Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sexta-feira, 25 de maio de 2012

QUIPROQUÓ COM COBRA CRIADA

     Há 15 anos, em maio/junho de 1997, tive um quiproquó com um colunista da Zero Hora. Antes de dizer com quem e sobre o que foi, permitam-me explicar o que é quiproquó.
     De acordo como dicionário Houaiss, quiproquó é um substantivo masculino que significa: 1. (Rubrica: história da medicina) - livro que existia nas farmácias para indicar as substâncias que deveriam substituir as receitadas pelo médico, caso a farmácia não as possuísse; 2. (Derivação: por extensão de sentido) - engano, erro que consiste em se tomar uma coisa por outra; equívoco; 3. (Derivação: por metonímia) - a confusão criada por esse engano.
     A palavra deriva da expressão latina Quid pro quo, que significa “tomar uma coisa por outra”. E foi neste sentido que o assunto se (des)enrolou.
     Quanto ao colunista, trata-se do mega-adjetivável Paulo Megalômano Sant’Anna. Eu de um lado; ele de outro; e um redator babaca no meio, causador do quiproquó.
     Eis os fatos.
     Em sua coluna na edição de ZH do dia 27 de maio de 1997, Sant’Anna escreveu que um repórter de uma emissora de rádio do interior era um dos “dois únicos” radialistas gaúchos que “pronuncia” a palavra necropsia corretamente. Percebi três coisas estranhas na frase: além da questão da concordância, penso não existirem “dois” únicos e sei que ambas as formas (necropsia e necrópsia) são correntes e corretas. Resolvi, então, escrever para a seção SOBRE ZH, que nem sei se ainda existe, corrigindo o colunista sabe-tudo.
     Começou o quiproquó. Claro que as correspondências encaminhadas a um veículo passam por alguém (seria um jornalista?) que, depois de selecionar as que serão publicadas, edita-as. E a pessoa em questão fez o maior estrago, invertendo a ordem dos fatores e alterando o produto. O meu e-mail saiu assim publicado no dia 10 de junho:

     Paula Sant’Anna disse (ZH de 27 de maio) que determinado repórter de uma emissora de Passo Fundo é um dos “dois únicos” radialistas gaúchos que “pronuncia” a palavra necropsia corretamente. Em primeiro lugar, não identificou quem é o outro radialista. Em segundo, não existem “dois únicos” (assim como não há três metades). Em terceiro (o erro mais grave), Sant’Anna escreveu que o tal radialista é um dos que “pronunciam” e não um dos que “pronuncia”. Se o rádio ensina o povo a falar, o jornal ensina-o a escrever*. A concordância é obrigatória no jornal.

(*na sua crônica, Sant’Anna falara sobre a importância de um radialista falar corretamente, porque, segundo ele, o rádio ensina o povo a falar)

     Deu merda. Ao editar meu texto, o cara (devia ser um estagiário) inverteu a ordem das palavras pronuncia e pronunciam. Originalmente eu dissera que “... Sant’Anna escreveu que o tal radialista é um dos que ‘pronuncia’ e não um dos que ‘pronunciam’”.
    
Não deu outra. Virei o assunto da coluna do Sant’Anna dias depois de o meu e-mail ter sido publicado. No dia 14 de junho ele veio com isso:

Três metades e dois únicos

     Não ia responder à carta enviada pelo leitor Aldo Luiz Jung à interessante seção Sobre ZH, em boa hora implantada no nosso jornal, publicada no dia 10 de junho corrente. Mas uma outra carta de uma leitora, Marlise Cardoso, indignada com a clamorosa injustiça de que fui vítima, impeliu-me a bradar contra o despropósito.
     De uma crônica em que eu elogiava um radialista por falar corretamente o português, o senhor Jung pinçou o que ele julgava fossem dois erros meus. Levantou-se contra a minha expressão dois únicos radialistas, dizendo que “único é um só”. Se único fosse sempre um só, meu caro senhor Jung, não se poderia levar a palavra para o plural. Qualquer pessoa ou coisa ou circunstância que seja somente a uma outra, será também única, por diferenciarem-se ambas dos demais. Desculpe, senhor Jung, mas o senhor se quebrou.
    
Mas para pior mal ainda do senhor Jung, ele asseverou que não existem "dois únicos", assim como não podem existir "três metades". Pois eu quero arrasar o senhor Jung dizendo a ele que ainda anteontem eu cortei três laranjas pela metade, chupei três metades e minha filha chupou as outras três metades. Viu, senhor Jung, como uma laranja e meia podem ser ao mesmo tempo três metades? Eu não posso entender como é que o senhor não saca coisa assim tão primária?
    
Finalmente, para culminar o momento azarado que o senhor Jung escolheu para meter o pau no meu português pela sua carta, ele incorreu numa terceira mancada: classificou de completamente errada a minha expressão "um dos que pronunciam corretamente a palavra necropsia", afirmando que o correto é "um dos que pronuncia". No entanto, se tivesse escolhido qualquer das duas formas, não caberia ao senhor Jung corrigir-me.
    
Lamentável, senhor Jung. Não era seu dia. Os professores Hildebrando A. de André (Gramática Ilustrada) e Nélson Custódio de Oliveira (Português ao Alcance de Todos) afirmam em suas obras que, quando o sujeito estiver representado pela expressão "um dos que", o verbo vai para o singular ou para o plural, como quiser quem escreve. E o nosso professor de português aqui da casa. Adalberto J. Káspary, define que o mais aconselhável é usar no plural, embora esteja também certo o singular ("Sou um dos que mais anima” ou "Sou um dos que mais animam", ambos corretos, Mr. Jung).
    
Depois desta goleada de três a zero, quero dizer ao senhor Jung que esta minha vitória estrondosa sobre ele não tem nenhum mérito: é um triunfo do profissional sobre o amador. Eu lido profissionalmente com a língua pátria há decênios e o senhor Jung deve ser uma criança que ainda está se alfabetizando.
    
Mas a julgar pelo seu elogiável interesse gramatical, o senhor Jung tem enormes possibilidades de dominar o léxico na maturidade. Só lhe dou um conselho: outra vez que for terçar armas sobre português, escolha como adversário um iniciante como o senhor. Não se volte contra ninguém como eu, que já sou cobra criada na matéria: dispute nas divisões inferiores primeiro, como o Guga Kuerten humildemente fez, depois pode ser que o senhor tenha chance de desafiar a nós, os 20 primeiros do ranking.

     Ao que, sem mais, respondi-lhe:

     Por favor, imprimam este e-mail e entreguem aos cuidados de Paulo Sant'ana, mas sem intermediação de um “copydesk”.

     “‘Errar’ é humano...
     Mas ninguém gosta de comprovar sua natureza humana por esse caminho. Nem mesmo quando o erro é de Português. Vem sempre uma frustraçãozinha danada se a gente erra, mesmo sabendo que se comunicou.”
(OLIVEIRA. Edison de. Todo Mundo Tem Dúvida, Inclusive Você. Porto Alegre: Gráfica e Ed. Do Professor Gaúcho. 186p.)

     Prezado profissional

     Vamos por partes, como dizia o esquartejador.

Único. [Do lat. Unicu.] Adj. 1. Que é um só. 2. De cuja espécie não existe outro. 3.
Exclusivo; excepcional. 4. A que nada é comparável. 5. Superior a todos os demais.
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira).

ÚNICO, adj. Um; que é só no seu gênero ou espécie, que não tem outro igual a si; singular, que não tem par, desacompanhado de outro.
(Caldas Aulete).

     Nas circunstâncias desses verbetes, não me quebrei, meu caro e único profissional. Apoiado por dois laterais do quilate de Aurélio e Caldas, gol do meu time: 1 X 0.

Metade. [Do lat. Medietate, ] S. f. 1. Cada uma das duas partes iguais em que se divide um todo: metade de uma laranja; a metade do caminho...
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira).

METADE, s. f. cada urna das duas partes que resultam de um todo dividido exatamente pelo meio...
(Caldas Aulete).

     Compreendo teu jogo. O teu todo é formado de três laranjas, ao passo que o meu universo é de uma só laranja. A metade do teu todo, por óbvio, são três metades de três laranjas; a do meu, apenas duas, mas de uma só laranja — justamente aquela a que me referi na carta.
     Entendo, também, a tua confusão no assunto: não deves ter estudado a tal de matemá­tica moderna ou a teoria dos conjuntos, dos universos, tampouco deves ter ajudado tua filha (não sei a idade dela ou se tens outros filhos) a fazer os temas dessa matéria. De mais a mais, isto é uma coisa tão primária, nossos filhos a estudaram no primeiro grau. Quando nós fizemos o primário, que é como se chamava naquele tempo uma parte do atual primeiro grau, nem se estudava isso.
     Acho que a tua tática não me derrubou. Tentaste fazer uma linha de impedimento, mas teu zagueiro foi menos eficiente que meu atacante: 2 X 0.
     Por fim, caro Sant'ana, devo explicar que minha carta foi muito mal “copidescada” por um dos profissionais que fazem isto em ZH. Não deves lembrar o texto exato da tua crônica, caso contrário terias percebido a confusão que o
copydesk criou. Na verdade, disseste na crô­nica “um dos dois únicos que pronuncia”; eu rebati dizendo que deveria ser “um dos dois úni­cos que pronunciam”. Só que o profissional que redigitou o meu e-mail escreveu exatamente o contrário, ou seja, que tu terias dito “pronunciam” e eu, “pronuncia”. Viste que confusão o teu, ou melhor, o profissional de ZH criou? E quando digo que não lembras do teu texto falo com propriedade. Na tua réplica publicada sábado, dia 14, dizes assim: “...classificou de completamente errada a minha expressão ‘um dos que pronunciam corretamente a palavra necropsia’, afirmando que o correto...”. Saliento: a expressão que usaste foi: “um dos que pronuncia corretamente a palavra necropsia”.
     Vou anexar a esta carta o meu e-mail original e o que saiu publicado. Procure ler a tua crônica de 27 de maio.
     A propósito deste assunto, do mesmo livro do Édison de Oliveira do qual copiei a cita­ção do começo desta carta, extraí o seguinte:

     “É APENAS UM, MAS LEVA O VERBO PARA O PLURAL

     A expressão ‘um dos que...’ significa ‘um dentre os quais’. Assim, quando dizemos, por exemplo, ‘Um dos fatores que mais nos prejudicam é a presunção’ o sentido é: ‘Um dentre os fatores que mais nos prejudicam é a presunção’. Por isso é que o verbo (neste caso ‘prejudicar’) pode ir para o plural. Ele concorda com o termo ‘quais’ (plural) e não com o termo ‘um’ (singular)”
(OLIVEIRA. Edison de. Todo Mundo Tem Dúvida, Inclusive Você. P.145)

     Para não deixar assim, pesquisei também em Gramática, de Faraco & Moura (13ª edi­ção, 1994, p. 402), e verifiquei que ambas as formas são aceitas. Dizem eles que numa oração principal onde aparece a expressão “um dos”, seguida ou não de substantivo, mais “que”, o verbo vai para a 3ª pessoa do plural ou fica na 3ª pessoa do singular. Exemplo:
     O professor C. V. é um dos que estão deixando o seu secretariado. O professor C. V. é um dos que está deixando o seu secretariado.
     Mas, como diz Adalberto J. Káspary, o mais aconselhável é usar no plural (como eu disse que era o correto), embora seja também certo o singular (como tu o escreveste na crôni­ca).
     Nesta eu me quebrei: achei que o gol tinha sido válido, mas me pegaram em impedimento e o anularam. Portanto, continua 2
X 0.
    
A par dessas questões técnicas, tens razão, Sant'ana, em classificar como elogiável o meu interesse gramatical. Foi só o que me moveu ao ousar criticar a tua correção. Contudo esqueci a quem estava criticando e cutuquei (o verbo é “cutucar” e não “cotucar’, como afir­maste em Sala de Redação outro dia) a fera com vara curta e te coloquei no mesmo nível de outros profissionais desse jornal, como os
copydesks que tentam resumir as cartas que rece­bem dos leitores e, cortando frases e termos, confundem tudo. Eu não soube ser “humilde” como o Guga e como tu, que humildemente te classificas como “cobra criada”, “profissional que lida há decênios com a língua pátria”, “um dos 20 primeiros do ranking”. Realmente essa tua humildade me comove: tu és único; não há ninguém como tu; dessa espécie não existe outro, és um só; nada e ninguém se compara a ti; és superior a todos os demais; e, assim mesmo, continuas humilde.
     Quanto ao meu amadorismo e o teu profissionalismo tenho a dizer que é muito fácil ser profissional em 60cm/coluna (ou 390cm2) e em corpo 12, ao mesmo tempo em que é muito difícil ser amador em 6cm/coluna (ou 39 cm2) e em corpo 9.
     Devo salientar que para criança já não sirvo: confesso que tenho 47 anos. Para amador tampouco: eu já era maduro quando, em 1978, me formei em jornalismo. Depois disso, já fui redator e editor de duas das melhores rádios de Porto Alegre, uma delas a tua Gaúcha. Sabes por que desisti da profissão? Porque percebi que jamais haveria lugar para dois únicos Paulos Sant'anas: seria eu ou tu. Foste tu. Uma das metades venceu.
     Temos, porém, algumas coisas em comum: além de sermos gremistas e de fumarmos muito, consegui aparecer na coluna inteira de um dos 20 primeiros do ranking e num sábado.

Até o próximo jogo. Cordiais saudações.

Aldo Luiz Jung

     Não sei se ele chegou a receber este e-mail. Sei, contudo, que tive apoiadores. Abaixo duas cartas enviadas à coluna SOBRE ZH.

     Como faço diariamente, com prazer, li a crônica de Paulo SantAna do dia 14 de junho ("Três metades e dois únicos") em que ocupa a coluna inteira para replicar a crítica que lhe fez o leitor Aldo Luiz Jung em cin­co linhas, que também li, sobre o emprego e­quivocado de plural sintático. Lamento que Paulo Sant'Ana, um corifeu do jornalismo rio-grandense, reconhecido por todos, tenha se excedido na réplica ao revidar de forma cruel e violenta uma simples critica.
    
Episódios como esse demonstram o po­der discutível da imprensa. Com efeito, Paulo Sant'Ana, um ente insuspeito, utiliza sua coluna diariamente para criticar o que não considera correto, quase sempre com razão. Porém, quando um reles mortal. lei­tor seu. ousa criticá-lo, recebe dele desme­dida e desproporcional critica. Pisaste na bola, meu caro Paulo Sant'Ana, a humilda-de no sucesso continua sendo o corolário da grandeza.

Paulo Fernando Martins
Advogado, Novo Hamburgo (RS)

 

     O Sr. Paulo Sant'Ana rebate (ZH de 14 de junho) a “clamorosa injustiça de que foi vítima” e “brada contra o despropósito” de um leitor. Vejam o que faz a falta de pauta... O Sr. Sant'Ana, que “lida profissionalmente com a língua pátria há decênios”, parece se dar pouco com a ÉTICA. Acho que há muito não tem adversários para destilar seus “triunfos profissionais”: expressões como “pois eu quero arrasar o senhor Jung”, “depois dessa goleada de três a zero” e “nós, os 20 primeiros do ranking” são as de um desportista frustrado. Pelo visto, o senhor “cobra criada” gosta de jogar nas várzeas, golear os Barranco Sport Clubs e achincalhar seus leitores por causa de pequenas esgrimas lexicais. Belo ranking, senhor Sant'Ana!

Roberto Alejandro Wild
Jornalista, Porto Alegre (RS)

     Enfim, sem reler sua crônica original, que motivou o envio de minha primeira carta, o “cobra criada que lida há decênios com a língua pátria” embarcou na babaquice do redator e confirmou que realmente estava enganado quanto à concordância.

3 comentários:

vidacuriosa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
vidacuriosa disse...
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vidacuriosa disse...

Muito bom, meu amigo Aldo. Entendo o que sentiste porque eu também perdi meu tempo "caindo na asneira" de tentar ajudar os leitores de Paulo Santana. Como tu, atrevi-me a corrigi-lo. Mesmo tendo sido reservadamente, o resultado foi também muito desagradável. Ele escreveu na coluna a expressão "cachorro ovelheiro só matando", quando na verdade o ditado gaúcho é "cachorro ovelheiro que come ovelha, só matando" ou "cachorro que come ovelha, só matando". Ao dizer isso para ele, na saída do jornal, fui ofendido como se tivesse feito a ele uma grande injustiça. Ele vociferou para mim: 'O quê, tu não vais me corrigir! Tu tens que corrigir é o ditado gaúcho que é assim", além de uma série de impropérios. Aprendi que pessoas como ele a gente deve ignorar. Na semana seguinte, ele bateu no meu ombro e me falo: "Lembra daquela discussão que tivemos outro dia? Eu pensei e cheguei à conclusão de que tu tinhas um pouco de razão". Contei algo sobre o primeiro episódio no meu blog, no endereço
http://migre.me/9eimO