Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sábado, 31 de dezembro de 2011

O dia que não precisava existir

     O relógio do computador marcava pouco mais de 10 e meia quando comecei a escrever este texto. Chovia muito na manhã deste 31 de dezembro, o dia que, por mim, não precisava existir. Eu ia começar a falar sobre amargura quando, pela terceira vez neste mês, faltou energia (não estou falando da minha, mas da elétrica).

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     Cinco horas se passaram, a energia (a elétrica, não a minha) voltou e posso, finalmente continuar.
     Eu dizia que, por mim, este 31 de dezembro não precisava existir. Como não posso evitar, e é um dia importante para outras pessoas, pensei em voltar pra cama (isso naquela hora que faltou energia), dormir e só acordar quando fosse o primeiro dia útil do ano que vem. Nem me importaria de não apreciar os fogos, ouvir os foguetes que fazem todos os cachorros do mundo latir desesperadamente e assistir ao show brega da Globo. Se não fosse dormir pra acordar na segunda-feira, outra opção seria ver a meia noite passar como motorista de ônibus, recepcionista de motel, repórter, médico, enfermeiro, faroleiro ou qualquer profissional plantonista, pra passar alheio.
     Desde ontem estou amargurado. Não sei por quê. Talvez porque tenha olhado fotos de réveillons passados, das décadas de 80 e 90. Nelas revi meus filhos crescendo ano após ano naquelas festas de família numerosa, cheia de tios, primos, cunhados e cunhadas, concunhados e concunhadas. São vários álbuns de fotos de um tempo que — é óbvio — nunca mais vai voltar. Nenhum tempo volta, mas, quando se fala assim, fala-se de uma circunstância. E essa circunstância — eu com filhos pequenos, depois adolescentes, em festas de fim de ano cheia de parentes, roupas novas, espumantes, salgadinhos, picanhas, costelas, vazios e cervejas, sorrisos, abraços, poses e flashes — não vai mais acontecer. Os filhos das fotos já são gente grande. Hoje, por exemplo, uma está no Rio; o outro, nem tenho ideia, pois não atende ao telefone, não me liga e nem responde o torpedo de Feliz 2012 que mandei de manhã; eu e a mãe desses filhos havíamos nos separado há alguns anos e, neste ano, ela nos deixou; os parentes numerosos eram família dela, não mais faço parte dela...
reveillon      Enfim, hoje, sem uma grande família, ninguém me convida pra essas festas de ano novo. Depois que inventaram as máquinas fotográficas digitais, qualquer um, ou melhor, procurando ser politicamente correto, todos são capazes de tirar fotos. Minha velha Pentax não é mais necessária.
     31 de dezembro de 2011 e ficarei restrito a minha mulher e ao filho dela. O réveillon vai ser entre cinco: nós três mais a cachorrinha Lila e a gata Wanda. Sim, vamos comer lentilha e porco, tomar espumante e cerveja e nos abraçarmos à meia noite. Não vou tirar, no entanto, muitas fotos para a posteridade. Vou armar o tripé da câmera na sacada da frente e tentar fotografar os fogos de artifício. Mas até eles têm sido mixurucas nos últimos anos.
     Não sou disso, mas aqui vai um plano pra 2012: será o último fim de um ano e começo de outro que passo em casa. A partir do próximo, se ninguém me convidar pra algo melhor, adeus, tia Chica, pego a Clarinha e nos vamos mundo afora. Dias como hoje não vão mais existir.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra

     Algo sobre o recente caso da enfermeira que maltratou um Yorkshire.
     Todos devem ter visto na internet o vídeo da mulher — uma enfermeira — maltratando um indefeso cãozinho da raça Yorkshire, jogando-o no chão e dando-lhe chutes. E, ainda por cima, na frente de uma criança. O revoltante caso virou o principal assunto no Facebook, motivando tanto irascíveis protestos como piadas de gosto duvidoso. Cheguei a ler postagens que poderiam ser classificadas como incitação à violência, instigação ao crime.
     A expressão do título — nem tanto ao mar, nem tanto à terra — significa “nem uma coisa nem outra; sem exageros; com equilíbrio”. E é assim que eu procuro manter minhas relações com animais: sem exageros. De jeito nenhum concordo com maus tratos, mas também não admito que eles sejam tratados como filhos ou qualquer membro da família. Abominável o que a enfermeira fez com o Yorkshire; inaceitável, porém, fazer dela a única bandida do mundo, esquecendo-se que há crimes muito piores sendo cometidos sem que alguém se digne, por exemplo, a “fazer ou assinar uma petição” para que o óbvio aconteça.
     Não consigo entender como alguns têm tanta comiseração com animais, mas não são capazes de se compadecerem com a miséria humana: desde a infância abandonada até a velhice desamparada.
     Eu tenho dois animais de estimação: uma cadela Poodle — a Lila — e uma gata Himalaia — a Wanda. Também convivo, ocasionalmente, com o Chico, um Yorkshire do meu filho. Pego-os no colo, dou carinho, alimento-os, trato-os quando doentes, mas não os beijo...
 

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     Recolhi na internet algumas opiniões de especialistas sobre o que considero exagero na relação de humanos com animais. Pra isso, pratiquei saudáveis CtrlCs de alguns sites e apliquei CrtrlVs neste texto. Tudo o que está abaixo saiu da cabeça de outros e, pelo que entendi, assim como maus tratos, apego demais também é problema psicológico.

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     Ter um animal de estimação em casa pode realmente ser uma ótima ideia. Eles trazem alegria para o lar, são ótimas companhias e, além de tudo, as crianças aprendem com eles a responsabilidade de cuidar de alguém e o valor da amizade. Mas, e quando o amor destinado a esses animais passa dos limites? De acordo com especialistas, é muito comum que as pessoas depositem uma quantidade enorme de amor nos bichos de estimação, e em casos mais extremos, vivam exclusivamente para cuidar destes animais. “Pessoas que apresentam um grau de depressão ou de carência muito elevado estão mais suscetíveis ao apego em excesso pelos seus bichos”, diz o psicólogo Paulo Tessarioli. “Muitas vezes, essas pessoas vivem em função do seu animalzinho, esquecendo-se, muitas vezes, de sua vida social, por exemplo”, diz.

     Para o psicólogo Hélio Guilhardi, mestre em psicologia experimental pela Universidade de São Paulo, “a convivência prioritária com o animal produz pessoas alienadas do mundo que as cerca”. Ele reconhece que ter um animal é saudável, mas diz que o bicho não deve ser fonte única de carinho. “Relações com animais podem envolver afetos genuínos, mas isso não basta. O afeto entre humanos tem uma riqueza superior e não pode ser dispensado. Excessos afetivos com animais não indicam sensibilidade privilegiada. Pessoas autoritárias, egoístas e metódicas tendem a ter mais facilidade em dirigir seu tônus afetivo para bichos. Conviver com animais torna a vida mais fácil, embora mais fácil não signifique melhor”.

     De acordo com Paulo Tessarioli, a primeira atitude é se convencer de que o exagero pode ser prejudicial. “Analisar sua postura com seu animal de estimação é o primeiro passo. Se o problema for com outra pessoa, vale tentar conversar, mas sem forçar a barra”. A ideia é mostrar que existem outras coisas na vida além daquele bicho. Mas, alguns casos pedem ajuda profissional. “Quando a pessoa não consegue se desligar do animal, seja por qualquer motivo, o melhor a fazer é procurar um especialista, já que problemas como depressão, desapego à realidade e solidão podem estar envolvidos”.

     Os especialistas explicam que quando as pessoas tratam os animais como se fossem filhos ou quando o elo se torna muito forte entre eles deve-se tomar certos cuidados. “É preciso fazer a distinção entre as espécies, para que possam aprender a cuidar da forma correta. Senão pode até adoecer um animal, por querer que ele seja uma espécie que não é”, ressalta a psicóloga Madalena Cabral Rehder.

     Além disso, ela explica que o apego excessivo ao animal pode trazer problemas como qualquer outro na vida da pessoa. “Ciúmes, agressão, exagero no cuidado, estresse pelos cuidados excessivos. Se a pessoa age assim, o animal não busca pelas ações livremente e acaba por não desenvolver os hábitos próprios.”

     O veterinário Milton Kolber complementa que as consequências desse apego vão além. “É aquela frase que diz que tudo que é demais não serve. Isto se aplica também ao animal, porque carinho excessivo resulta em mimo e desobediência”.

     Para César Ades, psicólogo especialista em comportamento animal e professor da USP, não há nada de errado em ter todo esse apego aos animais, desde que eles sejam tratados como tal e não como crianças ou gente.

     Segundo a psicóloga Regina Reis Joana Ribeiro, do ponto de vista clínico, o bicho de estimação é saudável até certo ponto. Quando este ponto é ultrapassado, há uma “humanização” do cachorro. Em contra-partida, justifica que “a partir do momento que um animal selvagem por natureza passa por um processo de urbanização para viver dentro de um domicílio, já estamos humanizando-o”.

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     Agora sou eu de novo. Os textos acima se referem às relações de humanos com seus próprios animais de estimação. Há, ainda, aquelas pessoas que se envolvem demasiadamente com quaisquer animais, exagerando na comiseração, esquecendo-se de que podem haver outras causas envolvendo a raça humana que mereçam mais atenção.
    Com esse caso da enfermeira que maltratou o cãozinho, o Facebook tornou-se o muro das lamentações dos hiper defensores dos animais, tanto dos abandonados como dos maltratados. Eu não gosto da palavra que vou usar, porque seu emprego é pejorativo, resultante de antiga tradição antissemita de origem européia, mas tem muita judiação não vista e não atacada pelos mesmos usuários do Facebook ou de outra rede social qualquer.

Enquanto isso...

     Acredita-se que atualmente chegue perto de oito milhões o quantitativo de crianças abandonadas no Brasil. Destas, cerca de dois milhões vivem permanentemente nas ruas, envolvidos com prostituição, drogas e pequenos furtos. Um número expressivo, demonstrando que não foram aplicadas políticas eficazes para a redução da triste realidade apresentada já em 1994, quando existiam sete milhões, segundo levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS).

sábado, 19 de novembro de 2011

O vento

O pessimista se queixa do vento, o otimista
espera que ele mude e o realista ajusta as velas.

William George Ward (teólogo inglês, séc. XIX)

     Chega o fim da tarde e traz junto o vento da primavera. Eu o chamo de Vento Gonçalves, porque da janela vejo a rua que homenageia o outro Gonçalves, aquele mesmo, o Bento da Revolução Farroupilha, e faço uma comparação entre ambos. Da janela também vejo os arranha céus da Bela Vista sendo lambidos pelos últimos raios do sol deste horário de verão.

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     Gosto do horário de verão. A mim parece que a luz do sol sobre a cidade fica mais bonita. O vento, em compensação, me deprime. Não gosto de vento, especialmente desse que assovia pelas frestas da mesma janela (e de todas as outras) por onde aprecio a beleza do fim de tarde. Sou como o pessimista da frase de William George Ward. Olho pra fora e vejo que o vento, de tão forte, também incomoda aquelas mulheres cujos cabelos, de tão duros, não sei qual é o pente que os penteia. Logo, logo passa voando desesperadamente um saquinho plástico branco, retorcendo-se todo à procura de um galho de árvore ou de uma malha de fios da rede elétrica onde possa enroscar-se e ali permanecer pelos próximos 30 ou 40 anos, que é o tempo que leva para se decompor.
     Em novembro venta muito. Ventou tanto no feriadão do aniversário da Proclamação da República que nem saí de casa. Não me recordo de um novembro anterior tão ventoso como o deste ano, mas a gente nunca se lembra de ventos, chuvas, calores e frios passados. Ainda bem que existem os jornais para estamparem na capa e as mocinhas do tempo dos telejornais para nos lembrarem que “há ‘x’ anos não ventava tanto” ou “não chovia tanto” ou “não fazia tanto calor” ou “tanto frio”; ainda bem que também existem os meteorologistas pra guardar os registros dessas efemérides e os informar à imprensa.
     O ruído do vento se confunde com o barulho dos ônibus que passam aqui embaixo. Às vezes penso que é um, mas é o outro. Só percebo que é o vento quando fica muito tempo zunindo, pois um ônibus acelerado não demoraria tanto pra passar. Olho para um pouco mais longe, em direção ao Morro Santana, e vejo uma fumaça branca como se fosse uma nuvem se arrastando célere e serelepe sobre os prédios da PUC. É uma imagem borrada. Se não tivesse vento, a fumaça subiria numa coluna levemente inclinada em direção às igualmente brancas nuvens, misturando-se a elas e tornando bucólica a paisagem que vislumbro. Ah, o vento que esfumaça a fumaça...
     À medida que o sol se esconde, mais o vento zumbi e zomba de mim, soprando pelas frestas das janelas, soando feito vaia da torcida ao time adversário: uhuhuhuhUHUHUHUHuhuhhu! uhuhuhuhUHUHUHUHuhuhhu! As esquadrias de alumínio das duas lâminas das portas envidraçadas das sacadas batem-se uma contra a outra. E são duas as sacadas. É preciso embuchá-las com um papelão dobrado. Fecho as persianas fabricadas com o leve PVC. Ah, mas elas, como eu, também não suportam o vento e, irrequietas, esfregam-se contra o trilho que as guia pra baixo e pra cima. É mais um ruído intermitente fazendo coro com a descontínua vaia do vento.
     Finalmente anoitece. Onde antes havia a luz do sol da primavera há, agora, a iluminação pública. A lua é minguante e só vai aparecer lá pela meia-noite, mesmo assim produzindo pouco brilho. Dizem que é nesse período de lua minguante que devemos aproveitar para nos livrar do que não mais precisamos, fazer limpeza doméstica, finalizar tarefas começadas, resolver assuntos pendentes, largar situações insatisfatórias. Dizem que tudo perde um pouco a intensidade e a importância. Espero que seja verdade e que este vento de novembro perca a intensidade.

     Puxa! Nem tinha me dado conta: enquanto escrevia o que meu coração sentia, o vento virou brisa. Encerro, então, com uma frase do padre António Vieira (religioso, escritor e orador português, séc. XVII):

     Para falar ao vento bastam palavras, para falar ao coração são necessárias obras.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Época pra ser criança

shurato      Na semana que antecedeu o Dia das Crianças, um amigo — que foi criança na década de 90 — postou no Facebook um trecho de uma animação japonesa que passava na TV. Era um tal de Shurato, de quem nunca ouvi falar, porque meu contato com programação infantil encerrou-se na década de 80. Na ocasião da postagem, fez o seguinte comentário: “sinto pena da criançada de hoje, que não tem coisas tão legais assim”. Me senti na obrigação de responder, dizendo: “Não fiques com pena dos que não têm o que tiveste, senão me sentirei obrigado a sentir pena de ti, que não teve o que eu tive...” Ao que o sujeito, não entendendo o que eu quis dizer, respondeu: “Sinta-se livre para sentir o que quiser, independente das minhas emoções. Acho difícil eu invejar a tua geração, uma vez que na minha já existia propaganda contra cigarro”. Resolvi parar por aí e até agora estou sem saber o que uma coisa tem a ver com a outra, assim como não sei o que pena tem a ver com inveja e Shurato com cigarro. Afinal, de acordo com Shakespeare, “só sou responsável pelo que eu falo, não pelo o que você entende”.
     Sinto pena — no sentido de compaixão, piedade, comiseração — de o amigo não ter entendido que vivemos tempos distintos e que não existe isso de uma época ser melhor que outra; pena que ele não sabe que cada um viveu suas experiências da melhor maneira que pode; pena que trouxe a discussão para outro lado. Em todo caso, já que me liberou pra sentir o que quiser, confesso que não sinto invejo nem pena de alguém que se emocionou com um “herói” japonês de olho grande que fala fazendo gestos marciais. Aliás, como todos os super heróis orientais... Talvez se existissem troços assim no meu tempo de criança eu também fosse fã. Como, porém, posso saber, se no meu tempo não havia essas maravilhas?
     Nasci no último ano da década de 40. Fui criança na de 50 e parte da de 60. Morava com minha família em uma casa, assim como todos os meus amigos de rua e colegas de escola, pois, naquela época, eram raríssimos os edifícios no bairro Higienópolis. Meu colégio ficava a cerca de um quilômetro da minha casa. Eu e outros meninos e meninas da minha rua e de ruas próximas íamos a pé até a Escola Santa Maria Goretti. As freiras nos recebiam na entrada. Da mesma forma voltávamos, juntos, fazendo algazarra pela rua.
carrinho      Depois de fazer os “temas”, a turma se encontrava na pracinha em frente a minha casa. Lá se jogava de tudo (já escrevi sobre isso em Jogos de bola). Além dos jogos, brincávamos de mocinho e bandido, de esconder, de pegar; por um cordãzinho puxávamos pequenos carrinhos de madeira, empinávamos pandorgas; andávamos de bicicleta, fazíamos carrinhos de lomba, enfim, uma infinidade de coisas somente possíveis a quem morava em um bairro residencial. E, com exceção do centro da cidade, todos os bairros eram residenciais na década de 50.
     Depois da janta, a diversão da família (naquela época uma famímlia tinha um pai, uma mãe e pelo menos dois filhos) era reunir-se na sala, em torno do rádio (leia O rádio). E foi assim até o surgimento da televisão, no início da década seguinte, quando o foco mudou. Nos sábados, como não tinha aula, passávamos o dia todo na rua. Nas manhãs de domingo íamos a missa; nas tardes, aos matinês dos cinemas. Havia pelo menos seis cinemas nas proximidades. Antes dos filmes, assistíamos a animações: Pica Pau, Tom e Jerry, Gato Felix, Dom Pixote, Zé Colmeia, Snoopy. Depoiso dia em que a terra parou vinham os filmes de faroeste, com John Wayne, Gregory Peck, Richard Widmark; os de ficção científica, como O dia em que a Terra parou, Guerra dos mundos, Planeta proibido, Vampiros de alma, entre outros (todos refilmados recentemente); os épicos históricos e religiosos, como Quo Vadis, Ben-Hur, Spartacus, Lawrence da Arábia, Cleopatra, além das comédias e dos romances. O legal era levar aquele monte de revistas em quadrinhos pra trocar no intervalo entre os dois filmes que passavam. E era com algumas dessas revistas que tínhamos contato com cowboys famosos (Roy Rogers, Durango Kid, Tom Mix, Buffalo Bill, Buck Jones, Hopalong Cassidy) e com super heróis, não orientais, mas norte-americanos: Super Homem, Batman, Fantasma, Homem de Ferro, Capitão América, etc. Pelo jeito, estes continuam “emocionando” também as crianças de hoje, pois volta e meia um deles aparece nas telas do cinema.
citroen      No caso específico da minha família, no verão passávamos alguns dias em Ipanema — não no Rio de Janeiro, mas no bairro homônimo de Porto Alegre —, onde tínhamos um chalé. Como era longe! O Citroën do meu pai ia lotado. Outras vezes, íamos de barca à praia da Alegria, no outro lado do Guaíba. Isso quando eu não ia pescar com meu pai na Ilha da Pintada. Voltávamos sem peixe algum, pois os devolvíamos para a água...
     Tomo a liberdade de reproduzir o texto que minha amiga Sandra Fagundes postou ontem, Dia das Crianças, no Facebook.

“Quando eu era criança gostava de dias de chuva, às vezes a nossa rua inundava e a gente tomava uns banhos de piscina, banho de mangueira, de tanque, de bexiguinha, ficava o dia inteiro montando casinha e depois tinha que desmanchar tudo porque a mãe chamou...odiava comer e dormir porque era perda de tempo, brincava de 5 marias, elástico, polícia-ladrão. E tem um detalhe eu tinha um grandalhão palh... aço que aprontava junto. Meu pai. Ele fez os móveis da Susy, a minha mãe fez as roupinhas, dia da criança tinha brincadeiras especiais....Não pude ser tudo isso para meus filhos, a correria nem sempre deixou, a vida mudou, entraram os eletrônicos, mas fui a quase todos os lugares que achei que não podiam faltar... Agora espero pelos netos e com eles sim certamente vou voltar a ser criança... Gracias a la vida...”

     Ela tem uns quinze anos a menos do que eu (me perdoa se for mais, Sandra), mas se vê que ainda na época em que ela foi criança as brincadeiras ao ar livre e a liberdade para viver eram bem maiores do que as das crianças nas décadas de 80 e 90 e das de hoje em dia.
balão mágico     Meus filhos foram criança na década de 80. Posso dizer que não tiveram a mesma sorte que eu, de terem sido criados em uma casa, pois sempre viveram em apartamento. E no Bom Fim, bairro movimentado. Não tinham uma pracinha em frente à casa, mas curtiram a Redenção; também podiam ir a pé para as respectivas escolas e chegaram a pegar alguns matinês no Baltimore. Sem fanatismos, foram baixinhos da Xuxa, como todos daquela época. Se eram felizes com aquilo, não seria eu a censurá-los. Afinal, cresceram e são felizes, mesmo tendo assistido à Xuxa, ao He-Man e aos Thundercats na TV.
     Acho que a criançada de hoje, mesmo sem jogar bola na calçada ou soltar pandorga na pracinha — e sem assistir ao anime do Shurato —, além de não ser digna de “pena”, será feliz no futuro, porque, a seu tempo, diverte-se e passa o tempo com excelentes videogames, computadores e internet.
     Quem sou eu, então, pra dizer que as coisas do meu tempo eram melhores que as de hoje? A única diferença é que eu “vivi” e “vi” coisas que não se vive e não se vê hoje.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Para evitar recidivas I

     Muitos já leram a expressão do título em bulas de medicamentos, geralmente para doenças infecciosas. Recidiva é o substantivo feminino do adjetivo recidivo, que é aquele que reincide, que torna a errar, ou aquilo que reaparece (no caso de um sintoma ou doença). Em direito penal recidiva é, então, uma recaída na mesma falta, no mesmo crime; reincidência. Em medicina, é o reaparecimento de uma doença ou de um sintoma, após período de cura mais ou menos longo; recorrência.
     Vai daí que devem estar me perguntando: tá, e daí? Daí que respondo: é que nas próximas duas postagens vou falar sobre alguns emails que, volta e meia (leia-se há alguns anos), reaparecem na minha caixa de entrada, ou seja, são recidivas de uma infecção viral que vou classificar como ignorância.
     Um deles é sobre um benefício pago pela previdência social chamado “auxílio-reclusão”; outro é sobre uma tal de “justiça volante”; e por fim um sobre uma emenda à Lei nº 11.915, que instituiu o Código Estadual de Proteção aos Animais, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul.

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     Eu já li várias vezes na internet que é para desconfiar de emails com textos sensacionalistas, em que o autor usa muitas exclamações ou interrogações ao final das frases. Pois nesses três casos, os textos dos emails são assim.

Nesta postagem vou tratar do auxílio-reclusão e da justiça volante.

AUXÍLIO-RECLUSÃO

Assunto: Portaria nº 48, de 12/2/2009, do INSS

DIVULGUEM AO MÁXIMO

Incrível !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

As Centrais Sindicais chiaram com o "aumento" do salário mínimo p/ R$ 545,00, porém não estão discordando do aumento do "salário presidiário" para R$ 810,00!
Será que os sindicalistas e os governantes do Brasil acreditam que um criminoso merece uma remuneração superior a de um trabalhador????
A REFERIDA PORTARIA JÁ FOI REVOGADA PELA DE Nº 333, DE 1º/06/2010 NA QUAL O VALOR DO SALARIO FAMILIA PRESIDIARIO PASSOU A SER DE R$ 810,18 ! ! ! E TEM MAIS. . .
NO CASO DE MORTE DO "POBRE PRESIDIÁRIO", A REFERIDA QUANTIA DO AUXÍLIO- RECLUSÃO PASSA A SER "PENSÃO POR MORTE".
O GRANDE LANCE É ROUBAR OU MATAR PARA SER PRESO E ASSIM SUSTENTAR CONDIGNAMENTE A SUA PROLE.
ISTO É INADMISSÍVEL ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! INCENTIVO À CRIMINALIDADE ! !

Você sabe o que é o AUXÍLIO RECLUSÃO?

Todo presidiário com filhos tem direito a uma bolsa que, a partir de 1/1/2010 é de R$ 798,30 por filho para sustentar a família, já que o coitadinho não pode trabalhar para sustentar os filhos por estar preso. Mais que um salário mínimo que muita gente por aí rala pra conseguir e manter uma família inteira.
Ou seja, (falando agora no popular pra ser entendido):
Bandido com 5 filhos, além de comandar o crime de dentro das prisões, comer e beber nas costas de quem trabalha e/ou paga impostos, ainda tem direito a receber auxílio reclusão de R$ 3.991,50 da Previdência Social.
Qual pai de família com 5 filhos recebe um salário suado igual ou mesmo um aposentado que trabalhou e contribuiu a vida inteira e ainda tem que se submeter ao fator previdenciário?
Mesmo que seja um auxílio temporário, prisão não é colônia de férias.
Isto é um incentivo a criminalidade. Que politicos e que governo é esse?????
Não acredita?
Confira no site da Previdência Social.

Portaria nº 48, de 12/2/2009, do INSS
http://www.previdenciasocial.gov.br/conteudoDinamico.php?id=22

Pergunto-lhes:

1. Vale a pena estudar e ter uma profissão?
2. Trabalhar 30 dias para receber salário mínimo de R$545,00, fazer malabarismo com orçamento pra manter a família?
3. Viver endividado com prestações da TV, do celular ou do carro que você não pode ostentar pra não ser assaltado?
4. Viver recluso atrás das grades de sua casa?
5. Por acaso os filhos do sujeito que foi morto pelo coitadinho que está preso, recebe uma bolsa de R$798,30 para seu sustento?
6. Já viu algum defensor dos direitos humanos defendendo esta bolsa para os filhos das vítimas?

MOSTRE A TODOS O QUE OCORRE NESSE PAÍS!!!

(Obs: não formatei com as cores e o tamanho da fonte do email original)

      Pois bem, recebi de novo esse email nessa semana, acho que pela 20º vez, como tem acontecido desde o primeiro mandato do presidente Lula. A aberração começa pelo “assunto”: Portaria nº 48, de 12/2/2009, do INSS. Ora, estamos em setembro de 2011 e o número das portarias do INSS já deve andar pela casa dos 500. Depois de várias interjeições e expressões entre aspas, o autor pergunta se o leitor sabe o que é o auxílio-reclusão. Na primeira linha diz que é uma “bolsa” de R$ 798,30 que, a partir 01/01/2010 todo presidiário com filho tem direito.
     Ué? A data não era 12/02/2009? O valor não era R$ 810,00 como diz no começo do email?
     Em seguida, diz que um bandido com cinco filhos recebe R$ 3.991,50 da Previdência Social (Isso é o resultado de R$ 798,30 vezes 5).
     Logo após, deduz que esse benefício é um “incentivo à criminalidade”, questiona que políticos e que governo é esse (SIC) e dá um link para o leitor conferir no site da Previdência Social. Como normalmente os leitores não conferem, acabam passando adiante a mensagem e junto com ela um atestado de ignorância. Se conferissem, veriam que não é nada disso que está posto no email.
     Sugiro que o meu leitor confira clicando aqui. Se, no entanto, não quiser, dou uma breve explicação.
     “O auxílio-reclusão é um benefício devido aos dependentes do segurado recolhido à prisão, durante o período em que estiver preso sob regime fechado ou semi-aberto. Não cabe concessão de auxílio-reclusão aos dependentes do segurado que estiver em livramento condicional ou cumprindo pena em regime aberto.
     Para a concessão do benefício, é necessário o cumprimento dos seguintes requisitos:

- o segurado que tiver sido preso não poderá estar recebendo salário da empresa na qual trabalhava, nem estar em gozo de auxílio-doença, aposentadoria ou abono de permanência em serviço;
- a reclusão deverá ter ocorrido no prazo de manutenção da qualidade de segurado;
- o último salário-de-contribuição do segurado (vigente na data do recolhimento à prisão ou na data do afastamento do trabalho ou cessação das contribuições), tomado em seu valor mensal, deverá ser igual ou inferior aos seguintes valores, independentemente da quantidade de contratos e de atividades exercidas, considerando-se o mês a que se refere: (segue-se uma tabela de valores, cujo mais recente é a partir de 15/7/2011 – R$ 862,60 – Portaria nº 407, de 14/07/2011.)” reclusão

     Enfim, só têm direito ao benefício quem for SEGURADO, ou seja, quem contribui mensalmente para a Previdência Social, o auxílio é limitado a quem ganha até R$ 862,60, e este valor é dividido entre todos os dependentes (no caso do exemplo do email, cada filho ganharia R$ 172,52).
    Você acha que aquele assaltante contumaz, que rouba carteiras, cordões de ouro, celulares, etc. contribui mensalmente com 20% do resultado do seu trabalho para o INSS (desde que seus assaltos rendam até R$ 862,60, é óbvio)? Por outro lado, os grandes traficantes, mesmo que contribuam mensalmente para a previdência, têm vencimentos superiores ao teto do auxílio-reclusão.
     De acordo com o site Observatório Social, esse benefício é do tempo dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, começou no dos marítimos (IAPM) e tinha também o dos bancários (IAPB). O benefício foi mantido na Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960, e está previsto no inciso IV do artigo 201 da Constituição Federal de 1988.
     O auxílio-reclusão é, portanto, muito anterior à chegada de Lula à presidência, como quis fazer crer o autor do email e seus encaminhadores.
     Percebe-se que o autor do email é um sujeito esquentadinho. Basta ver a quantidade de exclamações e maiúsculas no seu texto. Queira Deus que seu temperamento não faça com que — se ainda estiver vivo — um dia desentenda-se com o amante de sua esposa e desfira-lhe um tiro na cara. Se, no entanto, isso acontecer e for preso, seus dependentes receberão o auxílio-reclusão, desde que seus rendimentos mensais não sejam superiores a R$ 862,60.
     Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça indicam que a população carcerária brasileira é de quase 495 mil presos. O Boletim Estatístico da Previdência Social, por sua vez, diz que foram pagos 18.833 benefícios do tipo auxílio-reclusão em 2010. Isso quer dizer que 3,8% dos presos receberam o auxílio-reclusão no ano passado, com uma média de R$ 658,83 por mês para cada detento.
     A propósito: este benefício existe em países ditos “civilizados”, de “primeiro mundo” ou seja qual for o qualificativo que os detratores do Brasil preferirem usar para classificar outras nações.

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JUSTIÇA VOLANTE

     Esse email não é mal-intencionado, apenas denota que seus encaminhadores ouviram o galo cantar, mas não sabem onde (nem tentaram descobrir).

Esta é informação real, já conferi...
Olha a gente perdendo o Direito por não utilizar.
JUSTIÇA VOLANTE (VALE A PENA SABER E DIVULGAR).
O novo número da JUSTIÇA VOLANTE : é 0800 644 2020.

Sabe aqueles acidentes de trânsito chatos, discussões sobre de quem é a culpa, etc & etc..Há um serviço público chamado Justiça Volante. Se você se envolver em acidente de trânsito, ligue 0800-644-2020. São cinco viaturas equipadas com Juizado de Pequenas Causas, e, oficialmente, todo mundo sai de dentro da Van como se tivesse saído de um tribunal.
Parece que o serviço está prestes a acabar simplesmente porque ninguém liga. Ninguém conhece. Transmita para quem puder, e guarde o número em seu celular.

IMPORTANTE SABER E REPASSAR AO MÁXIMO.

Gostaria muito que esta informação chegasse ao máximo de pessoas que você conhece. Este é o tipo de informação que 'é direito do povo', mas que o povo não sabe! Fora que esse dinheiro com certeza deve ir para o bolso de alguém, se não for, deve ajudar de alguma forma negativamente para quem tem veículos furtados ou roubados!

     Esse texto não está cheio de pontos de exclamação e nem grita com muitas maiúsculas. Só que o autor/encaminhador mentiu ao dizer que conferiu a informação: isso nunca existiu no Rio Grande do Sul...
     A Justiça Volante foi criada no Espírito Santo, há 15 anos, como juizado especial, pelo magistrado Pedro Valls Feu Rosa e serviu de modelo para outros estados. Além de estar presente em municípios da Grande Vitória (ES), é encontrada em Aracaju (SE), Cuiabá (MT), João Pessoa (PB) e Distrito Federal.
     Confira clicando aqui.

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Na próxima postagem vou falar sobre sacrifício de animais. Clique e leia “Para evitar recidivas II”.

Para evitar recidivas II

(Continuação de “Para evitar recidivas I”)

SACRIFÍCIO DE ANIMAIS

     Em julho de 2004, o então governador do RS, Germano Rigotto, sancionou projeto de lei acrescentando parágrafo único a um dos artigos do Código Estadual de Proteção aos Animais, com a seguinte redação: “Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana”. A proposta de inclusão do parágrafo foi do então deputado Edson Portilho (PT).
     O Código Estadual de Proteção aos Animais foi instituído pela Lei nº 11.915, de maio de 2003.
     Na ocasião, foi geral a gritaria dos defensores dos animais. Saltaram abaixo-assinados de tudo quanto foi lado para tentar proibir a inclusão do parágrafo, sob a alegação que assim se estaria permitindo tortura e sacrifício de animais em rituais religiosos. Essas pessoas “politicamente corretas” acabaram fazendo juízes e desembargadores perderem seu tempo, mas não levaram e o texto da lei ficou como sancionado pelo governador.
     Pois bem, como nos exemplos anteriores (leia “Para evitar recidivas I”), gente que passa a vida ouvindo o galo cantar sem saber onde, resolveu “noticiar” o fato como se novo fosse. A “informação” passou dos emaisl ao facebook, com títulos do tipo “Aprovada Lei que permite TORTURA de animais”; “VAMOS COMPARTILHAR! NÃO DEIXE QUE UM ANIMAL COMO ESTE DESTRUA A PRÓPRIA RAÇA!”. Como alguns(as) “amigos(as)” meus publicaram em seus murais a “novidade”, fui atrás do divulgador. Descobri um cara que provocou nada mais nada menos do que 11.507 compartilhamentos, 11.704 comentários e 13.940 pessoas curtiram sua postagem. Se acrescentarmos aí os que compartilharam os compartilhamentos, a que número chegaremos?
     De acordo com o Art. 2º da Lei que instituiu o Código Estadual de Proteção aos Animais, é vedado:

I - ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência;
II - manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade;
III - obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força;
IV - não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo;
V - exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados por responsável legal;
VI - enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem;
VII - sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde - OMS -, nos programas de profilaxia da raiva.

Parágrafo único - Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. (Incluído pela Lei n° 12.131/04)

     Ocorre que na mesma ocasião em que o governador sancionou Lei 12.131, também assinou o Decreto nº 43.252, que em seu Art. 2º diz que “Para o exercício de cultos religiosos, cuja liturgia provém de religiões de matriz africana, somente poderão ser utilizados animais destinados à alimentação humana, sem utilização de recursos de crueldade para a sua morte.”
     Ora, por acaso os fiéis do candomblé e da umbanda transgridem alguma das alíneas do código? Se acharem que sim, sugiro aos fundamentalistas defensores que pesquisem sobre crueldade em aviários.
     Percebe-se, então, que desde maio de 2003 — ou seja, há oito anos — além de ofender por emails ou por redes sociais o ex-deputado Edson Portilho, alguns vêm exacerbando seu preconceito contra religiões de matriz africana, mais uma vez ouvindo o galo cantar sem saber onde.
     As pessoas têm medo do que não conhecem, e fantasiam demasiadamente sobre o desconhecido, passando tabus e preconceitos de geração em geração. Muitos associam as religiões de matriz africana ao mal. Imaginam que os animais são “cruelmente torturados” nos sacrifícios dos seus cultos, aos quais os ignorantes classificam como “bruxaria”. No candomblé e na umbanda o ritual é realizado por uma pessoa especializada no sacrifício, o Axogun, que tem tal função na hierarquia sacerdotal ou, na sua falta, o babalorixá. O Axogun NÃO PODE DEIXAR O ANIMAL SENTIR DOR OU SOFRER, porque a oferenda não seria aceita pelo Orixá. O objeto do sacrifício, que é sempre um animal, muda conforme o Orixá ao qual é oferecido; trata-se, conforme a terminologia tradicional, ora de um animal de duas patas, ora de um animal de quatro patas, galinha, pombo, bode, carneiro. Na realidade não se trata de um único sacrifício: sempre que se fizer um sacrifício a qualquer Orixá, deve ser antes feito um para Exu, o primeiro a ser servido.
     E, atenção: nenhuma parte do animal é jogada fora! O couro é usado para encourar os atabaques, o animal inteiro é limpo e cortado em partes, algumas partes são preparadas para os Orixás e o restante é destinado aos demais. Tudo é aproveitado: até a porção oferecida aos Orixás é posteriormente distribuída entre os filhos da casa como o inché do Orixá. É usada para confraternização: unem-se os filhos a comer com o pai ou mãe, havendo repartição do Axé gerado pelo Orixá.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Sacrif%C3%ADcio#Sacrif.C3.ADcio_no_Candombl.C3.A9)
     De acordo com o advogado Antonio Basílio Filho (Ogan Basílio de Xangô), vice-presidente do Superior Órgão de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo e diretor jurídico da União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil, em artigo publicado na Revista Orixás Candomblé e Umbanda, Ano II, Nº 6 (Editora Minuano), “o sacrifício dos animais é ritual de consagração, em que apenas o sangue é ofertado às entidades superiores, pois o produto final da carne dos animais abatidos é consumido pelos próprios autores da oferenda ou distribuído a entidades assistenciais e pessoas carentes, servindo a carne de alimento exatamente como a carne bovina, suína ou das aves abatidas em matadouros sem que, entretanto, aqui, na prática religiosa, esteja presente o componente econômico que está presente na atividade daqueles que fazem o abate visando, exclusivamente, o lucro advindo da exploração dos animais.”
(http://www.umbandaemfoco.com.br/modules.php?name=Conteudo&file=index&pa=showpage&pid=128)

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Se você quer saber o que é tortura e crueldade contra animais, clique aqui.

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     Espero, portanto, que pelo menos os leitores dessas duas últimas postagens nunca mais repassem emails falando mal do ex-deputado Edson Portilho (hoje em dia ele é vereador em Sapucaia do Sul) e sua emenda à lei que instituiu o Código Estadual de Proteção aos Animais, bem como parem de tratar o auxílio-reclusão como um ato absurdo do governo petista.
     Evitem recidivas!

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Clique e leia “Para evitar recidivas I

domingo, 25 de setembro de 2011

Jaguarão

     Estive em Jaguarão. Precisava repor o estoque de vinho, Amarula, Carolina Herrera e Hugo Boss. Escolhi a hora errada: o dólar subia feito louco. Azar. Se continuar alto quando vier a fatura do cartão de crédito, posso dizer que valeu pelo passeio e pela companhia de Clara, minha mulher, excelente companheira em todos os sentidos, inclusive de viagem.

Jaguarao      Vamos nos situar: Jaguarão fica no extremo sul do Rio Grande do Sul e faz fronteira com a cidade de Rio Branco, no Uruguai. A divisão entre os dois países é determinada pelo rio Jaguarão, cujo curso tem 270 quilômetros. A travessia para o lado uruguaio e vice-versa é feita pela Ponte Internacional Barão de Mauá, que tem uma extensão de 870 metros e sobre a qual há departamentos da Aduana uruguaia e da Receita Federal brasileira.

      Foi o Barão do Rio Branco que emprestou seu nome à cidade do lado uruguaio, pertencente ao Departamento de Cerro Largo, onde, em uma só rua, estão localizadas várias lojas do sistema free shop. Cada brasileiro pode comprar até um limite de 300 dólares americanos. As mercadorias são de primeira qualidade e os preços, livres da pesada carga tributária brasileira, são bem menores dos que os praticados aqui.
     Das cidades de fronteira com a característica de ser zona de free shops, Jaguarão é a mais próxima de Porto Alegre: 383 km. Aceguá — que divide com cidade do mesmo nome no Uruguai — fica a 428 km; Santana do Livramento — que faz fronteira com Rivera — fica a 489 km; e Chuí — que faz divisa com Chuy —, a 517 km. Em termos de área e população, Jaguarão perde pra Livramento. Santana do Livramento é maior e mais populosa: 6.950 km² e 83 mil habitantes. Jaguarão tem 2.054 Km² e cerca de 28 mil habitantes. Aceguá (1.549 km²) é maior do que Chuí (203 km²), mas tem população menor: quatro mil contra cinco mil habitantes.
     De acordo com dados da Biblioteca do IBGE, o nome Jaguarão é uma corruptela de Jaguanharo (tupi): cão bravo ou onça feroz; ou, segundo Alfredo de Carvalho, aumentativo português de jaguar.
     Em 1777, com o Tratado de Santo Ildefonso, a área do atual município de Jaguarão ficava em terras espanholas. As origens da cidade remontam a 1802 num acampamento militar fundado às margens do Rio Jaguarão pelo tenente-coronel Manuel Marques de Sousa (como, aliás, começaram vários municípios do Rio Grande do Sul).
     Deve seu primitivo nome, Guarda da Lagoa e do Cerrito, a um posto fortificado dos espanhois, situado a seis quilômetros da atual cidade de Jaguarão. Ali, em 1801, devido a questões militares entre Portugal e Espanha, estabeleceram-se as forças do Coronel Marques de Sousa. Ajustada a paz em virtude de armistício, a coluna Marques de Sousa retirou-se, ficando apenas uma pequena guarda de 200 homens, sob o comando do tenente-coronel Jerônimo Xavier de Azambuja. Em janeiro de 1812 foi criado o distrito com a denominação Divino Espírito Santo do Cerrito. Ainda com esse nome foi elevado à categoria de vila, em julho de 1832. Finalmente, tornou-se cidade com a denominação de Jaguarão, em novembro de 1855.
     Jaguarão tomou parte destacada em diversos acontecimentos militares de nossa história, entre os quais a Revolução Farroupilha, em 1835, e a Invasão Uruguaia de 27 de janeiro de 1865, quando 1.500 caudilhos “blancos” invadiram e saquearam a cidade, chefiados por Basílio Munhoz.
     As estradas de Porto Alegre até lá são razoáveis. Trafega-se pela BR 290 e BR 116. Nos pouco mais de 380 quilômetros, em quatro horas e meia de viagem passa-se por seis praças de pedágio na ida (R$ 36,90) e cinco na volta (R$ 29,40), totalizando R$ 66,30. Um pouco antes de entrar na cidade de Jaguarão fomos parados pelo exército, numa barreira da operação Ágata II, que visa fiscalizar o comércio ilegal de armas, explosivos, drogas, agrotóxicos, produtos eletrônicos e o escambau. Só olharam nossos documentos e o documento do carro. E se o porta-malas estivesse cheio de alguma dessas coisas?
     Jaguarão parece ainda viver sua história. Existem mais de 800 prédios catalogados na Prefeitura Municipal por suas fachadas, que conservam vários estilos arquitetônicos. A cidade é conhecida pelas portas desses prédios dos séculos XIX e XX, muitos deles ainda servindo como residência. Dentre elas, destaca-se a do senhor Jean Macksoud, que possui a porta considerada a mais bonita do Estado. Quem quiser se aprofundar no estudo da arquitetura de Jaguarão, sugiro a leitura de Ecletismo Arquitetônico em Jaguarão: um estudo, dissertação de mestrado de Lidiane Corrêa Ensslin apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da UFRGS.

     Quem vai a Jaguarão para fazer compras nos free shops de Rio Branco encontra pelo menos 15 opções de hospedagem. Destacam-se nesse setor o Hotel Sinuelo, com 45 apartamentos, e o Crigial Hotel. Ambos são próximos à Ponte Barão de Mauá. Há também cerca de 15 restaurantes à disposição dos turistas para almoço, com destaque para o Red’s Restaurante, com seu buffet a quilo e grelhados. À noite, as opções se resumem a umas duas ou três pizzarias, destacando-se a Pizza Mia. Mas a point mesmo é a Panificadora PaneMio, um lugarzinho bem agradável, que serve lanches deliciosos. Como tudo tem pelo menos um problema, a PaneMio não deixa por menos: além de ser um local com poucas mesas, o lanche, seja qual for — uma torrada, um cheese, um bauru —, demora no mínimo meia hora pra ficar pronto. É uma pena...
     Feitas as compras, retornamos. Dessa vez o exército nos deixou passar na barreira. E se o porta-malas estivesse cheio de contrabando ou descaminho?

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Ademã, que eu vou em frente!

     Acordei domingo, 4 de setembro, com um ano a mais, completado às três da madrugada, hora em que surgi há 62 anos. Ao olhar no espelho, não notei no meu rosto diferenças de um passado recente. Nem sei quando minhas pálpebras começaram a debruçar-se sobre os olhos; quando algumas rugas começaram a emoldurá-los e outras, verticais, instalaram-se acima do nariz, entre as sobrancelhas que, por sinal, quase desapareceram; quando o bigode chinês acentuou-se e as bochechas derreteram sobre o pescoço; quando e por que comecei usar o cabelo cortado rente à cabeça; e quando a barba embranqueceu. Àquela hora da manhã, a cara no espelho me parecia a mesma de sempre.
     Fiquei um tempinho me encarando, tentando descobrir há quanto tempo minha cara foi diferente daquela. Segui mecanicamente os passos cotidianos: lavei as mãos, pois acabara de desaguar as cervejas da noite anterior, passei uma água no rosto, escovei os dentes, apaguei a luz e fui preparar o café. Fiquei o tempo todo buscando uma imagem no passado, quando ainda não tinha, por exemplo, os vincos da testa. Pra isso, tinha que pensar em fatos. Lembrei, então de uma data em 1996, quando voltei a tocar numa banda de rock. Putz! Só pegando uma foto. Não me lembro como eu era...
     Foi o que fiz. Peguei algumas fotos de outubro de 96, do show de reestreia de uma banda em que havia tocado na década de 60. Não estava muito diferente. A barba do mesmo tamanho, só que preta; os cabelos, já curtos, mas com um pouco mais de quantidade e também mais pretos. As fotos são muito pequenas. Não deu pra perceber se já existiam rugas.
     Teria que voltar mais no tempo, procurar outra referência. Se um pulo de 15 anos pra trás não mostrou muita diferença, quem sabe saltar o dobro disso? Fui até 1980 e 1979, anos em que nasceram meus filhos. Ah! Agora se percebe diferença! Aquele da foto não é o mesmo que se olhava no espelho há poucos minutos. Cabelos mais compridos, barba bem aparada e escura, pele lisa, sem vincos.
     Mas ainda não estava contente e queria saber quando os cabelos mudaram radicalmente. Fui avançando ano por ano naqueles velhos álbuns de fotos: 81, 82, 83, 84, 85, 86... Oba! Achei! De repente, não mais que de repente, em 1986, aqueles cabelos que subiam nas orelhas deixaram-nas descobertas! Eles estavam, então, espetados pra cima, cheios de gel. Lembrei-me da época e da ocasião que me fez cortá-los. Abrira um salão maneiro perto da minha casa, no Bom Fim, que várias celebridades provincianas andavam frequentando. Levei lá minha filha, então com sete anos, e meu filho, com seis, pra cortar os cabelos. Aceitei a sugestão do estilista, que cortou o longo cabelo loiro da minha filha como os de um punk (corte de cabelo que muitos jogadores de futebol usam hoje, ao qual chamam de moicano). Da nuca saía um belo rabo até a metade das costas. Com o meu filho ele fez parecido, mas não tão radical, mesmo porque ele nem tinha cabelos compridos.
     Dias depois também fui lá cortar os cabelos e saí de lá com um jeitão de yuppie. Para os que talvez não saibam, um parênteses: segundo o Wikipédia, yuppie é uma derivação da sigla “YUP”, expressão inglesa que significa Young Urban Professional (Jovem Profissional Urbano). É usado para referir-se a jovens profissionais entre os 20 e os 40 anos de idade, geralmente de situação financeira intermediária entre a classe média e a classe alta, que, em geral, seguem as últimas tendências da moda. O termo yuppie descreve um conjunto de atributos e traços de comportamento que se constituíram num estereótipo comum nos EUA, Inglaterra e outros países do ocidente.

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     Puxa, me dei conta de que faz um quarto de século que meu corte de cabelo sofreu a tal mudança radical! Voltei a me olhar no espelho e fiquei a imaginar como estarão eles daqui a outros 25 anos. Sim, pois não pretendo me entregar e espero ter quase tanto futuro quanto já tenho de passado.

     Por falar em futuro, como dizia Ibrahim Sued*: “Ademã, que eu vou em frente!”

 

sábado, 30 de julho de 2011

2097: do meu bisneto pro meu trineto

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     Desculpe estar escrevendo, meu filho, mas é que a máquina holográfica estragou e não tive tempo de encomendar outra. Para de ler agora e usa o leitor de texto. É até melhor, pois assim me ouves sem deixar tuas tarefas. Pra que irias querer olhar pra essa minha velha cara e esse meu corpinho com mais de meio século?
     Tua mãe, tua irmã e eu ansiamos tua volta. Estamos loucos que termine logo esse longo estágio prático. Tanto tempo longe da família só pra trabalhar noutro planeta! Até parece coisa do tempo do teu avô. Não sei se já te contei, mas, no tempo dele, quem se formava em Direito não poderia exercer a profissão se não fizesse uma prova para habilitar-se perante o conselho profissional (chamava-se Ordem dos Advogados). Acontece que a prova era tão difícil que só passavam cerca de cinco ou seis por cento dos candidatos. E olha que eram uns 120 mil que faziam a prova cada vez, no país todo! Isso, no entanto, é coisa do passado.
     Sei que és bem informado aí em cima (ou embaixo, não sei, é questão de ponto de vista), com notícias diárias e quentinhas da Terra. Não te informam, contudo, sobre as coisas da nossa família. A primeira ruim: teu tio foi multado de novo por estar fumando na rua. Deves saber que, se for pego mais uma vez, perde o plano de saúde por um ano e, depois, tem que fazer todos aqueles exames chatos de novo pra voltar a ter assistência. Não sei até quando vão continuar com esse expediente. Já não bastava terem fechado todas as fábricas de cigarro e proibido a importação de tabaco da África? Depois que descobriram a cura e criaram a vacina contra o câncer poderiam deixar as pessoas voltarem a fumar livremente. Claro, desde que respeitassem lugares fechados, prédios, etc. como sempre foi. Mas na rua? Se um sujeito com mais de 60 como teu tio, que não tomou a vacina, ficar com câncer, grande merda, o tratamento de cura nem é tão dispendioso para o plano de saúde. Em todo caso, o velho rebelde vai ter que ficar ligado e fumar aqueles cigarros fedidos que ele mesmo fabrica só dentro da própria casa. Ainda bem que ele ganha bem, porque a multa é bem alta.
     Enquanto isso, a farmácia daqui da rua está com um movimento fantástico: a última safra de cannabis foi bárbara, o produto é de alta qualidade e o preço baixou. Eu e tua mãe temos fumado uns três por dia. Aliás, eu estava com teu tio quando ele foi pego fumando na rua. Ele ainda disfarçou, jogou o cigarro longe e pegou meu baseado. Mas não adiantou. O mata-rato dele fede muito e o fiscal sentiu o cheiro nele.
     No último fim de semana estive no litoral. O mar ainda não invadiu nossa casa, mas falta pouco. Fui lá pra retirar as últimas tralhas. O chato é que não dá pra chegar perto com o veículo. Tem muita areia úmida e pode-se perder a impulsão e atolar. Dá pena de ver aqueles prédios enormes e luxuosos, onde antes era a beira da praia, transformados em esqueletos. O pessoal dos pavimentos inferiores perdeu tudo. Os dos mais altos não conseguem chegar pra retirar suas coisas. Dizem que ladrões deram um jeito de chegar neles e levaram tudo o que tinha valor.
     Em compensação, na região da fronteira, lá pros lados de Bagé, o deserto tá cada vez mais avançado. Acho que de onde estás deves ter uma visão boa dessa catástrofe.
     O tempo continua quente. Finalzinho de julho e Porto Alegre registra uma média diária de 28 graus. Quando eu era bem pequeno, ainda peguei resquícios de inverno. Me lembro que nessa época tinha dias que fazia 16 ou 17 graus. Outro dia, mexendo numas caixas guardadas na garagem, achei umas fotografias do meu avô. Ele devia ter a tua idade e estava encasacado, com gorro e luvas de lã, na neve, num lugar chamado Bariloche, na Argentina. Lembro também que ele sempre dizia que queria morar no Nordeste, porque não aguentava mais o inverno gaúcho.
     Além da máquina holográfica, outra coisa que estragou aqui em casa foi o sistema de reposição de mantimentos. Cada vez que se dava baixa de alguma coisa — azeite, manteiga, vinho, etc. —, em seguida chegavam duas unidades do mesmo produto, com uma diferença de uns cinco minutos entre a entrega de um fornecedor e de outro. Não sei de onde o computador tirou o segundo fornecedor. Até explicar que não era cavalo, já tinha comido um balde de milho. Finalmente, a administração mandou aqui um técnico do setor de reposição que deu um jeito. Eu atribuo esses problemas a uma interferência cada vez maior das explosões solares nos equipamentos eletrônicos. Enfim...
     Meu filho, vou ter que parar agora porque tá na hora de levar tua avó ao médico. Todos os dias ela pergunta quando vais voltar desse planetinha fajuto, que é como ela chama a estação. A cabeça dela tá meio atrapalhada, mas o corpinho, apesar dos 86 anos, tá em dia. E não desiste de procurar outro marido.
     Muitos beijos e abraços de nós todos. Aguardamos notícias. Tchau!

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Concerto do amor

(Sugiro a leitura desse texto com a audição de “Concerto de Aranjuez – segundo movimento”, do compositor e pianista espanhol Joaquín Rodrigo, Marquês dos Jardins de Aranjuez, (22 de novembro 1901 – 6 de julho 1999). Apesar de ser cego desde jovem, ele atingiu grande sucesso e é considerado um dos compositores que mais popularizaram a guitarra na música clássica do século XX. Seu Concerto de Aranjuez é um dos pontos altos da música espanhola.
A melodia ficou popularmente conhecida a partir de 1967, quando o cantor francês Richard Anthony gravou a música chamada “Aranjuez Mon Amour”, com letra de Guy Bontempelli.
O tecladista e baixista do Led Zeppelin, John Paul Jones, usou parte do Concerto de Aranjuez durante uma improvisação da música “No Quarter”, na turnê de1977 da banda.
Som na caixa, olhar no monitor e pensamento no texto.)

 

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     Era uma nota musical que vivia saltando pelas linhas dos pentagramas vazios a procura de uma música, Poderia ser qualquer nota com qualquer valor: dó, sol, mi, fá, fusa, colcheia, semicolcheia, breve, semibreve... Queria soar por qualquer instrumento em qual tipo de música e ritmo que fosse. Poderia ser um metal vibrante, um violino romântico um cravo bem temperado ou um tímpano furioso. Queria ser marcha, valsa, opus, concerto ou sinfonia. Tocaria em adaggio, fortíssimo ou allegro ma non troppo.
     De outras vezes já havia sido tocada. Fez parte de algumas músicas populares e de uma sinfonia inacabada, cujas pautas caíram no chão e ela soltou-se do pentagrama. Passou a vagar pelos enormes salões de concerto a olhar os mudos instrumentos. Por vezes escondia-se nas partituras dos maestros e dormia ao pé das páginas. Olhava as pautas completas, aquelas notas ordenadas — soldados em fila — formando aquela linguagem musical. Passeava pelos acidentes empurrando sustenidos, tropeçando em bemóis, dobrando compassos até atirar-se em qualquer linha. Pensava: agora vou ser tocada. Triste ilusão. O maestro sacudia a batuta e dava início ao concerto. Ia tudo dando certo: os violinos gritavam fino e os cellos respondiam-lhes baixo. Os fagotes, oboés, pistons e clarinetes puxavam o choro dos trombones. Os tambores ralhavam grosseiramente. E ela ali, muda e estática, a espera da ordem do maestro. Chegava a sua vez, mas tudo desabava. Desafinava, e os instrumentos começavam a brigar. O maestro, furioso, pegava uma borracha e corrigia a pauta. Lá ia ela rolando com sua solidão.
    E a vida continuava a mesma. Um passeio entre instrumentos, um sonho irrealizável e mil sons na cabeça. Não se sentia mais uma nota musical. Era um pequeno desenho preto que rolava em sons confusos. Quando uma orquestra afinava os instrumentos ela corria de um lado a outro, perdida.
     Um dia parou sobre uma estante. Procurava um canto pra dormir e encontrou uma partitura. Surpresa total: era uma sinfonia por completar. Vibrou, pulou, voltou ao princípio e começou a solfejar. Foi aprendendo aos poucos a melodia. Inchou de alegria e tornou-se uma nota breve. Um dó maior. Espremeu-se entre as fusas o virou sol sustenido. Olhou para o compasso e resolveu ser semicolcheia, um lá menor. Bemol. Podia ser o que quisesse. O grande compositor aprovaria sua colocação. Pulou na partitura e soltou-se entre as linhas. Dormiu feliz esperando o grande dia do concerto.
     A batuta bateu três vezes e soou um imponente acorde. Os sons cresceram numa melodia incrível, forte. Metais, couros o cordas discursavam, conversavam, sussurravam. Desenrolou-se uma melodia. histórica.
     Chegou sua vez e ela entrou no compasso. Um tom infinito elevou-a muitas oitavas acima. Allegro, adagio, fortissimo, alta, baixa... Passeou pela escala e esta até hoje sendo o meio, a parte mais inspirada de uma sinfonia eterna. Agora faz parte do concerto do amor.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Fragmentos aleatórios de um diário

Um dia

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     Acordei na madrugada sentindo o coração apertado, o corpo cansado, a respiração curta, ofegante, suspiros constantes, cabeça pesada. Mirei os números verdes do relógio digital. A princípio estavam desfocados. Me concentrei e ficaram nítidos: 02:36. Virei para o outro lado. Sentia no intestino a revolta pelas misturas de doces e salgados do dia anterior. Revirei para o lado de antes. Com os olhos abertos, fiquei a calcular de quanto em quanto tempo piscava a luz verde do Identificador de Chamadas que acusa ligações não atendidas. Segui os rastros das luzes do roteador para ver até onde iluminavam. A luz mais forte, no entanto, era a da régua de tomadas que fica abaixo da mesa. Dei-me conta da quantidade de pequenas lâmpadas que ficam acordadas 24 horas por dia, mas que só as percebo à noite, quando perco o sono.
     A contagem das piscadas do Identificador de Chamadas, o rastro das luzes nervosas do roteador, a constante luz vermelha da régua de tomadas e os números luminosos do relógio digital eram, na verdade, uma tentativa de acariciar o sono, que não chegava perto e era incerto; eram uma distração, um subterfúgio para eu não pensar em algo que me incomodava.
     Levantei depois de muito virar e revirar, de cansar de admirar luzinhas. Na cozinha, tomei remédios pra acalmar o intestino revoltado e dolorido. Talvez fosse isso o que não me deixava dormir.
     Voltei para a cama esperando os remédios fazerem efeito. Foi quase imediato. Mesmo assim, ainda não encontrava o sono. Não era essa indisposição que não me deixava dormir... Num instante, contudo, descobri que eram os ratos barulhentos que habitavam meu sótão que me mantinham insone. Me falavam de como minha vida mudou nos últimos tempos; de como, surpreendentemente, interrompeu-se uma inércia vivencial e sobrevieram suaves solavancos sensoriais. Passei a amar como jamais esperava que acontecesse ou que acontecesse novamente. Sei lá, as pessoas passam, os fatos ficam distantes, as sensações são esquecidas. A idade é outra...
     Abri os olhos e mirei os números verdes do relógio digital. A princípio estavam desfocados. Me concentrei e ficaram nítidos: 05:32. Virei para o outro lado até ser acordado pelo despertador nervoso. Acho que, de raiva, derrubei-o no chão.
     Desde aquele primeiro momento da noite anterior, e até agora, meu coração está apertado, o corpo cansado, a respiração curta, ofegante, suspiros constantes, cabeça pesada. Seria resultado de uma noite mal dormida?

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Outro dia

A vida só pode ser entendida olhando-se para trás. Mas só pode ser vivida olhando-se para frente1.

     A primeira frase da epígrafe dominou minha manhã. Olhei para minhas relações passadas lembrando o que as fez acabar. Algumas, quem sabe, foram apenas entendimento, combinação de feronômios, mas foram relações.
     Persegui a primeira guria por quem me apaixonei até conquistá-la e torná-la minha namorada. Eu tinha uns 16 ou 17 anos. Isso faz mais de 40 anos. O que poderia eu saber da vida? Namorei-a até achar que me apaixonara por outra, mais interessante, mais bonita... Mas fora um acidente de percurso. Voltei à anterior e com ela fiquei até ser trocado pelo Rio de Janeiro. Lembro de ter sofrido muito, das cartas apaixonadas que trocávamos, das respostas dela que foram rareando até cessarem. Aí, contudo, achei que tinha me apaixonado novamente por outra. Minha vida mudou. Tornei-me sério e compenetrado e curti longos períodos de meditação solitária em meu quarto. Fui ao Rio de Janeiro pra me certificar de que estava no caminho certo. Descobri que sim e me senti vingado.
fragmentos-2      Casei. Logo depois descobri que havia entrado numa fria. Uma viagem levou meu amor embora. Por um mês fiquei sozinho da noite para o dia, remoendo aquele abandono. Na volta, não adiantou a tentativa de descobrir se havia amor naquela relação e ela terminou.
     O cadáver do amor ainda nem estava frio e renasceu avassaladoramente, também da noite para o dia, dentro de um bar. Outra vez achava que estava no caminho certo e resolvi “casar” novamente. Ainda fiz duas experiências antes disso e tive certeza de que a mulher que eu queria era esta mesmo. Depois de nove anos de certeza, no entanto, balancei e me apaixonei por uma colega de trabalho. O casamento não acabou. Acho que quem acabou foi o amor. E por quê? Talvez desgaste; talvez cansaço.
     Esta nova paixão, contudo, acabou, não por falta de dedicação e promessas, mas sim por falta de coragem de continuar, de seguir as perspectivas e expectativas. Pelo menos aprendo que onde se ganha o pão não se come a carne.
     Por um bom tempo fiquei inconformado comigo mesmo e, de repente, percebi que não amava ninguém. Criei um escudo, uma proteção em volta do meu coração, não permitindo que alguém entrasse nele ou que dele eu saísse. Uma mulher aqui, outra ali, relações que, mesmo duradouras, para mim não passavam de aventuras carnais, sem romance.
     Enfim volto a me encontrar com o amor e, agora, devo pensar na segunda frase da epígrafe, com esperança de não precisar mais pensar na primeira. Não quero que o amor que sinto seja um dia entendido como passado. Quero vivê-lo intensamente como agora, até o fim da vida, não da relação.

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1 S. Kierkegaard, filósofo dinamarquês - 1813-1855

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Jogos de bola

     Nasci há muito tempo, numa casa que ficava em frente a uma pracinha que marcava a confluência de duas ruas. A pracinha, que já estava lá bem antes de eu nascer, era um triângulo isósceles de areia cercado por um meio-fio de paralelepípedos com dois lados medindo cerca de 10 metros e o menor, uns cinco metros. Lembrei-me da pracinha porque nela faziam-se grandes fogueiras na véspera de São João, em 23 de junho de todos os anos.
     Naquele espaço se jogava de tudo: bola de gude, taco, cela, vôlei e, principalmente, futebol. Diariamente, a partir das três da tarde, com os temas de casa feitos, a turma se envolvia com alguma espécie de bola, já que pra tudo que era praticado ali se precisava de pelo menos uma.
     Para jogar futebol faziam-se times de três, quatro, no máximo cinco pra cada lado, com um no gol e o resto na linha. Os dois considerados os melhores jogadores escolhiam no par ou ímpar os integrantes de seus times. Os jogos iam até 10 gols, com virada em cinco. Como se jogava em um triângulo, quem atacava no campo maior tinha mais chances de trabalhar a jogada e fazer gol. Em compensação, quem atacava para a ponta mandava a bola em gol desde que chutasse pra frente. No segundo tempo, porém, tudo se invertia.
     Havia pelo menos três faixas etárias de moleques naquela zona. Nos fins de semana, especialmente nas tardes de sábado, a pracinha era ocupada pelos mais velhos. Volta e meia acontecia algum torneio contra uma gurizada das ruas próximas. Invariavelmente dava briga.

Pracinha na década de 60

Foto na pracinha do início da década de 60 (sou o 2º em pé, da esquerda para a direita)

     Quando a bola ia pro meio da rua e estivesse passando algum carro, todos paravam. Era como o fair-play praticado nos esportes de hoje. Às vezes algum chute mais forte disparado para o lado — certamente por algum zagueiro desesperado — ia parar num dos vidros de uma janela da minha casa. Ficando comprovado que havia sido durante uma “séria” partida de futebol, tudo bem, era considerado acidente de trabalho; se, no entanto, o chute tivesse sido dado ao léu, o pai do “vândalo” tinha que pagar o vidro.
     Quanto a mim, era um jogador médio de bolinha de gude. Em algumas modalidades de jogos que envolviam bolinhas de vidro eu me saía bem; na mais comum, aquela em que se desenha uma circunferência no chão e se disputa as bolinhas que estão dentro, não era dos melhores. Pra não ficar logo com o saquinho vazio, procurava jogar só “às brincas”. Às vezes, no meio de um desses jogos, passava um guri mais velho, mais forte e mau caráter e recolhia as bolinhas com a maior cara de pau, dizendo simplesmente: “— Fiscal de bolinhas!”. Botava-as no bolso e nos deixava com cara de choro.
     Alguns dos guris maiores chamavam de “beti” o jogo de taco. Fui pesquisar e descobri que o jogo pode ter-se originado do cricket e que o nome bets (e não beti) seria uma homenagem à rainha Elizabeth I. Pois bem, bets ou taco, nesse eu era bom. Conta uma lenda daquela época que certa vez, durante um jogo de taco, a bola foi picando na direção do Betão, o mais forte dos guris maiores, que descia a rua com um guarda-chuva na mão. Ao ver a bola picando, apesar de não estar jogando, não teve dúvidas, meteu-lhe uma tacada com o cabo do guarda-chuva, mandando-a até os trilhos dos bondes, que ficavam a uns 150 metros rua abaixo.
     Depois da minha adolescência, nunca mais vi jogarem cela, nem os sucessores da minha turma da pracinha. O jogo de cela consistia em fazer no chão um buraco para cada participante: se fossem cinco jogadores, cinco buracos seriam feitos, um após o outro, em linha reta. A ordem dos buracos era sorteada. Uma bola de tênis era largada em direção aos buracos. O jogador do buraco em que ela parasse deveria pegá-la e atirá-la em direção a algum dos oponentes. Se acertasse, a vítima continuaria a perseguição aos outros; se errasse, ganhava um “filho”, representado por um pauzinho de fósforo colocado no buraco correspondente. E assim por diante, até um dos participantes acumular três filhos. Este, então, deveria ir para a cela, que era um muro de uma casa qualquer em frente à pracinha. Tinha que ficar encostado no muro, de costas para a rua, com a cabeça abaixada em direção ao peito e os braços para trás e por sobre ela, protegendo-a. Os demais jogadores davam cinco boladas cada um nas costas do perdedor. Não raro o perdedor saía chorando e com marcas redondas e vermelhas nas costas. Joguinho inocente, né?
     Vôlei era raro acontecer por causa da dificuldade em se afixar a rede. Quando tinha, nem me arriscava a jogar. Em futebol eu era péssimo. Com perdão pela incorreção: muito péssimo! Na hora do par ou ímpar eu era sempre o último a ser escolhido, o que sobrava. Se o número de participantes era ímpar, pra contrabalançar me botavam no time mais fraco. E, mesmo assim, no gol. Claro, eu tinha chance de jogar na linha, como todo mundo. A cada gol sofrido havia rodízio: o goleiro ia pra linha e um da linha ia pro gol. Quando estava na linha, entretanto, pouco tocava na bola, pois não a passavam pra mim. Eu me contentava em correr atrás do bolo de guris que corria atrás da bola. Desconfio que fui eu que inventei o chute de três dedos, a famosa “trivela”. Quando ocasionalmente a bola sobrava pra mim eu a chutava com toda força tentando acertar o gol, mas ela ia pra lateral direita. E eu fazia isso olhando pra esquerda... Desastre total.
     Quando tinha 16 anos, desisti pra sempre do futebol que nunca me quis. Montei uma banda em que eu era o baterista (leia: The Old Stones). Ensaiava na garagem da minha casa, nos sábados à tarde, quando o resto da turma corria atrás da bola, na pracinha em frente.
     A pracinha continua lá e ganhou um nome: Praça Monsenhor André Mascarello, que foi o pároco do bairro durante toda minha infância, adolescência e parte da vida adulta. Hoje, está melhorada, bem cuidada e tem até grama. De vez em quando, filhos e netos de remanescentes da minha época se reúnem e jogam futebol nela. Confira nas fotos de Isa Kolbetz, de uma geração posterior a minha, cujos pais ainda moram naquela rua.

Praça Monsenhor André Mascarello

A pracinha hoje, quase no mesmo ângulo da foto antiga

Foto de Isa Kolbetz
De cima pra baixo

Foto de Isa Kolbetz
De baixo pra cima

Foto de Isa Kolbetz
Minha ex-casa ao fundo

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Por uma vida melhor

     Por uma vida melhor é o título do livro que integra a coleção Viver, Aprender, destinada aos alunos do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), distribuído pelo MEC a 485 mil alunos de 4,2 mil escolas, através do Programa Nacional do Livro Didático.
     Essa obra tem dado o que falar com a polêmica levantada pela imprensa escrita, falada, televisionada e “blogueada”. Cronistas, articulistas e editorialistas — muitos dos quais, tenho certeza, nem leram o livro didático —, todos fantasiados de donos da verdade e da língua portuguesa, insurgiram-se contra a obra porque, segundo eles, admite erros de português, coisa que acham que não cometem e não aceitam que se cometa. Alguns dizem que o livro ensina a falar errado; outros falam como se fosse para crianças (desconhecem, inclusive, que se destina ao EJA). Um grande jornal do Rio de Janeiro disse, em seu editorial, que Este atentado à educação pública brasileira, considerada por unanimidade o maior empecilho a que o país atinja um estágio superior de desenvolvimento e se mantenha nele, se assenta numa visão ideológica da sociedade alimentada pela ‘mitologia do excluído’, ligada à ‘síndrome da tutela estatal’. Qual unanimidade, caras pálidas? Aquela burra, do Nelson Rodrigues? Eu fora! Neste caso, já não é mais unanimidade.
     O primeiro capítulo do livro em questão, “Escrever é diferente de falar”, procura explicar aos alunos jovens e adultos (aqueles que não completaram os anos da educação básica em idade apropriada) que não há um só jeito de escrever e de falar, e que a língua portuguesa apresenta muitas variantes. Diz que uma delas é de origem social: “As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio — vale lembrar que a língua é um instrumento de poder —, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular”.
     Numa das seções desse capítulo, os autores explicam o funcionamento da concordância entre as palavras:

A concordância entre as palavras é uma importante característica da linguagem escrita e oral. Ela é um dos princípios que ajudam na elaboração de orações com significado, porque mostra a relação existente entre as palavras.

Verifique como isso funciona:

Alguns insetos provocam doenças, às vezes, fatais à população ribeirinha.

insetos (masculino, plural) ◄ alguns (masculino, plural)
doenças (feminino, plural) ◄ fatais (feminino, plural)
população (feminino, singular) ◄ ribeirinha (feminino, singular)

As palavras centrais (insetos, doenças, população) são acompanhadas por outras que esclarecem algo sobre elas. As palavras acompanhantes são escritas no mesmo gênero (masculino/feminino) e no mesmo número (singular/plural) que as palavras centrais.

Essa relação ocorre na norma culta. Muitas vezes, na norma popular, a concordância acontece de maneira diferente.

     Nesse sentido, seu conteúdo traz por escrito alguns exemplos de “falas” de pessoas de classes menos favorecidas, que tiveram pouco ou nenhum contato com a chamada norma culta da língua portuguesa. Entre outras, usam essas três frases para explicar as variedades: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”; “Nós pega o peixe”; e “Os menino pega o peixe”. O que os cronistas e articulistas fizeram foi pinçar essas frases de seu contexto original e manipulá-las, como, aliás, soem fazer com tudo. Foi o que bastou para que a obra fosse considerada assustadora, absurda e outros adjetivos menos elogiosos. Nenhum deles, no entanto, falou sobre o contexto em que as frases foram apresentadas. Veja isso:

Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado

Você acha que o autor dessa frase se refere a um livro ou a mais de um livro? Vejamos:

O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Reescrevendo a frase no padrão da norma culta, teremos:

Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados.

Você pode estar se perguntando: “Mas eu posso falar ‘os livro?’.”

Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.

Os autores também explicam que na variedade popular é comum a concordância funcionar de outra forma.

Nós pega o peixe.

nós = 1ª pessoa, plural
pega = 3ª pessoa, singular

Os menino pega o peixe.

menino = 3ª pessoa, ideia de plural (por causa do “os”)
pega = 3ª pessoa, singular

Nos dois exemplos, apesar de o verbo estar no singular, quem ouve a frase sabe que há mais de uma pessoa envolvida na ação de pegar o peixe. Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala.

     O capítulo todo tem 17 páginas. O texto que está recuado acima não chega a duas páginas e é o que está provocando toda essa celeuma. Na introdução do capítulo, os autores salientam que a língua é um instrumento de poder. A polêmica está provando isso. Os exemplos usados nada mais são do que a fala da gente simples, que jamais terá o “poder” de um cronista ou articulista da nossa imprensa ou de um especialista em gramática (leia-se norma culta) de nossas universidades.
     Se o tema lhe interessar, não deixe de ler o capítulo todo em um desses links:
http://www.advivo.com.br/sites/default/files/documentos/v6cap1.pdf

http://zerohora.clicrbs.com.br/pdf/11055740.pdf

.:: o ::.

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     Coloquei no Google o título do livro, Por uma vida melhor, acompanhado das palavras-chave livro e EJA. O buscador retornou 643 mil resultados. Escolhi aleatoriamente uma dessas entradas. Era a notícia de que a Associação Brasileira de Letras criticara o livro e havia inúmeros comentários de leitores. A grande maioria dando força para o texto. Selecionei alguns dos poucos que faziam o contrário, ou seja, criticavam o texto e davam força para o livro. Eis um deles:

Vergonhosa mesmo é a reação da mídia até o momento. Totalmente desinformados. Todos defendem a Gramática tradicional em detrimento da ciência que se chama Linguística. Assim como a Física Quântica e a da Relatividade, as duas não se “bicam” mesmo. Todos devem estudar um pouco mais e saber que nada há de errado no conteúdo do livro da escritora Heloísa Ramos, que o MEC, acertadamente, defende. Basta consultar Marcos Bagno, Sírio Possenti, este, um dos principais membros da Academia Brasileira de Letras, dentre outros.
É uma pena que estas pessoas achem que o idioma é estático e nunca muda. Há vida nas línguas de qualquer país e, por isso, mudam a cada geração. O Português não é diferente. Leiam qualquer obra do século XVIII ou XIX para verem que a Linguística está correta. Defender a rigidez que prega Pasquale Cipro Neto é atentar contra a inteligência do falante.

     Nesse mesmo site havia um comentário que considero uma pérola, ainda mais vindo de um, pasme, “professor”:

Um absurdo!!! Só pode ser brincadeira…, e por sinal de muito mal (SIC) gosto. Livro didático, pregando que é possível e admissível erros grosseiros (SIC) de portugues (SIC), comprado com o dinheiro público pelo MEC, para ensinar jovens brasileiros… essa a verdadeira herança maldita. E me perdoem os outros, mas são um bando de PTistas interesseiros. Deve ter havido dinheiro por fora e alguns sempre levando uma vantagem – a famosa lei de Gerson .Triste, muito triste ver pessoas que ainda vão defender essa nova lingistica… (SIC), incrível mesmo. E ainda vão se dar (?) de “cultos”. Como professor, já lhes aponto grandes problemas futuros: com a desvalorização e desrespeito por que passam os professores de todos os níveis e por todo nosso país, tenho certeza, que em futuro próximo, veremos professores sendo processados por “preconceito liguístico” (SIC) por estudantes interessados nessa educação que se prega. É triste… e é de envergonhar qualquer um. No fundo é de dar nojo de ver o que estão fazendo com a educação no Brasil. Dessa forma vai ser dificil (SIC) dizer que querem investir na educação para libertar o povo brasileiro e fazermos nós que o Brasil dê um salto de qualidade. Assim, com essas coisas acontecendo por aqui, vamos sim nos enterrar na imbecilidade de “alguns”, infelizmente. Pobre desse Brasil.

     Pobres dos alunos desse professor que não sabe, por exemplo, a diferença entre mal e mau, que não acentua palavras e que não sabe o que é “linguística”, mas conhece muito bem a lingistica e inventou o preconceito ligístico.
     Quanto aos “istas”, sejam eles da imprensa ou da gramática, que me perdoem, mas é muita ignorância não entenderem que a língua é um organismo vivo, em constante movimento, e que isso deve ser ensinado.
     Quando estava no ginásio, na década de 60, aprendi a concordar o numeral da porcentagem dessa forma: 60 por cento dos gaúchos ainda não entregaram a declaração de rendimentos ou 60 por cento da população gaúcha ainda não entregaram a declaração de rendimentos. Com o tempo, por desconhecerem essa regra — decerto por algum problema entre o tico e o teco, ou melhor, entre a semântica e a sintaxe —, os redatores de jornal começaram a escrever assim: 60 por cento da população gaúcha ainda não entregou a declaração de rendimentos. Em vista disso, os gramáticos de ocasião passaram a considerar correta essa forma. Não sei como ficaria se, ao escrever, resolvesse inverter a ordem da frase: Da população gaúcha, 60 por cento ainda não (entregou ou entregaram?) a declaração de rendimentos. Há vários exemplos como esse, em que o uso da língua por incultos acabou mudando a regra dita culta.
Veja os textos a seguir. Eles são a prova de que a língua muda.

Razoões desvairadas, que alguuns fallavam sobre o casamento delRei Dom Fernamdo

Quamdo foi sabudo pello reino, como elRei reçebera de praça Dona Lionor por sua molher, e lhe beijarom a maão todos por Rainha, foi o poboo de tal feito mui maravilhado, muito mais que da primeira; por que ante desto nom enbargando que o alguuns sospeitassem, por o gramde e honrroso geito que viiam a elRei teer com ella, nom eram porem çertos se era sua molher ou nom; e muitos duvidamdo, cuidavom que se emfa daria elRei della, e que depois casaria segundo perteemçia a seu real estado: e huuns e outros todos fallavam desvairadas razõoes sobresto, maravilhamdose muito delRei nom emtemder quamto desfazia em si, por se comtemtar de tal casamento.

(Trecho de crônica escrita em português arcaico na primeira metade do século XV, de Fernão Lopes, escrivão de livros do rei D. João I e escrivão do infante D. Fernando.)

Gréve dos Alfaiates – Esteve, hontem, na Chefatura de Policia, o official alfaiate Ulysses Henrich, que entregou ao dr. Vasco Bandeira, chefe de policia, um officio em que a União dos Alfaiates diz que nenhum grevista tentou, até hoje, aggredir qualquer collega. Depois de ouvil-o, o dr. Bandeira declarou...

(Trecho de notícia publicada no Correio do Povo em 19 de maio de 1911)

     Daqui a alguns anos, todos estarão escrevendo e dizendo que “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” ou que “nós pega o peixe” e os cronistas e gramáticos do futuro estarão defendendo essa forma como a mais culta e absoluta. Não sei se a regra será considerada melhor ou pior que a do passado, mas espero que a vida seja melhor.