Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Leite é soda, como diria Falomão


     Em outubro de 2007, alguns produtores de leite mal intencionados adicionaram soda cáustica e água oxigenada ao produto que vendiam à indústria, objetivando, é óbvio, auferir mais lucros. As vaquinhas não tinham nada a ver com isso. O assunto foi vastamente divulgado e comentado na mídia, gerando indignação no país inteiro contra os maus produtores. Algumas indústrias de peso compraram leite desses produtores, mas alegaram desconhecer o fato de que o produto estaria adulterado.
     Lembrando daquele comercial de uma dessas indústrias, em que crianças graciosas, graciosamente fantasiadas de animaizinhos, cantavam uma alegre musiquinha enaltecendo as qualidades do leite, resolvi fazer uma brincadeira: editei o comercial, mudando o seu final, e postei-o no YouTube, naquela época.
     Não esperava que tivesse a repercussão que teve e continua tendo. O vídeo recebeu, até agora, 29 comentários, alguns criticando-o; muitos elogiando-o. Há exatamente um ano, teve um cara que escreveu assim:

Sem dúvida o protesto contra o leite contaminado é válido. A única observação é que esse tipo de vídeo é visto quase sempre por crianças. Você não ia querer estar no meu lugar ao ver o susto que meu filhinho tomou ao aparecer essa caveira!! Sacanagem!!!.
     Ao que respondi:

Me desculpe se a minha montagem do comercial da Parmalat assustou seu filho. Ocorre que nas informações do vídeo está escrito: 'sátira do comercial dos mamíferos da Parmalat, depois de decoberta a fraude do leite, com adição de soda cáustica e água oxigenada'. Se seu filho estava sozinho fazendo pesquisas no YouTube, não deve ser tão pequeno assim; se estava com o pai, me pergunto: por que um pai assistiria a uma coisa dessas junto a seu filho pequeno?.
     O último comentário foi postado há três semanas e diz assim:

tadinhas das crianças que têm os pais que não leem sinopse dos videos....
     O mais impressionante, contudo, é a quantidade de exibições do vídeo: 89436 (até este exato momento).
     Ontem, a minha montagem teve um desdobramento surpreenden-te, acredito que pela quantidade de exibições: recebi um email do The YouTube Team dizendo que meu vídeo tinha se tornado tão popular que eu estava apto a entrar no programa de parceria da empresa e ganhar dinheiro com as exibições do material. Ou seja, o YouTube me propôs inserir propagandas na página do meu vídeo. A cada acesso eu ganharia alguma coisa. Olhei as regras mas vi que não estou tão apto assim. Há uma série de condições — justas, diga-se de passagem — para entrar no programa.
     Se você entrar no YouTube e procurar por “novo comercial da parmalat”, o primeiro que vai aparecer é o vídeo que fiz. Em todo caso, leia a sinopse pra ter certeza e não assista junto a crianças menores de 21 anos.
     Se preferir, assista diretamente aqui, mas tire as crianças da sala!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Um sonho a dois


     Quem me acompanha desde o início deste blog deve lembrar que o título da primeira postagem foi “Dia especial”. Escrevi, então, que era um dia especial, entre outras razões, porque casava-se meu filho mais novo. No dia posterior ao do casamento, escrevi “O dia seguinte”, em que contei como foram os acontecimentos daquele ato solene de união entre duas pessoas (até um tempo atrás se completava esta frase com “de sexos diferentes”). Falei também das minhas emoções, que foram tantas (mas nada a ver com as do Roberto Carlos), e dos nós que, em diversos momentos, apertaram-me a garganta.
     Tive acesso, agora, ao DVD em que estão registrados todos aqueles momentos, e quero compartilhar um deles com meus leitores (olha a pretensão do plural!). O vídeo apresentado abaixo assinala o momento em que os noivos, após a cerimônia religiosa, entraram no ambiente onde aconteceria a festa e se apresentaram aos convidados cantando Um sonho a dois, música originalmente interpretada por Roupa Nova e Cláudia Leite.


sábado, 19 de dezembro de 2009

Futebol ao sol e à sombra



     Vou reproduzir nesta postagem pequeno trecho de um livro de Eduardo Galeano: Futebol ao sol e à sombra. O original é de 1995, mas a edição que estou lendo é atualizada, incluindo as copas de 1998 e 2002. É uma edição de bolso da L&PM que, na última capa, diz o seguinte:

[...] Eduardo Galeano penetrou nas profundezas da história e das histórias que se passam dentro e fora das quatro linhas. Construiu este livro como um verdadeiro monumento à paixão.
[...] Não é preciso ser um apaixonado pela bola para apreciar esta saga.
     Em pequenos textos, o autor fala tudo sobre futebol: desde o jogador, o goleiro, o árbitro, o técnico, o gol, a torcida, o campo, até interesses políticos e financeiros. O trecho que reproduzo é sobre os jornalistas: repórteres, narradores e comentaristas. Escolhi esse trecho porque, além de ser interessante — como todo o livro —, um dia fui ligado profissionalmente a emissoras de rádio, e também porque nasci irmão do célebre radialista Milton Ferretti Jung, há 45 anos locutor do correspondente jornalístico da Rádio Guaíba, que já narrou três copas do mundo e escreve crônicas esportivas para a mesma emissora. Na escolha do tema desta postagem também quero homenagear o filho homônio do meu irmão — e, coincidentemente, meu sobrinho —, Milton Ferretti Jung Jr., âncora da CBN São Paulo, premiado este ano pelo Prêmio Comunique-se como o "Melhor Âncora de Rádio".
     Vamos ao Eduardo Galeano.

Os especialistas

     Antes da partida, os comentaristas e os cronistas formulam suas perguntas desconcertantes:
     — Dispostos a ganhar?
     E obtêm respostas assombrosas:
     — Faremos todo o possível para obter a vitória.
     Depois, os locutores tomam a palavra. Os da televisão acompanham as imagens, mas sabem muito bem que não podem competir com elas. Os do rádio, ao contrário, não são recomendados para cardíacos: esses mestres do suspense correm mais que os jogadores e mais que a própria bola, e em ritmo de vertigem narram uma partida que pode não ter muita relação com o que se está olhando. Nessa catarata de palavras, passa roçando o travessão o disparo que se vê roçando o mais alto céu, e corre iminente perigo de gol a meta onde uma aranha tece sua teia, de trave a trave, enquanto o goleiro boceja.
     Quando conclui vibrante jornada no colosso de cimento, chega a vez dos comentaristas. Antes, os comentaristas interromperam várias vezes a transmissão da partida para indicar aos jogadores o que deviam fazer, mas eles não puderam escutá-los porque estavam ocupados em errar. Estes ideólogos da WM contra a MW, que é a mesma coisa mas ao contrário, usam uma linguagem onde a erudição científica oscila entre a propaganda bélica e o êxtase lírico. E falam sempre no plural, porque são muitos.

A linguagem dos doutores do futebol

     Vamos sintetizar nosso ponto de vista, formulando uma primeira aproximação da problemática tática, técnica e física do cotejo que foi disputado esta tarde no campo do Unidos Venceremos Futebol Clube, sem cair em simplificações incompatíveis com um tema que sem dúvida está exigindo análises mais profundas e detalhadas e sem incorrer em ambiguidades que foram, são e serão alheias à nossa pregação de toda uma vida a serviço do amor ao esporte.
     Seria cômodo para nós ignorar nossa responsabilidade, atribuindo o revés da esquadra local à discreta performance de seus jogadores, mas a excessiva lentidão que indubitavelmente mostraram na jornada de hoje, na hora de devolver cada esférico recepcionado, não justifica de nenhuma maneira, entenda-se bem, senhoras e senhores, de nenhuma maneira, semelhante desqualificação generalizada e, portanto, injusta. Não, não e não. O conformismo não faz parte do nosso estilo, como bem sabem os que nos seguiram ao longo de nossa trajetória de tantos anos, aqui em nosso querido país e nos cenários do desporto internacional e inclusive mundial, onde fomos convocados a cumprir nossa modesta função. Portanto vamos dizê-lo com todas as letras, como é nosso costume: o êxito não coroou a potencialidade orgânica do esquema de jogo desta esforçada equipe, porque ela pura e simplesmente continua sendo incapaz de canalizar adequadamente suas expectativas de uma maior projeção ofensiva até o âmbito da meta rival.
     Já o dizíamos no domingo próximo passado e assim o afirmamos hoje, com a cabeça erquida e sem papas na língua, porque sempre chamamos pão de pão, e queijo de queijo, e continuaremos denunciando a verdade, doa a quem doer, caia quem caia e custe o que custar.



GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução: Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. 3. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008. 232 p.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A cinza vulcânica e os palavrões



     Um dia desses encontrei um conhecido que não via há algum tempo. Antes desse encontro, tinha falado com ele no final de 2008. Na ocasião ele estava partindo para uma viagem de aventuras pela América do Sul. Era, então, um cara saudável. Agora, custei a reconhecê-lo: magro, meio curvado, caminhando devagar, barba por fazer, cabelos desgrenhados. Depois do aperto de mão, do abraço e das tradicionais perguntas sobre as famílias, pôs-se a contar sobre a viagem que havia feito. Com muito custo narrava suas aventuras por essa América. Estava muito ofegante e fazia pausas entre uma frase e outra para recuperar o fôlego. Não resisti e perguntei onde tinha ficado aquela saúde que esbanjava tempos atrás. Foi da resposta que surgiu o tema desta postagem.
     Em fevereiro deste ano, meu conhecido estava no sudeste da Colômbia, no Departamento de Nariño, quando o vulcão Galeras entrou em erupção. Em vez de sair de lá, ficou para registrar o fenômeno em fotos. Cinco dias depois, estava no Chile. Seu objetivo era fotografar a erupção de um outro vulcão, o Chaitén, que fica 1.200 km ao sul de Santiago. Virou um caçador de vulcões em erupção.
     Perguntei o que isso tudo tinha a ver com sua aparência e sua falta de fôlego. Fiquei, então, sabendo que ele fora acometido de uma doença pulmonar causada pela aspiração de cinzas vulcânicas. Ele não conseguiu dizer o nome da doença nem o nome que se dá a pessoa por ela acometida. Eram tantas iterrupções para ganhar fôlego que resolveu pegar caneta e papel e escrever. Confesso que, agora, quando fui transcrever os nomes, vali-me do Google para poder usar o recurso copiar-colar. A palavra que define o portador da doença é, atenção, lá vai:

pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico!

     E o nome da doença é

pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose.

     Tratam-se da primeira e da segunda maiores palavras da língua portuguesa. A primeira com 46 letras; a segunda com 44.
     Ainda bem que não é uma doença comum. Fico imaginando um médico dizendo a seu paciente:

“Você adquiriu uma pneumoultra... Desculpe! Pneumoultrami... croscopico... Perdão! microscopicossilicovulcano... vulcanoco-niose! Entendeu?”
     Quem sofre dessa doença corre o risco, por tabela, de ficar com outra que ocupa o terceiro lugar em quantidade de letras na língua portuguesa: hipopotomonstrosesquipedaliofobia. Esta é uma doença psicológica característica de quem tem medo irracional (ou fobia) de pronunciar palavras grandes ou complicadas. Contém 33 letras. Ou seja, o sujeito que tem as duas doenças está impossibili-tado de pronuncir seus nomes.
     O que é o progresso, né?! Quando eu era (mais) jovem, a maior palavra da língua portuguesa de que eu tinha conhecimento era anticonstitucionalissimamente. Este advérbio se refere a algo feito de maneira contrária ao que dispõe a constituição de um país. Tem 29 letras e, hoje, é a quarta maior palavra do nosso idioma. O quinto lugar, com 28 letras, é ocupado por oftalmotorrino-laringologista (especialista em doenças dos olhos, ouvidos, nariz e garganta); e o sexto, inconstitucionalissimamente (advérbio que designa o mais alto grau de inconstitucionalidade), com 27 letras.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O cara disse: merda!


Eu não quero saber se o João Castelo é do PSDB, eu não quero saber se o outro é do PFL, eu não quero saber se é do PT. Eu quero saber se o povo está na merda e eu quero tirar o povo da merda em que ele se encontra. Esse é o dado concreto.
Luiz Inácio "o cara" da Silva


     Que merda! O Lula falou merda! O presidente falou merda! Não me entenda mal: ele não falou merda, ele disse merda, ou melhor, também não disse... Tá difícil de entender? Pois é... Que merda! Vou tentar me fazer entender: o Lula pronunciou a palavra merda. Ufa! Consegui!
     Viram como é difícil falar merda, ou melhor, falar "em" merda. Afinal, o que é e o que significa merda?
     É muito relativo. Depende sobre o que se está falando, de quem se fala, como se fala, onde, etc. A palavra em questão é um substantivo feminino que significa, em sua primeira acepção, matérias fecais, excremento, dejeto. Por extensão de sentido, merda também é acúmulo de lixo, de sujeira, imundícia, porcaria, sujidade. Em linguística, o uso do vocábulo merda é um tabuísmo. Mas que merda é esta?
     Tabuísmo (tabu + -ismo), substantivo masculino, é uma palavra, locução ou acepção tabus, consideradas chulas, grosseiras ou ofensivas demais na maioria dos contextos. São os chamados "palavrões" e referem-se, geralmente, ao metabolismo (cagar, mijar, merda), aos órgãos e funções sexuais (caralho, pica, boceta, colhão, foder, etc.), incluem ainda disfemismos pesados como puta, veado, expressões tabuizadas (puta que pariu) etc. Já sei, você não sabe o que é disfemismo. É uma expressão grosseira ou desagradavelmente direta, em vez de outra, indireta ou neutra. Entendeu?
     Para explicar tabuísmo deve-se, ainda, explicar tabu e ismo. Tabu vem do polinésio tabu e significa sagrado, intocável, proibido. Tabu, substantivo masculino, é uma proibição convencional imposta por tradição ou costume a certos atos, modos de vestir, temas, palavras, etc., tidos como impuros, e que não pode ser violada, sob pena de reprovação e perseguição social. Trata-se de uma interdição cultural e/ou religiosa quanto a determinado uso, comportamento, gesto ou quanto à linguagem.
     Por sua vez, ismo é um sufixo nominal (formador de nomes): doutrina, escola, teoria ou princípio artístico, filosófico, político ou religioso'; 'ato, prática ou resultado de'; 'peculiaridade de'; 'ação, conduta, hábito, ou qualidade característica de'; 'afecção', 'quadro mórbido', 'condição patológica (causada por)'; 'conjunto das características comuns a certo povo, ou civilização'; 'expressão, ou palavra própria de determinada língua, ou região, ou povo'; 'proteção, patronato'; 'modalidade ou prática esportiva'.
     O uso da palavra merda poderia também ser classificado como um plebeísmo: modos, usos, frases, palavras, de uso exclusivo da plebe.
     Mais uma coisinha: os meios de comunicação, em geral, disseram que Lula disse um "palavrão". O termo tanto pode significar uma palavra grande e difícil de pronunciar como uma palavra obscena ou grosseira; palavrada, pachouchada ou, ainda, termo enfático ou empolado; palavrada.
     Tudo que está dito acima, com exceção dos dois primeiros parágrafos, está nos dicionários. Podem conferir.
     Em questões de linguística, de lexicografia, de terminologia, estamos conversados. Mas em questões políticas? O que significa merda num discurso político?
     Pois é. O Lula pronunciou um palavrão: merda! Que merda! Significa que deu mais um motivo para os tabuístas de plantão se manifestarem. Só isso. O que será que aconteceria se Berlusconi dissesse "schifezza"? E o Obama, dizendo "shit" ou "crap" num discurso? A Angela Merkel falaria em "mist"? Na língua do Sarcosy ficaria mais parecido: "merde".
     Mudando de saco pra mala, no mesmo dia li nos mesmos (alguns) meios de comunicação que noticiaram a merda do Lula as seguintes notícias:

Eleito um dos 100 personagens do ano pelo jornal espanhol "El País", o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi tema de um artigo assinado pelo primeiro-ministro espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, com o título "O homem que surpreende o mundo". No texto, Zapatero diz que sente "profunda admiração" por Lula e faz diversos elogios ao colega brasileiro (http://www.elpais.com/articulo/internacional/hombre/asombra/mundo/elpepuint/20091211elpepuint_1/Tes).

Aprovação de Lula cresce na pesquisa CNI/Ibope. 72% dos brasileiros avaliam o governo como bom ou ótimo. 83% aprovam a maneira como o presidente Lula dirige o país.

Avaliação positiva do presidente Lula sobe para 78,9%, diz CNT/Sensus. No último levantamento, em setembro, índice era de 76,8%. Aprovação do governo federal sobe de 65,4% para 70%.

     E olha só o que "o cara" disse:

"Lógico que eu falei um palavrão aqui. Amanhã os comentaristas dos grandes jornais vão dizer que o Lula falou um palavrão. Mas eu tenho consciência de que eles falam mais palavrão do que eu todo dia e tenho consciência de como é que vive o povo pobre desse país e é por isso queremos mudar a história desse país".

     O que será que ele quis dizer com "eles falam mais palavrão do que eu todo dia"? Que falam merda diariamente?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Penitência budista


Assim como as pedras preciosas são tiradas da terra, a virtude surge dos bons atos e a sabedoria nasce da mente pura e tranquila. Para se andar com segurança, nos labirintos da vida humana, é necessário que se tenham como guias a luz da sabedoria e virtude.
Sakyamuni

     Eu estava zen desde domingo. Por isso não escrevi antes sobre a aventura que narro hoje.
     Pois foi no domingo, dia 06, que resolvi visitar o templo budista Khadro Ling, a 7km de Três Coroas, numa região circundada por Igrejinha, Taquara, São Francisco de Paula, Canela e Gramado. Para situar o leitor: o Khadro Ling é a sede do Chagdud Gonpa Brasil, uma organização sem fins lucrativos destinada ao estudo e prática do Budismo Tibetano. Uma comunidade de praticantes budistas mora no local e em suas terras fica o primeiro templo tibetano tradicional da América Latina.

     Em 1991, Chagdud Tulku Rinpoche visitou o Brasil pela primeira vez. Em 1994, foi convidado para vir ao Rio Grande do Sul. Encantado com a beleza da serra gaúcha e com o interesse dos praticantes pelo budismo, Rinpoche procurou terrenos na região para estabelecer um centro. Em 1995, Rinpoche mudou-se para onde hoje está o Khadro Ling. O centro contava apenas com poucas construções. Em novembro de 2002, durante um retiro com a presença de 250 praticantes de todo o país, Rinpoche morreu após dois dias de ensinamentos e intensa prática espiritual. Incansável, ele ensinou até tarde da noite de sábado, 16 de novembro. Sua morte aconteceu na madrugada do dia 17 de forma extraordinária. Por seis dias, ele permaneceu em um estado de profunda meditação antes de a consciência deixar seu corpo.
     Tudo sobre o Khadro Ling pode ser visto em kl.chagdud.org, fonte do parágrafo acima.
     Mas vamos à aventura que me deixou zen.
     Surgiu a oportunidade de visitar o templo em uma excursão de um grupo de praticantes de Ioga. Não sou muito afeito a excursões, mas, enfim, era uma forma de conhecer o Khadro Ling e, ainda por cima, interagir com pessoas que não conhecia e, especialmente, me divertir. O ônibus sairia do local marcado às seis da manhã. Deveríamos estar no templo às 8h00 para assistir a uma cerimônia. Acordei às 4h30 para chegar a tempo. Fomos eu, minha mulher, uma irmã dela e minha sogra. Chegamos às 5h45; o ônibus não. Começou bem. O motorista precisou ligar para o celular da organizadora para saber como chegar ao local do embarque. Senti o drama.
     Quando o ônibus surgiu na esquina tive a pior das impressões sobre ele. Era um caquinho velho, provavelmente refugo de uma empresa grande, que fora comprado por essa "Qualquer Coisa Tur" da vida. Enfim, era o que tinha, a aventura já estava paga e não acordei às quatro e meia da madruga de um domingo pra desistir. Nos acomodamos fazendo cara feia para o cheiro de mofo e dos odores que vinham do sanitário do veículo.
     Já eram 6h20 quando o bólido da "Qualquer Coisa Tur" partiu. O ronco do motor até que era bonitinho. Parecia bem reguladinho. Aquele ruído contínuo do motor, o apito grave dos pneus contra o asfalto e meu sono me fizeram cochilar.
     Despertei desconfiado que o motorista estivesse perdido, pois diminuía razoavelmente a velocidade em cada entroncamento, como que tentando adivinhar pra que lado deveria seguir. Num determinado momento parou num posto de combustíveis e desceu. Da janela vi-o falar com um frentista, que lhe apontava uma direção e girava a mão pra lá e pra cá, esquerda, direita, indicando mudanças de rumo. Seguimos por mais um pouco de asfalto até entrar numa estradinha estreita de chão batido, em meio ao mato e com barrancos dos dois lados. Ah! E, ainda por cima, era subida. O ronco do motor foi ficando mais grave e forte. Terceira, segunda... primeira... Paramos. Sem explicações, o motorista começou a dar ré no ônibus. Nos entreolhamos assustados: imagina descer de ré aquele caminho! Mas ele devia saber o que estava fazendo. Andou mais um pouco de costas num terreno plano, parou, engatou uma primeira e foi firme. Acelerou tudo, colocou uma segunda... primeira... o ônibus começou a perder força e puf! Apagou o motor e não mais pegou. Quando desci ouvi o motorista falando ao celular com alguém da empresa, dizendo com o vocabulário dele que a subida era muito íngreme e que o carro perdeu a força.
     Seguimos a pé para a frente, sem saber por quanto tempo andaríamos naquela lomba empoeirada. Acho que caminhamos um quilômetro e chegamos a uma bela estrada asfaltada, a RS-20. Havia uma parada de ônibus cujo número era — pasme — 171! Parte do grupo seguiu estrada acima; a outra ficou parada na parada. A esperança destes logo foi recompensada com a chegada de um coletivo intermunicipal. A organizadora perguntou ao motorista se o ônibus nos deixava perto do templo e a resposta foi positiva. Embarcamos. Mais adiante o ônibus parou para que embarcassem os que se aventuraram a seguir a pé pela estrada. Seis paradas depois estávamos na parada 177, à beira do caminho que leva ao Khadro Ling.
     Éramos 34 pessoas: 32 mulheres e dois homens (um deles era eu e o outro, o marido da organizadora); 30 com mais de 50 anos e duas com menos (uma era filha da organizadora). Metemos o pé na estrada sem saber por quanto tempo e por quantos quilômetros.
     Apesar de nublado, o domingo estava mormacento. Certamente já tínhamos perdido a cerimônia, pois já passava das oito horas. Subíamos apreciando a bela paisagem longínqua, o vale onde se incrustam as cidades de Igrejinha, Parobé e Três Coroas. Pela organizadora ficamos sabendo que o motorista do ônibus já havia conseguido pedir socorro e que estava esperando um mecânico vindo de Porto Alegre. Já que estávamos lá não precisávamos de ônibus. Nossa preocupação era com a volta e, se já tinha socorro a caminho, tudo bem. Era relaxar e gozar.
     No desenho abaixo o caminho que percorremos a pé.


     Chegamos ao templo às nove horas. Não vou discorrer aqui sobre o local, só que tive a oportunidade de demonstrar minha fé e dedicar lamparinas a uma pessoa que me é muito cara. O relato é sobre a aventura de ir até lá naquelas condições.
     Percorremos todos os cantos da área onde há dois templos, estátuas e outras instalações. Tínhamos um almoço marcado em um restaurante de Três Coroas. No local não tinha nem lanche, só refrigerantes na loja do templo. A última notícia que tivemos sobre o ônibus foi às 11 horas. Dizia que o mecânico já havia chegado e estava trabalhando no conserto. Depois disso, o motorista desligou o celular e ficamos sem comunicação. Nada auspicioso.



     Enquanto isso, a organizadora contatou o restaurante que, pra não perder um grupo de 34 pessoas, ficou de conseguir um ônibus ou uma van para nos buscar. Às 12h30 resolvemos fazer o caminho de volta (a linha amarela do esquema acima). A pé de novo. A proposta era esperarmos no meio do caminho pela condução que o restaurante, depois de muitas tentativas, não conseguiu. Antes de sabermos que não se conseguiria essa condução, enquanto estávamos parados no meio do caminho, acabei quebrando um galho. Me recostei num grosso galho, caído, que só suportou meu peso por um tempo, levando-me ao chão em seguida, em câmera lenta, na frente de todo mundo. Resolvi ficar sentado no chão. Como se isso não bastasse, encostei a parte interna do braço num bicho cabeludo, que me queimou. Uma senhora prevenida me emprestou uma pomada milagrosa. E fomos indo, indo, indo, indo estrada de chão batido afora. De vez em quando eu olhava pesaroso para meu sapatênis Ferracini.
     Chegamos novamente naquela estrada em que descemos do ônibus de linha na vinda. Depois de inúmeras tratativas, uma moradora da esquina da estrada asfaltada com a estrada de chão batido conseguiu um micro ônibus que nos levaria a Igrejinha. De lá deveríamos pegar um ônibus para Porto Alegre na rodoviária. Quando sentamos neste micro, adivinhe quem apontou na estrada, lépido e faceiro? O ônibus em que viemos até metade do caminho e que nos deixou na mão. Como este nos levaria direto a Porto Alegre, embarcamos nele e viemos, depois que a organizadora deu R$ 100,00 para o cara do micro ônibus pelos serviços que nem chegaram a ser prestados. Mas tudo bem, foram descontados da empresa do ônibus que estragou.
     A aventura poderia ter terminado por aí. Mas não. Eu estava louco pra chegar em casa pra comer e ainda a tempo de assistir à rodada final do Brasileirão. Aquele mulherio do grupo — agora reduzidas a 28, porque duas delas embarcaram num ônibus de linha quando estávamos parados na beira da RS-20 — ainda quis parar em Igrejinha pra comprar sapatos. Os mesmos sapatos que têm em Porto Alegre, com os mesmos preços e as mesmas condições de pagamento. Não vou entender nunca! Foi só aí que me esqueci dos ensinamentos de Buda e me irritei. Como eu era o único homem, já que o outro era o marido da organizadora, dancei...
     Cheguei em casa a tempo de ver o Flamengo festejar o campeonato. Menos mal.
     No budismo sempre há uma lição para tudo. Deste passeio tirei uma: nunca mais me convidem mais para excursões!

sábado, 5 de dezembro de 2009

pIcHaÇãO


     Como já disse na postagem anterior (O leste e o norte), moro num bairro meio ânus. Pra chegar onde moro preciso passar pela extensão da avenida Bento Gonçalves, desde seu início até a altura do Hospital São Pedro. Faço esse trajeto no mínimo duas vezes por dia — um de ida e um de volta — há quase quatro anos. Esse tempo não foi suficiente para que me acostumasse com os horrores que ali vejo. Falo da feiura provocada por pichações na maioria dos prédios da Bento Gonçalves. Não me conformo que haja no mundo — e também em Porto Alegre — gente que sinta prazer em grafar seu recalque nas paredes das moradias alheias. Não estou falando de grafite, que é uma arte de rua, mas sim daquelas garatujas aleatórias só entendidas e apreciadas por quem é do meio.
     Em setembro, em Viamão, um aluno pichou seu nome na parede da sala de aula que recém havia sido pintada em mutirão pela comunidade escolar. Flagrado por uma professora, esta obrigou-o a repintar a parede. O fato foi parar na justiça, rendeu reportagens, editoriais e crônicas em jornais e várias matérias em emissoras de rádio e de TV. Anteontem (03/12), o caso teve desdobramentos. Para não ter que se submeter a uma ação penal por uma possível infração ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a professora Maria Denise Bandeira aceitou acordo proposto pela promotora Daniela Lucca da Silva. Pela chamada transação penal, a professora terá que pagar uma multa de meio salário mínimo (R$ 232,50) a ser depositada na conta do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente.
     A promotora — que cumpriu fria e fielmente a lei — penalizou alguém que praticou “educação” e seguiu as diretrizes da escola, estas amparadas pela SEC. Se, por um lado, a decisão foi infeliz, por outro, vai proporcionar um Natal melhor para alunos carentes de Viamão. Ontem (04/12), dezenas de pessoas se prontificaram a ajudar a professora a pagar a transação penal que lhe foi imposta. Essas doações — que superaram o valor da multa — serão depositadas na conta do Conselho de Pais e Mestres da escola Barão de Lucena e o valor será usado na compra de brinquedos.
     Muito propriamente diz Urbano Warcken, colunista do Jornal Bom Dia Rio Grande, de Erechim:

As escolas estão cheias de jovens e adolescentes que vêm de casa indisciplinados, mal educados, respondões, agressivos e dispostos a depredar e destruir. Quando uma escola resolve colocar um “basta” nesta corrente, a Justiça condena a educadora que, no intuito único de educar – na acepção mais literal do termo – fez um aluno reparar os estragos que produziu.

     Quanto ao “pobre” adolescente, aquele que fez arte com seu belo nome na parede da sala de aula recém pintada com os esforços da comunidade escolar, e que foi “injustamente” constrangido, sofrendo o “vexame” de ter que pintar novamente a parede, sabe-se se lá o que vai acontecer com ele. Amanhã ou depois deverá estar com um pano tapando a cara e com sprays de tinta na mão pichando um prédio numa avenida Bento Gonçalves da vida.
     Nos dias de hoje, a lei não pode ser interpretada como palavra fria. Há que se ter, acima de tudo, bom senso, cujo faltou à fiel defensora dos “direitos” daquele adolescente. Fica a pergunta: quem vai fiscalizar o “dever” dele?

sábado, 28 de novembro de 2009

O leste e o norte


     Moro num prédio meia-boca de um bairro meio ânus. Da sacada da sala vejo um leste meio pobre da cidade; da sacada do quarto vislumbro um norte meio rico. Olhando assim, de longe, à noite ambos se assemelham e são bonitos: as luzes bruxuleiam enfeitando a cidade como uma árvore de Natal. À direita do leste meio pobre vê-se o chamado morro da Embratel, onde estão fincadas dezenas de torres de emissoras de rádio e TV. As luzes que piscam nas mais altas podem ser comparadas àquelas estrelas colocadas no topo dos pinheiros de Natal. Por trás do norte meio rico brilha o clarão do aeroporto. Daqui se vê chegarem e partirem as aeronaves que não transportam os moradores do leste meio pobre. Para o leste meio pobre também tem um clarão: o do Presídio Central, onde não há moradores do norte meio rico.
     Como é à noite que todos os gatos são pardos, durante o dia aparecem algumas diferenças. De maneira geral, se encontram na quantidade de verde, de concreto e de unidades habitacionais. De modo intrínseco, porém, são gritantes. E estas diferenças mais íntimas também percebo no meu bairro: ele é um pouco esquecido pelo poder público. O asfalto um dia derramado sobre os românticos paralelepípedos por alguma administração enganadora está todo cariado; as bocas de lobo entupidas (muito por culpa dos próprios habitantes) não querem nem saber da água da chuva que corre como cachoeira pelo meio-fio, trazendo lá de cima todo tipo de porcaria; a coleta de lixo é feita dia sim dia não; há uma profusão de fios, de todos os tipos, transportando energia e comunicação, presos a velhos postes enferrujados... Enfim, o bairro não é bonito quando visto de perto.
     Dia desses me surpreendi ao ver no poste da frente do meu prédio meia-boca uma luminária novinha em folha. Uau! Esperei ansiosamente a noite pra ver a luz dela. É dourada, diferente da anterior, que tinha cor de mercúrio. Fiquei tão encantado com ela que só dois dias depois reparei que todos os postes da minha rua estavam com luminárias novas. Meu prédio fica numa esquina (leia o post de 14 de outubro, Galos de despachos). Outro dia vi com meus próprios olhos as luminárias sendo colocadas na rua lateral. Surpreendente! E nem é ano eleitoral. A noite ficou mais bonita mesmo vista de perto.
     Mas é legal ficar-se olhando a paisagem das sacadas do meu prédio meia-boca de um bairro meio ânus. É olhando para o leste meio pobre e para o norte meio rico que me vem a inspiração pra escrever as coisas que escrevo aqui.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Ato médico

     Recebi por email um pps (apresentação do PowerPoint) condenando o projeto de lei conhecido como ato médico. De acordo com definição da Wikipedia, ato médico

é o conjunto das atividades de diagnóstico, tratamento, encaminhamento de um paci-ente e prevenção de agravos ao mesmo, além de ativida-des como perícia e direção de equipes médicas. Diversos países já elaboraram suas legislações sobre as compe-tências dos profissionais de saúde, haja vista que muitas categorias se diferenciaram da Medicina nas últimas décadas e agora reivindicam especificação de funções.
     Pois bem, segundo o pps (não o partido político, mas sim a apresentação PowerPoint), a aprovação do projeto

é um crime contra quatro milhões de outros profissionais de saúde e uma ameaça a 191 milhões de brasileiros.
     A tal apresentação argumenta em cima do artigo 4º do projeto:

Art. 4º São atividades privativas do médico:
I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica;
     Dizendo não ser advogado, o autor, Gabriel Lavoura (fisiote-rapeuta), assevera que o problema das leis não está no que está escrito, mas sim nas suas interpretações e subentendimentos. A seguir passa a interpretar, a sua maneira, as palavras do artigo. Brilhantemente, então, explica para a audiência de sua apresentação que "privativo vem de privado, limitado à, exclusivo, proibido aos outros"; "nosologia: ramo da medicina que trata das enfermidades em geral e as classifica"; "qualquer afecção (doença, dor, problema) que atinja qualquer parte do corpo". Simples e, repito, brilhante...
     Também quero ser brilhante. Vou colaborar com o Gabriel:

Privativo - que exprime privação; próprio, particular, exclusivo.
Privado - que não é público; particular.
Diagnóstico - conhecimento ou determinação duma doença pelo(s) sintoma(s), sinal ou sinais e/ou mediante exames diversos (radiológicos, laboratoriais, etc.); o conjunto dos dados em que se baseia essa determinação; qualificação dada por um médico a uma enfermidade ou estado fisiológico, com base nos sintomas que observa; diagnose.
Nosologia - estudo das moléstias.
Nosológico - referente à nosologia.
Enfermidade - Debilidade, doença, ou outra causa que produza fraqueza.
Doença - Denominação genérica de qualquer desvio do estado normal; conjunto de sinais e/ou sintomas que têm uma só causa; moléstia; alteração mais ou menos grave da saúde; falta ou perturbação de saúde.
Moléstia - incômodo ou sofrimento físico; doença, achaque, mal, enfermidade; incômodo físico ou moral; inquietação; mal-estar.
Prescrição - ato ou efeito de prescrever.
Prescrever - indicar como remédio; receitar.
Terapêutica - parte da medicina que estuda e põe em prática os meios adequados para aliviar ou curar os doentes; terapia.
     São palavras do Gabriel: "Portanto, de acordo com esta lei, fica sendo atividade exclusiva do médico, fazer o diagnóstico e definir como vai ser feito o tratamento de qualquer tipo de problema que a pessoa tenha."
     Então eu pergunto: alguma vez foi diferente, ou seja, médicos fazerem diagnóstico e precreverem tratamento? Ou será que o Gabriel fisioterapeuta anda solicitando radiografias, ressonâncias magnéticas e diagnosticando desvios de coluna ou hérnias de disco e prescrevendo seus próprios tratamentos?
     E diz mais, que se a pessoa tem um problema que não precisa ser resolvido por um médico, como um problema postural, um trauma de infância ou obesidade, pelo projeto terá que, antes, consultar um médico. Faltaram-lhe argumentos consistentes. Ora, Gabriel, é óbvio que não é preciso ir a um médico pra saber que tenho problemas de postura. O que preciso saber é se esse problema é só de postura ou tenho algo mais complicado que me força a não manter uma postura correta. Muitas vezes, também, é numa consulta médica, por um problema qualquer, que se descobre que ele advém de um trauma de infância. Quanto à obesidade, também é óbvio que devo consultar um endocrinolgista "antes" de passar por um nutricionista.
     E as bobagens do Gabriel não param por aí. No seu rol de profissionais que seriam prejudicados pelo projeto cita, inclusive, farmacêuticos, biólogos e assistentes sociais. Confesso que não entendi... O assistente social é o profissional qualificado que, privilegiando uma intervenção investigativa, através da pesquisa e análise da realidade social, atua na formulação, execução e avaliação de serviços, programas e políticas sociais que visam a preservação, defesa e ampliação dos direitos humanos e a justiça social. Alguém consulta e faz tratamento com assistente social?
     O que o Gabriel precisa saber é que o diagnóstico das doenças "é" uma prerrogativa específica dos médicos.

Nenhuma das outras profissões da área de saúde, à exceção da Odontologia, possui a prerrogativa de diagnosticar doenças. Todas as demais, em "suas leis", participam da assistência à saúde de modo e maneira bem específicos, sem qualquer referência ao diagnóstico de doenças. Cada profissão detém suas possibilidades diagnósticas definidas na legislação que as instituiu.
Os fonoaudiólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais trabalham em habilitação e reabilitação. E sua atividade sanitária deve ser enquadrada como prevenção primária (habilitadora) ou terciária (reabilitadora) dos transtornos da fala, da audição, da linguagem e dos movimentos. Compartilham diversas atividades profissionais nessas áreas que a lei lhes faculta. Mas não são médicos, nem devem ser confundidos com eles. Diagnosticam defeitos do desenvolvimento e sequelas que existem como consequências de traumas ou da ação de outros agentes patogênicos capazes de determinar lise estrutural ou prejuízo funcional. Seus procedimentos de intervenção se inscrevem no âmbito da prevenção primária e terciária. Nos casos que necessitam tratamentos médicos (clínicos ou cirúrgicos) ou diagnósticos médicos, estes devem ser realizados por médicos.
(http://www.portalmedico.org.br/atomedico)
     Vamos a algumas definições:

Fisioterapia - Tratamento de doença por meio de exercícios e de agentes físicos.
Fonoaudiologia - Estudo da fonação e da audição, das suas perturbações e tratamento delas.
Nutricionismo - Estudo sistemático dos problemas referentes à nutrição.
Farmacêutico - Preparador e vendedor de medicamentos na farmácia.
     Por falta de espaço e para poupar os leitores não vou mais falar de outras bobagens do Gabriel e seu pps.
     Recomendo ao Gabriel que consulte e contrate um profissonal de marketing, um relações públicas, e mostre seu trabalho a muitos médicos. Se o trabalho for realmente bom, muitos médicos hão de recomendá-lo como tratamento a seus pacientes.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Vaidades e bundas


     Sei que o assunto já está pra lá de batido, mas vou ter que falar. Ao assistir na TV (Fantástico, Rede Globo, 15/11/2009) à entrevista de Geysa Arruda — aquela que quase foi linchada por usar um vestido curto na faculdade — fiquei pensando sobre a vaidade. A primeira coisa que fiz foi recorrer aos dicionários pra ver o que dizem sobre essa "qualidade". O Aurélio diz que o substantivo feminino vaidade é: "1. qualidade do que é vão, ilusório, instável ou pouco duradouro; 2. desejo imoderado de atrair admiração ou homenagens; [...]; 4. presunção, fatuidade; 5. coisa fútil ou insignificante; frivolidade, futilidade, tolice." O Houaiss segue a mesma linha: "1. qualidade do que é vão, vazio, firmado sobre aparência ilusória; 2. valorização que se atribui à própria aparência, ou quaisquer outras qualidades físicas ou intelectuais, fundamentada no desejo de que tais qualidades sejam reconhecidas ou admiradas pelos outros; 3. avaliação muito lisonjeira que alguém tem de si mesmo; fatuidade, imodéstia, presunção, vanidade; 4. coisa insignificante, futilidade; vanidade."
     Concordo com eles, em todas as acepções e, também, com o duque François de La Rochefoucauld, um pensador francês do século XVII, segundo o qual "a vaidade, embora não destrua totalmente as virtudes, desordena-as todas." Ao mesmo tempo, concordo com Leon Tolstoi, para quem "a vida sem vaidade é quase insuportável." Enquanto isso, Céline (Louis-Ferdinand Destouches), médico e escritor francês falecido em 1961, dizia que "não existe vaidade inteligente."
     E agora? Acho que vou ficar com uma quarta opinião, a de Augusto Cury: "vaidade é o caminho mais curto para o paraíso da satisfação, porém ela é, ao mesmo tempo, o solo onde a burrice melhor se desenvolve."
     Voltando ao tema Geysa e seu vestido curto usado na faculdade. A Uniban (Universidade Bandeirante de São Paulo), onde se deram os fatos que transformaram Geysa em "celebridade", tem uma das piores médias do país entre 173 universidades pesquisadas pelo MEC para compor o IGC (Índice Geral dos Cursos das Instituições). Vendo na TV o ambiente em que Geysa vive e as roupas que gosta de usar deduzi que a loirosa(?) — uma entre os 60 mil estudantes da Uniban —, pertence a uma classe social média baixa e deve ter uma das piores médias culturais do país; presumi que a vaidade exacerbada de Geysa tem origens na sua classe social e anda próxima do orgulho, que a faz vestir-se de um modo exuberante e esforçar-se em realçar seus supostos dotes físicos, provocando antipatia aos demais. Entre as "atribuições" de um orgulhoso estão a necessidade de ser o centro de atenções, a preocupação exagerada com a sua aparência exterior e a idéia de que todos os seus circundantes devem girar em torno de si. Compreende-se
que o orgulhoso vive numa atmosfera ilusória, de destaque social ou intelectual, criando, assim, barreiras muito densas para penetrar na realidade do seu próprio interior. Na maioria dos casos o orgulho é um mecanismo de defesa para encobrir algum aspecto não aceito de ordem familiar, limitações da sua formação escolar-educacional, ou mesmo o resultado do seu próprio posicionamento diante da sociedade da imagem que escolheu para si mesmo, do papel que deseja desempenhar na vida de “status” (PERES, Ney Prieto. Manual Prático do Espírita. Disponível em: http://www.espirito.org.br/portal/artigos/diver-sos/comportamento/orgulho-e-vaidade.html. Acesso em 15/11/2009).
     Resumindo: na minha cabeça, o orgulho e a vaidade de Geysa originam-se de um complexo de inferioridade, em que a pessoa procura compensar sua insuficiência real ou suposta apresentando-se aos outros com qualidades que realmente não possui. Ela supõe ser gostosa e, para tanto, resolveu mostrar o que considera serem bons atributos aos demais.
     A atitude desses deais, por sua vez, foi deplorável. Conseguiram transformar uma mulher comum em gostosona e, não duvido, hão de colocá-la na Playboy e num Big Brother da vida.

     Vaidade,
     todos temos;
     e bunda também,
     uns mais, outros menos.

domingo, 8 de novembro de 2009

Receita Federal: Deus nos livre!


     Ando às turras com a Receita Federal. Devo ser alguém importante pra que os técnicos da RF se preocupem com minhas declarações de “rendimen-tos” todos os anos. Vou explicar.
     Ano passado, quando começaram as restituições do IR, todos os meses visitava o site da Receita pra ver se lá estavam de volta alguns dos meus minguados tostões. De repente, aquela página que informa se sua restituição foi depositada ou se ainda continua na base de dados disse que havia pendências em minha declaração. Uau! O que seria? Faço sempre tudo certinho, sem escamotear rendimentos ou inventar deduções... Putz!
     E aí esperei, esperei, esperei e esperei o ano inteiro de 2008. E chegou 2009 e a hora de fazer a declaração referente a 2008. Fiz tudo igualzinho, novamente sem escamotear ou inventar. Novamente passei a consultar o site pra ver se vinha a mais minguada ainda restituição. Até que aquela maldita página disse de novo que havia pendências... Ah, não!
     Desta vez, no entanto, o site da Receita está mais amigável. Além de dizer que há pendências, informa quais são e se reporta a declarações de anos anteriores. Fui ver quais eram as pendências e está lá algo mais ou menos assim: inconsistência em relação a dados com despesas médicas. E agora, José? Tenho recibo de todas minhas despesas médicas... Cliquei num link que me ajudou a descobrir: só posso abater o que pago pra UNIMED o montante das minhas despesas pessoais; não posso abater o que pago para meus filhos e a mãe deles porque não são meus dependentes para fins de imposto de renda. Tá?
     Ora, teoricamente, e pra fins de imposto de renda, os filhos só podem ser dependentes até os 24 anos, se estiverem cursando uma faculdade. Caso contrário, a idade limite pra ser dependente é menor ainda. Meus filhos já passaram dos 24, já estão formados, tem emprego – um deles até já casou –, mas, pasme, continuam sendo dependentes! E isso não acontece só com meus filhos, mas com os filhos de muita gente. Foi-se o tempo em que a partir dos 18 anos os filhos já eram considerados adultos, iam morar sozinhos, etc. Hoje em dia, ficam na casa dos pais até os 30, ou mais. Não por comodismo, mas porque ainda dependem do dinheiro dos pais. Os empregos que conseguem, em começo de carreira, lhes "rende" um salário ridículo, que mal dá pra cervejinha na balada, imagine ter algum plano de saúde... E vou mais longe: a justificativa das empresas pra pagarem um salário baixo pra essa turma é de que há muitos encargos sociais e impostos incidindo.Entendo.
     Pois a Receita não quer me restituir o que paguei a mais de IR nesses dois anos porque declarei o que pago de UNIMED pros meus filhos e pra mãe deles. Vou ter que retificar as declarações tirando essa despesa que realmente tive.
     Confesso que não me importaria em contribuir para a manutenção de estradas, para a construção de hospitais, de escolas, de presídios e de abrigos para crianças e idosos; confesso que socializaria com prazer meus "rendimentos" com a camada pobre da população... Mas quero recibo de tudo isso! Ao não me fornecerem recibo de que gastaram tanto por cento dos meus "rendimentos" naqueles itens que citei acima, deveria eu ter o direito de fazer cessar o desconto para o IR feito mensal, compulsoria e diretamente no meu contracheque!
     Eu, porém, tenho que guardar por cinco anos os recibos daquilo que informei ter pago e, mesmo assim, nem tudo o que paguei posso aproveitar.
     Preciso conseguir um emprego pros meus filhos no legslativo ou no judiciário federal, pois do executivo eu sou e me ferro sempre.
     E viva os sonegadores!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Varejão


     Não sei se posso ser considerado um cara chato. Pelo menos não conto minha vida quando me perguntam "tudo bem?". Claro, tenho umas manias, pequenas. Gosto das coisas arrumadas: gavetas, mesas, armários, guarda-roupas. Mas só se as coisas estiverem muito desarrumadas. Se estiverem, não perco o humor nem fico reclamando. Apenas arrumo. É, acho que não sou chato.
     Chato mesmo são aqueles comerciais de TV aberta conhecidos como "varejão". Neste rol entram anunciantes como Big, Carrefour, Casas Bahia, Ponto Frio, Magazine Luiza e outros. São lojas cujos clientes, imagino, sejam de renda média para baixa. Invaravelmente os locutores berram as ofertas. Pra que berrar? Não bastava anunciar? Será que os consumidores de baixa renda são todos deficientes auditivos? Ah, ainda por cima, têm voz chata. Você já ouviu algum locutor daqueles que narram os textos dos comerciais de banco, ou da Petrobrás, ou de cosméticos vendendo sua voz para comerciais de varejo ou supermercado? Tenho certeza de que não. Por que os de "varejão" têm que ser ruins?
     Nos comerciais de supermercados, além dos locutores ruins de voz horrível, ainda temos que ficar ouvindo-os berrando os preços das ofertas. Os centavos de todos os produtos terminam em nove: setenta e nove, oitenta e nove, noventa e nove. Não importa se é unidade, quilo ou dúzia. É tudo alguma coisa e nove. E depois de cada nove desses tem uma exclamação.
     Já nos comercias das lojas de móveis, eletrodomésticos, eletroeletrônicos, quando não é um desses locutores anunciando "maravilhosos" sofás, supermodernos televisores LCD, aparelhos de DVD com karaokê ou refrigeradores sem IPI, tem os famosos garotos propaganda (nem tão garotos assim!), falando bem rápido pra caber tudo em 30 segundos. Ufa!
     Você está assistindo a seu programa favorito, seja ele de que gênero for, com o televisor num volume suficiente pra que se ouça o que estão falando na telinha e vem o intervalo. Passa um comercial de instituição financeira, outro de um produto cosmético, um de alguma marca de gasolina, todos bonitos e criativos, com belas imagens, música envolvente e uma narração de veludo nos ouvidos. De repente: PÁ! CRÁS! TIBUM! O volume da TV dá um salto com vara e deixa você atordoado. É um varejão entrando na sua sala; MAMÃO FORMOSA QUATRO E SETENTA E NOVE! BANANA MAÇÃ TRÊS E VINTE E NOVE! BERINGELA EXTRA GRANDE TRÊS E SESSENTA E NOVE! AIPIM EMBALADO QUATRO E TRINTA E NOVE! Imediatamente você cata o controle remoto, procura o botão de volume e aperta freneticamente, ao ritmo do locutor, tentando expulsar aquele cara da sua sala. Mas já é tarde, ele falou tudo que queria e se foi. Em seguida entra o cara que anuncia sofás, DVDs e guarda-roupas mas, por sorte, o volume já está baixo.
     Tomara que chegue um dia em que, assim como se escolhe o programa que se quer ver, se escolherá os comerciais. Tomara

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

De placebos e paranóias


     Dia desses discuti sobre medicamentos com um conhecido. Ressalte-se que não é a área de nenhum dos dois. Para situar o leitor, devo dizer que este conhecido foi diagnosticado com Distúrbio de Déficit de Atenção. Entre os sintomas de pessoas que sofrem de DDA estão a desatenção, a distração, a desorganização, problemas de controle de impulso, dificuldade de aprender com erros passados, falta de previsão e adiamento. As características marcantes desse tipo de distúrbio são a facilidade de distração com devaneios frequentes (imaginação "viajante"), desorganização, procrastinação, esquecimento e letargia/fadiga.
     O autor do livro Transforme seu cérebro, transforme sua vida, Daniel G. Amen – que tem dois filhos com DDA –, diz ter descoberto, através de pesquisas realizadas em sua clínica, que o distúrbio é basicamente uma disfunção geneticamente herdada do córtex pré-frontal, devido, em parte, a uma deficiência do neurotransmissor dopamina. Assim, grosso modo, o tratamento ideal integra, simultaneamente, o uso de medicamentos e terapia ou treinamentos comportamentais. Em relação a medicamentos, os estimulantes são a categoria mais usada. No Brasil, a Ritalina é o mais comum.
     De acordo com Instituto Paulista de Déficit de Atenção (ITDA), ainda há muito desconhecimento e preconceitos sobre o uso de medicação psiquiátrica, especialmente “tarjas pretas”. O Instituto afirma, no entanto, que a Ritalina é uma droga de perfil seguro. É uma alternativa de curto prazo, seus efeitos são rápidos e de curta duração (duram apenas de 4 e 6 horas). Quando o tratamento como um todo é baseado apenas em medicação, será necessário tomar a droga por toda a vida. A ritalina não leva a uma melhora definitiva nos sintomas, ela apenas traz alívio por algumas horas.
     Acredito que o leitor esteja, agora, um pouco familiarizado com o DDA e seu tratamento. Voltemos, então, à discussão com meu conhecido. Trata-se de um descrente. Um descrente tipo aquelas crianças que nunca comeram espinafre mas, mesmo assim, afirmam que não gostam. Sim, porque crença é atitude de quem se persuadiu de algo pelos caracteres de verdade que ali encontrou. Para encontrar uma verdade, contudo, é preciso experimentar algo. Diz ele que os medicamentos são placebos e que só curam as doenças ou minoram os sintomas porque quem os toma acredita que façam efeito. Placebo é uma forma farmacêutica sem atividade, cujo aspecto é idêntico ao de outra farmacologicamente ativa. Dessa forma, caso o placebo provoque algum resultado, este será, apenas, de natureza psicológica. Os dicionários dizem, também, que placebo é uma preparação neutra quanto a efeitos farmacológicos, ministrada em substituição de um medicamento, com a finalidade de suscitar ou controlar as reações, geralmente de natureza psicológica, que acompanham tal procedimento terapêutico. Ora, na própria acepção do dicionário já se encontra a dicotomia: placebo - medicamento. É o sim e o não. Se existe um é porque existe o outro. Meu conhecido não foge à regra: não acredita nos efeitos positivos de um medicamento, mas sim nos efeitos colaterais.
     Aprendi com o Dr. Daniel Amen que muitas pessoas com problemas no córtex pré-frontal tendem a procurar conflito para estimular seu cérebro. É de máxima importância que a gente não alimente a tormenta, mas, pelo contrário, deixe-a passar fome. Quanto mais alguém com esse padrão, inadvertidamente tenta deixá-lo aborrecido ou bravo, mais você precisa ficar quieto, calmo e firme. Deixe-o gritar. Mantenha a voz baixa e uma conduta calma. Quanto mais a pessoa com DDA tentar tumultuar a situação, menos intensa deve ser a reação do outro.
     Acredito, entretanto, que o problema do meu conhecido vá mais longe e comece a beirar a paranóia, psicopatia caracterizada pelo aparecimento de suspeitas que se acentuam, evoluindo para mania de perseguição e de grandeza estruturados sobre bases lógicas. Por quê? Porque ele acha que os medicamentos são invenção de laboratórios que só pensam em ganhar dinheiro em cima da credulidade das pessoas. Não leva em conta as quatro fases da pesquisa clínica que, além de animais, envolve cerca de 10 mil indivíduos que servem de cobaia antes de se colocar um medicamento no mercado. Seguindo esse raciocínio, pode-se dizer, também, que governos, médicos, psiquiatras, farmacêuticos e, enfim, profissionais da saúde em geral compactuam com os laboratórios. Inclusive as pesquisas das universidades do mundo inteiro.
     Resumindo: realmente, nenhum medicamento vai curar quem nasceu com disfunção no córtex pré-frontal, assim como não cura quem nasceu com um membro a menos. No primeiro caso, os sintomas podem ser minorados com medicamentos; no segundo, com próteses. Ou uma prótese também seria um placebo?

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Chaves


     Hoje fiquei mais jovem. Se não aparentemente, pelo menos virtualmente, de acordo com uma teoria minha. Ela diz o seguinte: quanto mais velhos ficamos, mais chaves temos no chaveiro. Olhe quantas chaves têm no seu chaveiro. Agora, no chaveiro dos seus filhos. Estou certo?
     Meu pai tinha um chaveiro repleto de chaves, que estava sempre preso ao cinto. E isso que naquela época, há 50 anos, nem se precisava trancafiar tudo, pois os amigos do alheio eram em número bem menor do que hoje. Pelo menos em número menor do que o de chaves que se carregava. Mas meu pai sempre gostou de trancar tudo. Tinha seus armários cheios de livros — um dos seus tesouros —, os quais, quando emprestava, fazia uma ficha, assim como nas bibliotecas; também tinha cofre e gavetas com documentos, sempre chaveadas. Mais as chaves de casa e do escritório. Seu chaveiro era enorme.
     Hoje em dia, os portões e portas das casas, apartamentos e dos nossos locais de trabalho têm, no mínimo, duas fechaduras. São comuns portas com três fechaduras. Meu chaveiro, por exemplo, tinha, até há poucos minutos, 10 chaves. Vejamos: a do portão da grade do edifício; a da porta do edifício; a da caixa de correspondência; duas da porta de segurança do apartamento; duas da porta do apartamento; a do portão lateral da grade do prédio; a da lixeira do prédio; a do claviculário do meu trabalho... Dez. Eram 11, mas minha mulher precisou de uma que eu tinha, que é da porta da grade de ferro de um edifício onde ela tem um apartamento.
     Como eu disse, fiquei mais jovem. Me livrei de três chaves de uma só vez. Deixei numa gaveta de minha escrivaninha, no trabalho, a do claviculário. Fazia anos que ela compunha o molho. Não tinha mais sentido. Estava lá desde a época em que o claviculário era chaveado. Não é mais. Está sempre aberto, portanto, não preciso dessa chave. Também tirei do chaveiro uma das duas da porta de segurança do apartamento e uma das duas da porta do apartamento. A gente sempre chaveia só uma das fechaduras mesmo. Pra que ficar envelhecido com chaves que a gente não usa?
     Daqui a algum tempo pretendo me livrar de mais uma: a da lixeira. Essa só tenho porque sou síndico e devo fechar a lixeira do prédio depois da passagem do caminhão de coleta. Não preciso abrir, pois quem o faz é uma catadora de reciclável, com quem mantenho um trato.
     Nessa contagem não estou incluindo a chave do carro, que tem seu próprio chaveiro. Neste ainda há a chave do portão da garagem do prédio (para o caso de faltar energia e não puder usar o controle remoto) e a do cadeado da porta da minha garagem, portanto, mais três chaves.
     Estou me sentindo ótimo. Pelo menos uns 10 anos mais jovem.

sábado, 24 de outubro de 2009

The Old Stones


     Em 1966, aos 16 anos, embalado pela beatlemania, decidi que queria ser músico. Não sei se pro resto da vida, mas queria tocar numa banda, que, naquela época, se chamava conjunto. Conheci o, Júlio, irmão de uma guria de quem eu gostava, que sabia tocar violão. Sentávamos no cordão da calçada, em frente à casa dela (e dele também) e ficávamos cantando músicas dos Beatles. Sei lá o que dizíamos no nosso inglês de ouvido.
     Para ser igual aos Beatles (olha a pretensão!), no entanto, o conjunto tinha que ser de quatro. Foi então que convidei o Buffalo, um amigo com quem eu passava as tardes na Rua da Praia, e o Português, irmão mais moço de um colega de aula. O Português também sabia tocar violão; o Buffalo sabia tocar o mesmo que eu, ou seja, nada... Como eu tinha uma certa coordenação motora e era o que tinha o maior nariz, resolvi ser o baterista. Ao Buffalo restou o contrabaixo.
     Já na garagem da casa do Júlio, Buffalo começou a aprender com os outros dois alguns acordes para, mais tarde, aventurar-se com o contrabaixo.
     Eu ainda não tinha bateria. Na garagem da casa do Júlio tinha um antiga eletrola (aparelho composto de toca-discos, amplificador e alto-falante, combinados em uma só unidade). Não funcionava mais. Era só um móvel velho. O suporte dos discos estava sem o feltro e funcionava como prato, pois fazia pim-pim ao ser tocado com a baqueta; a tábua de baixo, onde eu batia com o pé direito, tinha um som grave e seco, fazendo som de bumbo; ao lado do prato tinha um pedaço de compensado, meio rachado, que eu usava como caixa da bateria.
     E assim fomos passando as tardes dos sábados. A essa altura eu já namorava a irmã do Júlio.
     Precisávamos, contudo, sair da garagem, mostrar nosso talento para o público, fosse qual fosse (tanto o talento como o público). Mas não podíamos, porque faltava a tal de bateria. O Júlio e o Português já tinham guitarras; o Buffalo já tinha contrabaixo; eu só tinha a velha eletrola, que nem era minha...
     Acreditando no talento do grupo e, especialmente, com pena de mim, dona Nilza, mãe do Júlio e da Vera, conseguiu — não sei como — um arremedo de bateria. O instrumento compunha-se de um tarol e um bumbo de banda marcial, um ton de madeira sem fundo e um prato bem grosso pendurado num suporte preso ao próprio bumbo. Ah, e tinha também pedal de bumbo. Pronto! Estava completo o conjunto The Old Stones!
     E, também não sei como, surgiu o primeiro "contrato": tocar numa festa de escolha da Rainha da Primavera do Chapéu de Sol. Quem não sabe, Chapéu de Sol é um bairro não oficial da zona sul de Porto Alegre. Era tarde de um sábado de outubro e lá fomos nós, de Kombi. Fomos recebidos com pompa e circunstância pelo presidente do clube local. Ele nos acolheu na própria casa, que funcionou como uma espécie de "camarim".
     Chegou a noite e fomos para o clube. Todos os presentes, pessoas dos oito aos 80 anos, nos olhavam com admiração e curiosidade. Deviam estar pensando: "Bah! Um conjunto de cabeludos do centro. Que legal, que pretígio! Uma brasa, mora!"
     Começou o baile. Espichávamos as músicas o máximo que dava. Cada vez aumentávamos mais o espaço entre uma e outra. O leitor deve estar se perguntando o porquê disso. Simples: só tínhamos 13 músicas ensaiadas... O que nos salvou foi o desfile das candidatas e a respectiva escolha, além de uma galinhada oferecida atrás do clube, durante a festa. Retornamos ao baile e, novamente, às 13 músicas do repertório. Entre cada três ou quatro músicas repetíamos O Milionário, grande sucesso dos Incríveis.
     Tem um detalhe que esqueci de contar sobre o Buffalo: apesar de já ter contrabaixo, ainda não sabia tocar todas as músicas e, por isso, baixava o volume do amplificador. Mas, assim como não reclamaram do nosso parco repertório, nem notaram que em metade dele não se ouvia o som do baixo...
     A bateria presenteada por dona Nilza funcionou direitinho por um bom tempo.
     The Old Stones cresceu e ficou conhecido em Porto Alegre e algumas cidades do interior. Durou alguns anos e, depois, cada um seguiu seu rumo, tocando em outros "conjuntos".
     Em 1996, para comemorar os 30 anos de que havíamos tocado pela primeira vez, o Buffalo promoveu um jantar dançante e os Old Stones se reuniram de novo.
     

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O diploma de jornalista


     No artigo "Diploma de jornalista: uma questão já decidida" (Correio do Povo, 20/10/2009), Judith Brito, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), condena a tramitação, no Congresso, de duas propostas para incluir na Constituição a exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista. Cabe lembrar que, em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a exigência do diploma universitário de jornalista para o exercício da profissão.
     Dona Judith é formada em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas, com mestrado em Ciência Política na PUC, portanto, não tem diploma de jornalista, mas trabalha há quinze anos no Grupo Folha.
     Diz a administradora que "as empresas jornalísticas continuarão a contratar a imensa maioria dos seus profissionais entre egressos dos cursos de Jornalismo. [...] ele (o jornal) é o maior interessado em ter os melhores profissionais". E continua, dizendo que a decisão do STF "foi uma definição em favor do direito fundamental da liberdade de expressão, uma das "cláusulas pétreas" da Constituição (que não podem ser mudadas em nenhuma hipótese)".
     Ora, talvez a dona Judith não tenha entendido o que quiseram deixar registrado os legisladores sobre liberdade de expressão nos artigos 5º e 220 da Constituição. Então lá vai:

"Art. 5°, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
Art. 5°, IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Art. 5°, XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardo do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§1° - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XIII e XIV;
§2° - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística."

     Então eu pergunto: o que tem a ver liberdade de expressão com o fim da exigência do diploma de jornalista para o exercício da profissão? Nada! É puro sofisma da dona Judith e de tantos outros envolvidos com a ideologia jornalística dominante (putz, que jargãozinho esquerdista!). A não ser que ela e os outros — inclusive os ministros do STF — estejam se baseando na expressão "não sofrerão qualquer restrição", encontrada no Art. 220 da Carta Magna. O que os legisladores pretenderam com os artigos 5º e 220 foi prevenir a censura prévia por parte do poder público. A censura, no entanto, está dentro dos próprios veículos.
     De acordo com Edilsom Farias*, "a liberdade de expressão e informação compreende a faculdade de expressar livremente ideias, pensamentos e opiniões, bem como o direito de comunicar e receber informações verdadeiras sobre fatos, sem impedimentos nem discriminações. O objeto da liberdade de expressão compreende os pensamentos, ideias e as opiniões, enquanto que o direito à informação abrange a faculdade de comunicar e receber livremente informações sobre fatos, ou seja, sobre fatos que podem ser considerados noticiáveis".
     Liberdade de expressão e direito à informação, portanto, tem a ver com informação "verdadeira" e "correta"; exigência ou não de diploma se refere á relações trabalhistas, ou seja, só se contrata quem tem a mesma opinião do veículo em que se vai exercer a profissão.
     Nunca acreditei muito que seja necessário um diploma pra se ser jornalista. A informação já existia, os jornais já existiam, os profissionais já se expressavem livremente (on não!) há muito tempo quando surgiram os cursos de jornalismo. Estes vieram suprir uma deficiência acadêmica para o exercício da profissão, bem como para regular uma fatia do mercado de trabalho. Tanto é que, quando começou a ser exigido o diploma, os que não o tinham continuaram trabalhando normalmente — e muitos ainda exercem a profissão —, sem "sofrer qualquer restrição".
     Ainda sobre o artigo de dona Judith: alega a mestre em Ciência Política que a Constituição é um documento de principios filosóficos e que, portanto, não caberia impor-lhe um tema tão específico. Concordo, mas se os princípios da Carta são filosóficos, pra que recorrer da exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista? Aí tem...
     Prefiro ficar com o pensamento de outra mulher, Beth Costa, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas, que pode ser encontrado aqui.

*Edilsom Farias - mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB), doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e Promotor de Justiça.
FARIAS, Edilson. Democracia, censura e liberdade de expressão e informação na Constituição Federal de 1988.
Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2195. Acesso em 20/10/2009.

domingo, 18 de outubro de 2009

Uma gata chamada Wanda


     Estava olhando pro editor de textos do blog, ainda em branco, pensando no que escrever quando a Wanda subiu na bancada dos computadores. Opa! Deixa eu esclarecer: a Wanda não é minha mulher nem minha filha. Minha mulher é a Clara e minha filha, a Manuela, que nem mora comigo. A Wanda é minha gata. Pois ela subiu na bancada, caminhou até a frente do meu monitor, me olhou fixamente com seus olhos azuis e miou gelatinosamente baixinho. Como ela sempre faz isso, indiquei a ela que se acomodasse ao lado do mouse. E, como sempre, ela obedeceu.
     A Wanda tem esse nome porque foi assim batizada pelo saudoso Brito em homenagem a sua avó. O Brito era companheiro da Aldanei, ambos colegas de trabalho. Tinham um gato e duas gatas. Não me lembro do nome delas e, se não me engano, o do gato era "Negão". Era um persa preto, de bom coração e bom caráter. Não tinha pedigree, mas era bem garboso. Quanto às gatas, uma era persa e a outra Himalaia. Ambas com pedigree. Pois o Negão traçou as duas na mesma ocasião. Da gata persa nasceram vários filhotes. Todos persas e de cores variadas. Da mãe da Wanda só nasceu ela: uma himalaia sem a cara chata característica da raça, o que a deixou mais linda.
     Consta que nasceu em 1º de janeiro de 1995 estando, então, com mais de 14 anos. Mas tem um corpinho de 13.
     O cotidiano da Wanda é como o de todos os gatos de apartamento: praticamente vive para comer — ou vice-versa — e dorme. Em alguns intervalos dessas duas atividades, no entanto, voa pelo apartamento. Depois de fazer suas necessidades nº 2, parte em desabalada corrida desde a sua caixinha (WC), na área de serviço, até o gabinete em que estão os computadores e onde passamos a maior parte do dia, ou até nosso quarto. O apartamento não tem tapetes e o piso é laminado. Dá pra imaginar as escorregadas que dá antes de se estatelar em algum móvel ou parede. Parece que está participando de um torneio de drift (uma técnica de direção de carros que consiste em deslizar nas curvas deixando escapar a traseira; algo como o conhecido cavalo-de-pau). Outra coisa que gosta de fazer é correr da Lila, nossa cadela PitPoodle (outro dia falo sobre ela). Passa pela Lila olhando de lado e, de repente, taca-lhe um tapa na bunda e sai correndo. Às vezes é alcançada ou encurralada sendo obrigada a ouvir estridentes latidos por algum tempo.
     Teria muitas histórias pra contar sobre essa velhinha, mas vou ficar por aqui. Apreciem-na.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Galos de despachos


     Tem um galo morto na esquina em que moro. Está lá desde a noite de segunda-feira. Ouvi o som de um sininho e fui até a janela ver o que era. Numa das quatro esquinas do cruzamento, junto ao meio-fio, estava um casal, em frente a uma bandeja com coisas dentro que eu não consegui identificar, umas cinco ou seis velas acesas e, no meio da rua, uma porção de pipocas espalhadas. Depois de alguns movimentos corporais, os dois embarcaram no táxi que os esperava e se foram.
     Foi só na terça-feira de manhã, quando saí pra trabalhar, que vi que tinha um galo no despacho. Estava acontecendo o velório dele. Cerca de uma dezena de pombas estava em volta, deliciando-se com as pipocas. Não fiquei pra ver, mas acho que quando acabaram-se as pipocas as pombas devem ter tomado seu rumo. Não ficaram para o enterro, talvez por isso o galo vermelho continue lá.
     Não pense que estou surpreso ou impressionado com isso. Não é novidade. Cerimônias com esse tipo de ave são mais raras, mas existem. Os cachorros sem dono que vagueiam por ali e os que tem dono mas gozam da liberdade de procurar comida no lixo alheio nem dão bola pras pipocas e pros galos mortos que, ocasionalmente, são velados pelas pombas no cruzamento.
     Um dia desses fui despertado pelo canto de um galo. Eram mais ou menos cinco da madrugada. Estranhei muito, afinal, em pouco mais de quatro anos que moro ali nunca tinha ouvido um galo cantar. Mas não levantei. Esperei o despertador me chamar, às seis horas, como sempre. O galo continuava cantando. Antes de começar a preparar o café, fui até a área de serviço pra ver se localizava de onde vinha o canto. E lá estava ele, empoleirado na grade de ferro que cerca a casa da frente. Um grande e lindo galo vermelho. Não podia imaginar como tinha parado ali. Foi então que o guarda da rua saiu da guarita. Fiz um sinal com as mãos indagando o que seria aquilo, o que teria acontecido. Ele sorriu e disse que o galo tinha fugido durante a cerimônia da noite anterior. Cantava de feliz por ter escapado do estrangulamento sumário. Também fiquei feliz por ele.
     Com todo respeito, admito que cada um tenha sua religião, sua crença; e que cada um professe sua fé através das cerimônias pertinentes. Em assim sendo, católicos frequentam igrejas, onde se realizam missas; evangélicos frequentam templos para participarem de cultos; judeus comparecem a sinagogas, e assim por diante. O que não entendo é por que as religiões afros tem que acender velas, colocar oferendas e matar galos na frente da casa dos outros. Sim, eles moram longe dos cruzamentos onde deixam seus despachos, caso contrário não precisariam de táxi para levá-los até ali. Por que não o fazem na esquina da rua onde moram?
     Minha mulher ligou para o DMLU, ontem. Deram prazo de 48 horas para recolher o defunto. Até lá já fedeu bastante...