Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







segunda-feira, 25 de julho de 2011

Concerto do amor

(Sugiro a leitura desse texto com a audição de “Concerto de Aranjuez – segundo movimento”, do compositor e pianista espanhol Joaquín Rodrigo, Marquês dos Jardins de Aranjuez, (22 de novembro 1901 – 6 de julho 1999). Apesar de ser cego desde jovem, ele atingiu grande sucesso e é considerado um dos compositores que mais popularizaram a guitarra na música clássica do século XX. Seu Concerto de Aranjuez é um dos pontos altos da música espanhola.
A melodia ficou popularmente conhecida a partir de 1967, quando o cantor francês Richard Anthony gravou a música chamada “Aranjuez Mon Amour”, com letra de Guy Bontempelli.
O tecladista e baixista do Led Zeppelin, John Paul Jones, usou parte do Concerto de Aranjuez durante uma improvisação da música “No Quarter”, na turnê de1977 da banda.
Som na caixa, olhar no monitor e pensamento no texto.)

 

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     Era uma nota musical que vivia saltando pelas linhas dos pentagramas vazios a procura de uma música, Poderia ser qualquer nota com qualquer valor: dó, sol, mi, fá, fusa, colcheia, semicolcheia, breve, semibreve... Queria soar por qualquer instrumento em qual tipo de música e ritmo que fosse. Poderia ser um metal vibrante, um violino romântico um cravo bem temperado ou um tímpano furioso. Queria ser marcha, valsa, opus, concerto ou sinfonia. Tocaria em adaggio, fortíssimo ou allegro ma non troppo.
     De outras vezes já havia sido tocada. Fez parte de algumas músicas populares e de uma sinfonia inacabada, cujas pautas caíram no chão e ela soltou-se do pentagrama. Passou a vagar pelos enormes salões de concerto a olhar os mudos instrumentos. Por vezes escondia-se nas partituras dos maestros e dormia ao pé das páginas. Olhava as pautas completas, aquelas notas ordenadas — soldados em fila — formando aquela linguagem musical. Passeava pelos acidentes empurrando sustenidos, tropeçando em bemóis, dobrando compassos até atirar-se em qualquer linha. Pensava: agora vou ser tocada. Triste ilusão. O maestro sacudia a batuta e dava início ao concerto. Ia tudo dando certo: os violinos gritavam fino e os cellos respondiam-lhes baixo. Os fagotes, oboés, pistons e clarinetes puxavam o choro dos trombones. Os tambores ralhavam grosseiramente. E ela ali, muda e estática, a espera da ordem do maestro. Chegava a sua vez, mas tudo desabava. Desafinava, e os instrumentos começavam a brigar. O maestro, furioso, pegava uma borracha e corrigia a pauta. Lá ia ela rolando com sua solidão.
    E a vida continuava a mesma. Um passeio entre instrumentos, um sonho irrealizável e mil sons na cabeça. Não se sentia mais uma nota musical. Era um pequeno desenho preto que rolava em sons confusos. Quando uma orquestra afinava os instrumentos ela corria de um lado a outro, perdida.
     Um dia parou sobre uma estante. Procurava um canto pra dormir e encontrou uma partitura. Surpresa total: era uma sinfonia por completar. Vibrou, pulou, voltou ao princípio e começou a solfejar. Foi aprendendo aos poucos a melodia. Inchou de alegria e tornou-se uma nota breve. Um dó maior. Espremeu-se entre as fusas o virou sol sustenido. Olhou para o compasso e resolveu ser semicolcheia, um lá menor. Bemol. Podia ser o que quisesse. O grande compositor aprovaria sua colocação. Pulou na partitura e soltou-se entre as linhas. Dormiu feliz esperando o grande dia do concerto.
     A batuta bateu três vezes e soou um imponente acorde. Os sons cresceram numa melodia incrível, forte. Metais, couros o cordas discursavam, conversavam, sussurravam. Desenrolou-se uma melodia. histórica.
     Chegou sua vez e ela entrou no compasso. Um tom infinito elevou-a muitas oitavas acima. Allegro, adagio, fortissimo, alta, baixa... Passeou pela escala e esta até hoje sendo o meio, a parte mais inspirada de uma sinfonia eterna. Agora faz parte do concerto do amor.

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