Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sábado, 6 de novembro de 2010

Aurélio



     Aurélio não era bem um dicionário, mas quase. Sabia um monte de coisas: previsão do tempo, cotação do dólar, as capitais de todos os estados brasileiros e de inúmeros países, a escalação atual e de todos os plantéis que foram campeões pelo Grêmio, que existe a palavra presidenta e, entre um sem fim de coisas, com quantos paus se faz uma canoa.
     Tinha duas coisas que Aurélio não sabia: relacionar-se bem com outras pessoas e usar computadores.
     Aurélio foi abandonado pela mãe biológica ainda bebê. Acharam-no num terreno baldio, numa cidade do interior gaúcho em que a maioria dos habitantes era de origem germânica. Junto dele estava sua certidão de nascimento sem nome do pai. O nome da mãe, por sua vez, estava riscado, assim como o número do registro e em que livro fora feito. Só se sabia que se chamava Aurélio.
     Um casal estéril, com idade acima do limite para ter filhos biológicos, recolheu-o no abrigo para menores, adotou-o, refez o registro e, em respeito, manteve o primeiro nome. Aurélio Becker passou a se chamar aquele bebê pardo de poucos meses.
     Os pais adotivos de Aurélio, de classe média, lhe deram todo o conforto. O menino usava boas roupas e estudou na melhor escola privada da cidade, desde o ensino fundamental até o médio (naquela época era outra classificação). Não sei se devido à origem germânica, no entanto, o casal não lhe proporcionava muito afeto. Em razão disso, o rapaz era solitário. Arredio, não tinha amigos na escola e até sofria um pouco de bullying.
     Quando terminou o ensino médio, Aurélio manifestou o desejo de transferir-se para a capital, onde faria vestibular, sem saber ainda para o quê. Os pais abriram-lhe uma conta no banco e providenciaram um pequeno apartamento, modestamente mobiliado, no Bom Fim. Trazendo na mala poucas roupas, alguns livros, um rádio portátil e a máquina de escrever com que fazia seus trabalhos escolares, desembarcou na rodoviária de Porto Alegre em 1982. Tinha, então, 17 anos, prestes a completar 18.
     Depois de instalar-se, deu uma volta pelo bairro. Na revistaria comprou um mapa da cidade e um jornal de concursos. Leu que em poucos meses haveria um concurso para agente administrativo na Inspetoria da Receita Federal de Porto Alegre. A exigência era segundo grau completo.
     Aurélio desistiu de fazer vestibular sabe se lá para o que e, desde os 18 anos, é funcionário público federal: agente administrativo. Seus pais adotivos, já falecidos, não se alegraram nem contestaram sua opção profissional. Nesses últimos 27 anos sua vida não tinha sido, até então, muito diferente do que era nos tempos do colégio, quando morava no interior. Não se casou, continuava sem amigos, era tratado com desconfiança e, por sua taciturnidade, motivo de chacota por parte dos colegas. De sua intimidade só se sabia o nome: Aurélio Becker.
     Trabalhava sozinho numa pequena sala que nem vista para a rua tinha. Além dos tradicionais bons dias, boas tardes e até logos, só falava com os colegas para responder-lhes como seria o tempo no fim de semana, qual era o número do telefone da Delegacia da Receita Federal em Roraima, como se chamava o responsável pelos suprimentos, de Brasília, quanto valia o dólar no dia, etc. Vivia grudado no rádio de pilha e sua diversão era ir aos jogos do seu glorioso tricolor, o Grêmio.
     Quando a repartição se informatizou, Aurélio negou-se peremptoriamente a aceitar um computador. Disse que preferia continuar fazendo o que fosse necessário na grande Remington que tinha na mesinha auxiliar, e a qual tratava com tanto cuidado que, ainda hoje, parecia nova, como um objeto de decoração. Quando havia necessidade de distribuir eletronicamente algum memorando ou comunicado, datilografava o texto na Remington e ordenava que um dos estagiários “passasse a limpo” no computador.
     Mas eis que um dia não deu mais pra fazer esse esquema. Uma ordem superior determinou, também peremptoriamente, que Aurélio não poderia mais usar a Remington na execução das tarefas e sim um computador. E foi instalada na sua sala uma máquina com processador Intel Core i7 930 2.8GHz, 4GB de memória, HD 1TB, DVD-RW, Placa de vídeo ATI Radeon HD5770 1GB DDR5... Coisas que Aurélio não tinha a menor ideia do que seriam, mas que constavam da nota que teve que assinar.
     Pediu que um dos estagiários lhe ensinasse a usar tudo aquilo, e foi atendido. O estagiário, prevendo que algum desastre poderia acontecer, instalou no computador um moderno antivírus. Como o programa se atualizaria sozinho cada vez que o computador fosse ligado, achou que nem precisava avisar Aurélio. Mostrou a ele os passos básicos para manuseio da máquina e uso do processador de textos, prometendo avançar aos poucos nos ensinamentos.
     Nos dias que se sucederam, Aurélio já estava frente ao computador quando o estagiário chegava. Um tropeço aqui, outro ali, mas o compenetrado estudante ia aprendendo a lidar com a máquina. Depois de uma semana, Aurélio perguntou ao estagiário quem era o fabricante daquilo que chamavam de antivírus. O rapaz informou o nome, mas nem se importou em saber por que o chefe queria saber. No dia seguinte, perguntou como poderia entrar em contato com o tal fabricante. O estagiário disse que Aurélio deveria entrar no programa que no item Ajuda, na opção Sobre, encontraria um telefone, um email ou, ainda, o endereço de um site.
     Certo dia em que Aurélio estava fora da sala, o estagiário entrou. O programa de email estava aberto e na tela estava escrito o seguinte:


Prezados Senhores

Meu nome é Aurélio Becker, sou servidor da Receita Federal e, em primeiro lugar, venho, por este meio, cumprimentá-los pelo excelente programa antivírus fabricado por Vossas Senhorias.
Em segundo lugar, devo deixar registrado um problema de saúde que estou manifestando, justamente devido a vosso programa. O problema a que me refiro é a insônia. Tenho passado as noites e madrugadas praticamente acordado, pensando. Em meus devaneios, viajo até a sede de vossa companhia, que nem sei onde fica, e vasculho todas as salas em busca de uma mulher. Eu não a conheço, apenas imagino como seja sua aparência. Por isso, procuro-a em algum ambiente que, na minha ideia, concebo como sendo uma sala não muito grande, acarpetada, com uma mesa sobre a qual há um microfone. Assim passo as noites, procurando-a, sem encontrá-la. Nunca passei por isso, insônia, com tanta intensidade, assim como também nunca experimentei apaixonar-me.
Finalmente, para tentar acabar com minha angústia, gostaria que os senhores me informassem o nome e uma forma de contato com a mulher cuja voz macia e determinada me diz todas as manhãs, quando ligo o computador:

— As definições de vírus foram atualizadas.


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