatores. — Meu Deus! O que eu fui fazer? — pensava.
     Enquanto a garrafa térmica se esvaziava, o movimento na rua aumentava. O sol já havia saído da altura dos olhos do professor. Cada recém daqueles — do sol surgido de trás do morro, dos olhos saídos do sono, das seis e meia da manhã — era passado, foi presente e foi futuro. A única coisa que ainda continuava presente era a quinta-feira de verão.
     Geraldo já começava a se entristecer, a pensar no futuro incerto, no ponto B que fecharia o segmento de reta que era, quando ouviu aquela suave voz rouca produzida por pregas vocais que recém faziam seus primeiros movimentos do dia:
 
     — Bom dia, meu amorzinho!
 
     Era sua nova mulher. Uma mulata sensual que conhecera meses antes, num cruzeiro marítimo que fez quando saiu sua aposentadoria. Apaixonou-se perdidamente. Não era uma reta ou um segmento de reta, mas um conjunto de várias curvas, arcos, círculos, circunferências, elipses, esferas, cones e cilindros.
     Geraldo deixou seus maus pensamentos na sacada, levantou-se, abraçou a mulher e beijou-a demorada e libidinosamente. Excitado, levou-a de volta para a cama para demonstrar a ela com quantos catetos se faz uma hipotenusa. Agora só queria saber do ponto G.

mulata

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Mais um texto antigo encontrado numa gaveta

     TRÊS leitores deste modesto blog — um número incrível — postaram comentários ao texto “Atropelamentos”. Eu dizia que esse post finalizava a famosa série “textos antigos encontrados numa gaveta”. Um dos leitores questionou: “— Como assim, ‘finalizando a série’”? Além disso acrescentou um comentário: “A gaveta está na tua cabeça, tu és a gaveta.” Outra leitora disse que “Estas crônicas do quotidiano estão cada vez melhores, boas do começo ao fim”. Por fim, a terceira lascou: “Adorei, adorei,adorei. Continues escrevendo tá?”.
     Tenho que concordar: em time que tá ganhando não se mexe. Então lá vai mais um. Antes, porém, uma explicação de como surgiu o texto.
     Logo que casei pela segunda vez, em 1978, por três anos morei em São Leopoldo, mas continuei trabalhando em Porto Alegre. Fazia o trajeto diariamente de ônibus. Todos os dias estava na mesma parada, na mesma hora da manhã, esperando o mesmo ônibus, com o mesmo motorista e os mesmos passageiros. Era uma rotina infernal. Naquele tempo se podia fumar nos ônibus que faziam as viagens entre os municípios da Região Metropolitana. Numa dessas viagens ocorreu-me escrever sobre uma de tantas coisas que poderiam acontecer nessas viagens, com qualquer um dos passageiros. Quando mostrei o texto para minha mulher, logo depois de escrevê-lo, ela chegou a ficar com ciúme, acreditando ser um fato que pudesse ter acontecido comigo.
     O título tem dois sentidos: um pela escrita, outro pelo som. O primeiro, vai no próprio título; o segundo, ao final.
 

A deusa do ônibus

a deusa do onibus
     Lá vem ele. Vou chegar bem na beira da calçada pra ser o primeiro a entrar. Bah! Hoje é segunda-feira, acho que vem mais cheio. Taí. Com licença. Até que nem tá tão cheio. Tá lá meu lugarzinho de sempre. Agora, boto a bolsa no outro banco e ninguém senta. São mais duas paradas. Na terceira ela entra e senta do meu lado. Hoje eu falo com ela. Não dá mais pra ficar nesta placidez.
     Já a estou vendo na parada. Tomara que seja a primeira a subir. Parou. Opa! Não enxergo quase nada. Subiu! Putz... Aquele alemão subiu na frente. Ela vem atrás. Linda, linda... Roupa nova, bolsa nova. Hum! Grandes festas no fim-de-semana. O cabelo ainda guarda vestígos do que foi um penteado diferente. Bacana, hein! Acho que li essa expressão em algum lugar: “guarda-alguns-vestígios-do-que-foi...” Tenho que ler mais. Quando falar com ela tenho que dizer que já li isso, já li aquilo, gosto de Fulano... Ela sempre traz um livro pra ler na viagem. Ai, aquele corpinho sob meus braços. Ih! O alemão vem olhando pro meu lado. Não, não, sai, sai! ...azar. Fica pra amanhã. Ô, alemão desgraçado.
     Ela deve conhecer todo mundo. Cumprimenta todo mundo. Lá tá ela, do outro lado, bem pertinho, conversando com aquele cara. Bem que eu podia ser ele... Que sorriso... Aqueles dentes mordendo a pontinha da minha orelha e eu dizendo: “Clarice, Clarice, meu amor... Ela tem cara de Clarice. Poderia ser Cláudia também. Sei lá, não quero me iludir quanto ao nome, pode ser que até seja um nome feio. Isso não interessa. O que vale é que ela é linda. Gostosa!
     Hoje ela nem tá lendo, só fica de papo com aquele cara. Acho que é só amigo dela. Nunca vi! Todo mundo se conhece nesta cidade. Só eu que não conheço ninguém. Não conheço esta coisa linda. Mas amanhã eu vou conhecer. Quando ela sentar do meu lado, se estiver lendo, pergunto sobre o livro, digo que queria comprar mas achei que blá-blá-blá, etc. Se quiser fumar, acendo o cigarro dela, peço licença pra fumar ao mesmo tempo, olho bem dentro daqueles olhos mansos, fico desejando aquela boca úmida... Ou então começo a falar da chatice de ter-se que viajar todos os dias — ida e volta — do engarrafamento, dos acidentes, do cobrador, da velocidade. Bem...
     Pô! Acabei dormindo e não pude prestar atenção na conversa dela com o cara. Estamos chegando — que saco! — agora ela desce e vai pra outro lado depois de acender um cigarro... E se eu for atrás e falar com ela na rua? Não. Isso é meio baixo nível. Ela não ia topar. Tem que ser aqui mesmo, amanhã.
     Poderia ter sido ontem. Pena que perdi o ônibus das sete. Ela deve ter ido nele. Subiu com aquele sorriso branco, cumprimentando todo mundo. Se eu estivesse naquele ônibus, bem que ela poderia ter sentado do meu lado. Mas eu sou um babaca mesmo, devia ter aproveitado na primeira vez que a vi. Tava ali, sentadinha do meu lado e eu só olhei pra ela duas vezes: quando entrou e quando saiu. Devia ter fixado meu olhar nos olhos dela quando pediu licença pra sentar. Ah, se fosse agora... Eu deveria ter sabido antes que o amor só existe à primeira vista. Lá vem o ônibus. Deixa eu chegar pra frente pra subir primeiro.
     Hoje eu vou trocar de lado. Vou sentar do lado direito pra ver se dá sorte. Droga! Ta meio vazio. Tem muito lugar sobrando. A chance é de que ela sente noutro banco. Tenho que confiar na sorte.
     Ué... Não tá na parada. Peraí, deve estar, eu é que não vejo. Não, o ônibus nem vai parar, não tem ninguém, não, não... Saco! Mais um dia perdido, dois seguidos. Quantos ainda vou ter que esperar, dois ou até mais. E se ela não vier nunca mais? E se mudou de emprego? E se mudou de horário? Ou mudou de endereço? Não. Deve estar doente. Com esse tempo ninguém agüenta. E ela é tão delicada, tão indefesa. Amanhã é outro dia e, se Deus quiser, ela vai estar na parada, vai pegar o ônibus e sentar do meu lado. Então não precisarei mais curtir esta paixãozinha platônica, que nem quando a gente tava no primário e dizia: “tô namorando a Fulana, mas ela não sabe.”
     Não poderia ser melhor, hein! Todos os dias juntos: a gente saía de manhã cedo, viajava junto e passava o dia trabalhando. Depois, à tardinha, voltava junto, ia pra casa dela, jantava, curtia um sofazinho com televisão e velhos na varanda e, finalmente, quando eles fossem dormir, beijos e abraços, carícias e promessas, gemidos e esperanças... Não quero nem pensar.
     Por que será que a gente nunca se encontra na volta? Será que ela sai mais cedo do trabalho? Ou mais tarde? Não. Deve estar na faculdade. Tem cara de quem estuda comunicação, relações públicas. É, relações públicas. Fica bem: Clarice, Relações Públicas, morena, olhos pretos, cabelos lisos — não muito compridos — mais ou menos um metro e setenta, sessenta quilos, tudo na medida e tudo pra mim. Só pra mim.
     Outro dia que começa cheio de esperança. Hoje há algo mais do que esperança: é quase certeza. Tem que ser hoje. Não vou nem deixá-la respirar: quando sentar ao meu lado vou fazer que já conheço e perguntar o que houve, por que não veio ontem, fiquei surpreso, pois, sendo tão bonita, sua ausência se fez notar e patati-patatá, etc. e tal. Hoje é quinta-feira e tem que dar certo.
     Lá tá ela, na parada. Vou espichar o pescoço pra ela notar que estou interessado. Oba! Hoje ela foi a primeira a subir. Sorrindo como sempre, distribuindo sorrisos. Quando ela me olhar vou arriscar um sorriso. Ai... Ai... Enxergou algum conhecido lá atrás... Vou ver quem é. Não conheço. Vem vindo. Olha! Olha pra mim, boneca. Olha pro titio aqui que tá louco por ti. Vem, vem, senta aqui... Não, não, não... Merda! Foi lá pra trás.
     Mal me olhou. Nem me deu oportunidade de sorrir. Não me dá chance. E eu cada vez mais tarado, mais louco. Tenho que ficar nessa passividade a vida toda? Tenho que esperar que a sorte a traga pro meu lado? Até quando? Não agüento mais. Amanhã, juro, se ela não sentar ao meu lado, espero que desça do ônibus e vou atrás. Chego e explico tudo.
     E se eu falar tudo e ela disser que é noiva? Não, noiva não é, nem tem aliança. E se tiver namorado? Aí to ralado. Vou ter que mudar de horário, sair ou mais cedo ou mais tarde, sei lá... Se for assim, tô perdido. Já pensou, depois de eu gastar o meu papo ela dizer: “Sinto muito. Desculpe se provoquei tudo isso em você. Foi sem querer, não tive intenção alguma. Além do mais, acho que houve uma certa presunção de sua parte, pois eu só lhe conheço de vista.” Já pensou com que cara eu fico? Depois vai contar pra todos os conhecidos do ônibus o que aconteceu. Vai até rir da minha cara. Não, nunca mais vou poder pegar o ônibus neste horário.
     Mas isto tudo é bobagem. Vou esperar que ela sente ao meu lado e, quando acontecer, vou falar com ela e as coisas vão-se encaminhar. De mais a mais não é a primeira vez que dou em cima de alguém sem conhecer. E quase nunca me dei mal. Devagar se vai ao longe. Depois que ela me conhecer, vai querer sentar ao meu lado todos os dias. Daí pra frente é em dois toques. Amanhã a gente vê como as coisas vão ficar.
     Faz duas semanas que estou nesta batalha. Sexta-feira é dia de o ônibus vir mais cheio. Lá vem ele. Sempre no horário. Dentro dele eu e, daqui a pouco, ela.
     É, tá bem cheio. Mas meu lugarzinho ainda tá sobrando. Meu lugar não: nosso lugar! Se Deus quiser, não passa de hoje.
     Já a estou vendo na parada. Tá de vestido! Nunca tinha visto suas pernas descobertas. E que vestido legal. Realça suas curvas. Como caminha lindo esta mulher, mexe com tudo, inclusive e especialmente comigo. Linda, linda, linda! Só falta eu ali do lado dela. Os braços em volta da sua cintura, pressionando seu corpo levemente contra o meu, fazendo-a sentir que tem um Homem com ela. Sinto o calor, o perfume do seu corpo. Roço meu rosto nos cabelos dela, caminho com os lábios pelo seu rosto e encontro sua boca úmida, de hálito morno, desejosa por meus beijos. Ai, Deus! Que loucura!
     Subiu! Subiu a rainha! Clarice, Cláudia, Relações Públicas, Advogada, noiva ou namorada, não interessa nada, subiu e vem vindo. Cada passo é uma tortura. Olha em volta, troca sorrisos, parece comercial de televisão, propaganda de cigarro, deusa dos meus dias, vem vindo, vem vindo, deixa eu me ajeitar, cada vez mais perto, vem, vem meu amor, tô pronto pra ti, te amo, te amo, olhou! Ela olhou pra mim, vai sentar do meu lado, olhou de novo, olhou pro outro lado, parou aqui, vai sentar, vai sentar...
     — Po... Pois não...
     — O senhor tem fogo?
     — Te... Tenho sim. Cla... Claro. Po... Pois não. Tava bem aqui... Achei! Co... Com licença. Ih! Droga de isqueiro! Tava bom até agora... Só um momentinho. Já vai funcionar. Nã... Não quer acender. Ma... Mas não faz mal, não. Eu... Eu te amo, eu te amo, eu te amo assim mesmo!

     E, assim, dei adeus à deusa do ônibus...

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Virgem!


          Estou arrasado. Passei seis décadas pensando que minhas características cognitivas, afetivas e volitivas determinavam meu espírito, minha índole e meu caráter e, agora, descobri que tenho outra personalidade, que não sou o que fui até hoje.
         Isso tudo tem a ver com os signos do zodíaco, vejamos.
         Há cerca de 10 mil anos, devido à necessidade de planejar o plantio, o homem pré-histórico começou a observar os astros. Percebeu, então, que alguns formavam padrões fixos, enquanto outros se moviam. Passou a chamar os primeiros de estrelas fixas; aos outros, os gregos chamaram de planeta.
         Logo, os homens perceberam que o Sol percorria anualmente um círculo de 360º em relação ao fundo de estrelas fixas. A esse caminho deram o nome de eclíptica que, hoje, sabe-se que é a projeção da órbita da Terra em torno do Sol. Notaram, também, que o movimento da Lua e dos demais planetas, em relação às estrelas fixas, se dava nas proximidades da eclíptica, e que, em seu trajeto, passavam em frente a algumas constelações. O trajeto foi dividido em 12 partes e recebeu o nome de zodíaco. Os antigos acompanhavam o movimento do Sol sobre o zodíaco e tentavam identificar regularidades. Surgiram, então, os conceitos dos signos, cujos nomes correspondiam às constelações que os designaram.
         Como bons observadores, perceberam um fenômeno conhecido como precessão. O que seria isso? A Terra não é perfeitamente esférica, sendo achatada nos pólos. Isso faz com que se forme, na região do equador, uma “barriga”, sobre a qual atua a gravidade do Sol e da Lua, provocando uma alteração no movimento do planeta sobre seu eixo. A ação dessa gravidade sobre a Terra faz o eixo terrestre descrever um movimento semelhante ao de um pião, que leva 25.800 anos para completar uma volta. Isso é a precessão.
         Pois a precessão vai afetar as datas dos equinócios. O movimento de pião do eixo da Terra vai fazer com que, a cada ano, o instante em que o Sol cruza o equador celeste aconteça cerca de 20 minutos mais cedo, em relação ao ano anterior. Acumulados ao longo de dois mil anos, esses minutos anuais correspondem a aproximadamente um mês. É por isso que hoje, quando acontece o início da primavera, o Sol está passando pela constelação de Peixes, e não mais pela de Carneiro, como acontecia antigamente.
         Resumindo: descobriram que não dá mais para se basear naqueles signos do zodíaco de milhares de anos atrás para determinar como é ou como será a personalidade de um indivíduo de acordo com o dia e a hora de seu nascimento. Os astros não estão mais no mesmo lugar que estavam na antiguidade. Além disso, aqueles 20 minutos anuais determinaram o surgimento de mais um signo, que é o Ofiúco.
         Quanto a mim, nasci num 04 de setembro, às três da madrugada. Desde então, os horóscopos diziam que quem nascia entre 23 de agosto e 23 de setembro pertencia ao signo de Virgem. A principal característica dos nascidos sob esse signo é a vontade de fazer sempre melhor. Suas qualidades são o capricho, a humildade e o aperfeiçoamento constante. Também têm defeitos: são críticos, excessivamente meticulosos e têm mania de perfeição. Cresci assim, com essa característica, essas qualidades e esses defeitos.
         Uma das explicações para que os virginianos sejam, em geral, perfeccionistas, é porque observam os detalhes. Percebem que, muitas vezes, as coisas não dão certo devido a um pormenor. Como o virginiano também tem medo da crítica, os detalhes devem ser minuciosamente trabalhados para que o resultado final seja perfeito.
         No trabalho dão o melhor de si se sentem mais satisfeitos. Sendo perfeccionistas por natureza, estão constantemente buscando aperfeiçoamento. Extremamente ordeiros, detestam que sua organização seja desfeita ou alterada, porque lhe deu muito trabalho chegar a ela.
         Enfim, são muitas as qualidades e defeitos de um virginiano. Não vou citar tudo neste texto, que não pretende ser um mapa astral. Têm coisas na personalidade desses indivíduos, no entanto, que não se encaixam na minha. Por exemplo: dizem que o virginiano é hipocondríaco e tem medo de doenças, que teme se apaixonar porque as coisas fogem do seu controle, que tem mania de limpeza... Não sou assim.
         Agora é que vem o choque. De acordo com a ciência, que descobriu que as coisas não estão no mesmo lugar desde que “inventaram” os signos, as datas a que eles se referem mudaram totalmente. O signo de Virgem, que abrigava os nascidos entre 23 de agosto e 23 de setembro, passou a ser contado, agora, de 16 de setembro a 30 de outubro. Como nasci num 04 de setembro, não sou mais Virgem, agora em todos os sentidos. Sabem o que sou? Leão! Sim, porque leoninos são os que nascem entre 10 de agosto a 15 de setembro.
         Vou ter que mudar minha personalidade para me encaixar com a de um leonino. Pesquisei aqui e ali e descobri que a principal característica desse signo é a alegria. Entre suas qualidades estão a dignidade, a generosidade e a extroversão. Como defeitos, carrega o egocentrismo, o autoritarismo e a teimosia.
         Posso dizer que sou alegre, digno e generoso, mas não sou extrovertido; sou um pouco egocêntrico e teimoso, mas não autoritário.
         Leão é signo de liderança, de força criativa, entusiasmo e afetividade expansiva. Símbolo de segurança frente ao meio exterior. O leonino busca o reconhecimento e, por isso, pode se expressar de forma firme, dramática ou arrogante e autoritária. Tem brilho e criatividade.
         Dizem que os homens de Leão são bonitos e agradáveis, possuem um charme arrebatador que atrai as mulheres. Aí é que a porca torce o rabo: não sou nada bonito... Será que vou ter que procurar ajuda de um cirurgião plástico pra me adaptar a meu novo signo?
         Fiquei arrasado com a descoberta. Vou fazer terapia, de preferência com algum astrólogo, mas sem revelar-lhe a verdadeira causa, porque, para essa categoria profissional, nada mudou.
         Veja as novas datas dos signos e pense a respeito

Signo

Nova data

Áries

19 de abril a 13 de maio

Touro

14 de maio a 19 junho

Gêmeos

20 junho a 20 julho

Câncer

21 de julho a 9 de agosto

Leão

10 de agosto a 15 de setembro

Virgem

16 de setembro a 30 de outubro

Libra

31 de outubro a 22 novembro

Escorpião

23 de novembro a 29 de novembro

Ofiúco

30 de novembro a 17 de dezembro

Sagitário

18 de dezembro a 18 de janeiro

Capricórnio

19 de janeiro a 15 de fevereiro

Aquário

16 de fevereiro a 11 de março

Peixes

12 de março a 18 de Abril

domingo, 16 de janeiro de 2011

Atropelamentos


     Finalizando a série “textos antigos encontrados numa gaveta”, um texto triste e curto.


     Para Bebeto, a repressão não era mais sentida. Era visível. Trancado no quarto, obrigado a estudar, viu pela janela chegarem os guardiões da liberdade e da segurança. Capacetes brancos e cacetetes. Começou a chorar.
     Entre a multidão que passava na rua, uns paravam para olhar; outros, simplesmente olhavam. As gotas da umidade de agosto escorregavam pelos muros e telhados, fazendo jogos malabares até, atônitas, estatelarem-se no chão.
     As árvores quase desfolhadas, plantadas nas lajes, não se importavam com o que muitos diziam a respeito delas: bem que poderiam haver postes no lugar dessas árvores frias. Eles carregariam fios. Elas, o que fazem?
     Alheio ao movimento que se formava, um cão sarnoso tentava expulsar algumas das pulgas que furtavam os últimos glóbulos do seu sangue. E Bebeto só espiava. Do seu quarto não enxergava a rua principal. Continuava chorando.
     Um policial – bigode, costeletas, cabelos com brilhantina, óculos escuros, casaco marrom, calça verde e camisa floreada — um verdadeiro uniforme de quem costuma andar à paisana seria correto dizer — chamou um padre que passava. O reverendo olhou para os automóveis engarrafados que buzinavam e foi até onde o policial lhe levara. O dono da mercearia, de guarda-pó branco, falava, à porta da loja, com uma cliente gorda. Quase todas o eram. Ninguém entrava. Ninguém comprava nada.
     Na rua do lado parou um carro. Trazia um repórter e um fotógrafo. Bebeto os viu de seu obscuro posto. Ficou excitado e soluçou.
     Já era tarde na tarde cinza. O movimento parecia ter normalizado. Os automóveis buzinavam menos. O carro da imprensa e o da polícia estavam saindo. Bebeto viu, em sentido contrário, passar uma ambulância de sirena aberta, com o sinal fechado. Já tinha parado de chorar, mas seus olhos ardiam.
     Ouviu o silêncio por uns instantes. Sua mãe não estava mais costurando. O ruído da máquina havia cessado. Caminhou devagar até a porta do quarto e abriu-a. Não estava mais chaveada por fora. Passou silenciosamente pelo corredor e alcançou a porta do apartamento. Sua mãe não estava por perto. Não o vira sair. Estava ansioso para saber o que acontecera.
     Desceu correndo os dois andares que o separavam da rua. Sem parar de correr, atravessou em direção à pequena multidão ociosa.
     A mãe de Bebeto foi ao seu quarto. Não encontrando o filho, olhou pela janela e viu chegar o carro da polícia e o da imprensa, pouco antes de passar uma ambulância de sirena aberta, com o sinal fechado.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Insônia



     Estou de volta com mais um episódio da série “textos antigos encontrados numa gaveta”.

     Ele já havia assistido ao último filme velho que passara na televisão. Os capítulos finais do livro de ficção foram devorados em pouco tempo. As luzes da casa estavam todas apagadas. A mulher de seus anos passados dormia a seu lado, profundamente. Atirou a cabeça contra o travesseiro que supunha lhe fosse aprazível. Fechou os olhos. Dois a dois, os tique-taques foram sendo contados.
     A quietude do sono não vinha buscá-lo. A viagem para a terra da fantasia, do sonho, custava a anunciar-se. O tique-taquear do carrilhão explodiu numa melodia imponente que veio despejar-lhe nos ouvidos alguns quinze minutos. Poderiam ser quaisquer quinze minutos. As horas já se tinham perdido e ele as queria procurar.
     Cansado de lutar contra os lençóis e de cabecear o travesseiro, sentou-se e tateou a mesa de cabeceira até encontrar o maço de cigarros e os fósforos. O clarão do fósforo aceso berrou para a escuridão enquanto durou a sua curta vida. Recostou-se. Agora, só uma ponta vermelha do cigarro apenumbrava o ambiente. A cada tragada, as curvas da gorda mulher apareciam, avermelhadas, e desapareciam. Ela ressonava.
     Tudo aquilo lhe estava sendo muito penoso: a mulher ressonante, o escuro, os espaços de silêncio. Acabou-se o cigarro e a fumaça da última tragada envolveu um espectro claro e disforme que lhe chamou a atenção. Não sabia o que era, como era, mas estava ali e parecia chamá-lo. Era um espectro faceiro, que dançava contorcendo-se ao embalo do ar tépido. Poderia até estar rindo. E rindo dele, o insone.
     Tirou o lençol de cima do corpo molenga, estirou as pernas para baixo e ficou sentado na cama. Meteu os cotovelos nos joelhos e a cabeça confusa entre as mãos. Impelido por um desejo desconhecido, calçou os chinelos e precipitou-se na escuridão. Perseguiu o fantasma que atravessara o vão escuro da porta, o corredor e a sala. Parou para ao som daquela melodia que novamente saía devagar e preguiçosamente do carrilhão. As notas saltavam da parede e iam cair aos seus pés, dizendo lhe que valiam por alguma hora certa. Mas ele não sabia qual delas, pois não as contara.
     Parou de cara para a porta. Girou a chave duas voltas para a direita. A porta abriu-se e seus olhos, desacostumados à luz, contraíram-se. A lâmpada de mercúrio do poste plantado à frente da casa lançou-lhe, insistentemente, seus raios azulados. Esperou um pouco. Vencido o súbito clarão, saiu e olhou a rua, para cima e para baixo. Desceu-a desviando-se dos buracos da calçada. Não fechou a porta e nem reparou que usava seu velho e desbotado pijama de todas as noites. Já não pensava da mulher, no escuro e no espectro.
     Na esquina com a avenida principal ficou em dúvida: pra que lado ir? Parecem iguais. O lado esquerdo ele conhecia bem, passava por ali todas as manhãs quando ia ao trabalho. O direito parecia ser melhor. Convicto de que era, seguiu para lá.
     Algumas casas de comércio, muitos bares, umas boates e letreiros luminosos compunham a multidão daquela hora. Um canteiro de cimento com árvores que nunca cresciam dividia a avenida em dois riscos pretos que desapareciam numa curva.
     Ouviu, por trás, o ronco abafado de um automóvel que se aproximava e que passou por ele. Jovens algazarreiros lotavam o lento veículo. Segundos depois, suas vermelhas lanternas traseiras sumiam na curva, fundindo-se com a avenida que também desaparecia lá. Não fosse o rastejar de uma cortina de ferro, o silêncio seria completo. As luzes coloridas dos letreiros acendiam e apagavam, lançando raios matizados no chão, nas vitrinas, nos seus olhos. Caminhava com as mãos nos bolsos, os chinelos xaque-xaqueavam no chão.
     Achava estranho aquelas vitrinas abertas, expondo mil bugigangas, os luminosos piscando e ninguém na rua. Ninguém passando ou saindo, ou entrando, nos bares, nas boates. Ele queria uma noite especial. Nesta hora, nas outras noites, estava sempre dormindo. Continuou a caminhar para não sabe onde, desgostoso com as vitrinas, os luminosos, bares e boates, com as noites e suas pessoas ausentes, desgostoso consigo.
     As luzes coloridas que brincavam com o asfalto iam, aos poucos, apagando-se. Os luminosos animados tornavam-se raros, deixando lugar a outros mais simples. O asfalto ganhava sua cor natural a cada lâmpada que deixava de brilhar. Dos vidros saíam arco-íris de reflexos. Parou e olhou para trás. Não tinha noção do que já caminhara e do quanto ainda lhe faltava para chegar nem sabe aonde.
     De repente voltou a pensar na mulher, no filho que ela pôs fora e no seu quase mofo casamento. Como seria bom poder chegar ao fim desta avenida da vida, cheia de luminosos artificiais, de ninguém nas ruas e vitrinas morrinhentas. Quisera voltar e recomeçar tudo, ir para outro lado. Já estava envelhecido e alienado. Sempre fora um desligado. Fez tudo da maneira mais simples e que não lhe desse trabalho: nasceu de cesariana, jogava de goleiro com a gurizada, estudou em colégio pago, namorou a primeira que lhe acompanhou ao cinema sem levar junto a mãe, casou com aquela que lhe deu os lábios no primeiro encontro, estudou Direito e trabalha há muitos anos com o velho tio, no escritório de advocacia. Agora, pela primeira vez, tenta uma coisa nova: na avenida seguiu para a direita por não conhecê-la. Continuou seu caminho. Estava convicto de que algo mudava.
     Encontrou um guarda-noturno dormindo sentado. Tinha um relógio pendurado no ombro e o chão estava cheio de pontas de cigarro. Queria pedir-lhe um cigarro, mas resolveu não incomodá-lo. Logo seria manhã e ele acordaria. Afinal, por que um guarda-noturno teria de ser diferente das outras pessoas que dormem à noite?
     Parou para ler os cartazes que envolviam os postes. Eram cartazes de bailes, deputados, vereadores, loções e teatros. Um cartaz de uma peça teatral chamou sua atenção, dizia: NÃO ADIANTA FUGIR, A AMEAÇA ESTÁ DENTRO DE VOCÊ! Apesar de não lhe ter faltado vontade, ele não correu. Seguiu no seu passo arrastado, vadio. O asfalto dera lugar a paralelepípedos irregulares.
     Entre as casas, agora, havia espaços maiores, terrenos vagos. As pedras do chão falhavam e, em poucos passos, ele pisava em terra vermelha. Logo, a trilha desapareceu. As casas não tinham mais um lugar certo. Umas estavam de frente, outras de lado e até havia algumas de costas. Caminhava entre jardins e quintais, sentia-se um intruso. Parou à frente de uma sepultura de criança. Rezou aos pés daquele monumento ao fracasso da vida.
     Levantou-se e olhou para os lados. Não viu mais o clarão da avenida. Sentiu-se em meio a um grande deserto. Um vulto assanhado, faceiro, veio dançando ao seu encontro.
     Lembrou-se do seu quarto escuro, da falta de sono. Não sabia o que era aquele vulto, mas o foi seguindo até os raios do sol entrarem pelas fendas da veneziana.