Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sábado, 29 de janeiro de 2011

Desconhecido de mim

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     Há anos, quando meus filhos eram pequenos e morávamos no Bom Fim, ia passear no brique da Redenção com a família. De cada 10 pessoas que por nós passavam, metade me cumprimentava. Minha mulher de então dizia que eu poderia tranquilamente me candidatar a vereador. Seria eleito.
     Eu só ria. Alguns eu conhecia. Outros, nunca vira mais gordo.
     Com o tempo, foi diminuindo o número de pessoas que me cumprimentava. Decerto porque, envelhecendo, minhas feições se alteraram e deixei de ser parecido com alguém que pelo menos três daquelas pessoas que me cumprimentavam antes achavam que eu era.
 
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     Hoje, estou noutro bairro, sem brique, sem minha família e sem redenção.
     Estava na sacada e vi um vizinho da rua aproximar-se. Vinha caminhando tranquilamente pelo outro lado da calçada, assoviando e olhando distraidamente para os lados. Viu-me e meneou levemente a cabeça como um cumprimento, sem interromper sua melodia. Repeti o gesto e acrescentei um breve aceno.
     A rua não é movimentada. Por ali passam poucas pessoas, nos dois sentidos. Algumas eu conheço só de ver passar. Diariamente.
    Percebi que não tinha mais cigarros e fui ao mercadinho, na quadra de baixo. Cruzei com outras pessoas no caminho. Todas desconhecidas, a quem nem olhei e que também não me olharam. O mercado estava razoavelmente cheio. Como não precisava andar por entre as gôndolas, fui direto pra fila da caixa. Na minha frente havia duas senhoras, certamente moradoras do bairro, mas que eu não conhecia. A moça da caixa eu conhecia, mas só de ali comprar cigarros vez que outra. Respondi ao seu gentil bom dia e pedi o que queria.
     Na volta, passei por mais pessoas. Algumas eu conhecia só de por ali passar, vez que outra, e sabia morarem naquela rua. Não nos olhamos.
     Na entrada do prédio encontrei um vizinho do mesmo andar que saía e que ficou segurando o portão para eu entrar. O diálogo não poderia ter sido mais trivial:
     — Bom dia, professor – disse o vizinho. E esse calor?
     — Bom dia. Tá brabo – respondi.
     Entrei e ele fechou o portão atrás de mim. Era dia de faxina no edifício. Cumprimentei a moça da limpeza, a mesma de todas as semanas, mas de quem eu não sabia o nome. Ao subir a escada, mais um encontro casual. Era uma vizinha do andar de cima. Novamente um diálogo corriqueiro se fez ouvir.
     — Olá, seu Walter. Bom dia. E a dona Bela, está bem? Com esse calor acho que tá todo mundo meio mal, né? Mas vai melhorar assim que chover!
     Aquilo não era apenas um cumprimento. Era vontade de falar com alguém. Eu, sem parar de subir; dona Jandira, sem parar de descer. Quase não ouvi o final do seu “discurso”, mas encadeei as respostas na mesma sequência, sem saber se ela tinha ouvido.
     — Bom dia. Tudo bem. É. Acho que não passa de hoje.
     Se fosse um filme com legendas, o profissional que as faz não saberia como resolver. Mas não importa se ouvimos um ao outro ou se nos entendemos. O importante são as convenções. Afinal, vizinho é vizinho e é preciso cumprimentá-los.
 
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     Desconhecidos: pessoas de quem, mesmo morando no mesmo bairro, na mesma rua, não sei o nome nem sabem o meu.
     Conhecidos: pessoas com quem vivi ou vivo, com quem trabalho, que moram no mesmo bairro, na mesma rua, no mesmo prédio e de quem se conhece pelo menos o nome, mas que, muitas delas, não sabem o meu..
     Elas têm pai e mãe? Têm filhos? De onde vêm? Elas sabem se tenho pais e filhos? Sabem se preciso de alguma coisa? Como estou me sentindo?
     Conhecer alguém é algo muito relativo. Há cinco anos, quando terminei o casamento de 27 anos por ter me apaixonado por uma mulher que recém conhecera, minha ex-esposa — aquela que disse que eu deveria me candidatar a vereador — disse que “achava” que já me conhecia e que jamais imaginaria isso de mim.
     Nessa mesma época, entrei numa rede social da internet que estava na moda. Era um tempo em que se precisava ser convidado para fazer parte dela. Meu filho me convidou. A partir daí, comecei a conectar-me virtualmente a conhecidos que encontrava na mesma rede. Amigos, amigos de amigos e assim por diante. O número de contatos crescia a cada dia, assim como de visitas a meu perfil.
     Há poucos dias ganhei um selo dessa rede por ser um dos mais antigos participantes. Resolvi, então, fazer uma auditoria nos meus conhecidos da rede. Muitos eu nem sabia como e por que haviam se instalado lá. Com muitos mais nunca tinha trocado um recado. Outros com os quais só me comunicava nos dias de aniversário, isso porque o software da rede avisava. A maioria não respondia. Poucos eram os que me cumprimentavam no meu aniversário. Apaguei quase todos. Sobraram meus filhos, minha atual mulher, o filho dela (que mantive por respeito a ela) e um que outro colega de trabalho ou de lazer.
     Entre os que sobraram, só conheço plenamente (eu acho) e só me conhecem os meus filhos. De resto são apenas conhecidos — pra não dizer desconhecidos — de quem sei o nome porque está lá escrito.
 
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     Voltando aos (des)conhecidos de hoje. Entrei no apartamento e fui direto lavar as mãos. Tinha andado na rua, mexido em dinheiro, etc. Molhei as mãos, ensaboei-as, enxaguei-as e sequei-as sem olhar no espelho. Eu sabia que minha imagem estava ali. Mas, assim como fiz em relação aos desconhecidos com quem cruzei na rua, ignorei-a. Poderia ter feito o mesmo que fiz com o vizinho da rua e meneado a cabeça pra minha imagem. Até ter dado um aceno. Poderia ter dado bom dia, como a moça da caixa do mercado, a faxineira ou os vizinhos do prédio. Com certeza seria correspondido. Se falasse do tempo, no entanto, não obteria resposta. Mas não faria diferença. Quando se fala do tempo não se quer, na verdade, a resposta que o interlocutor possa dar, a menos que ele seja meteorologista. Só se quer falar. Só se quer sentir acompanhado. Saber que existe outro no mundo além de você.
     É uma coisa mais ou menos como seus contatos numa rede social da internet. Você sabe que estão lá porque vê que se comunicam com outros, porque seus perfis têm fotos, porque há um nome ou apelido lá escrito.
     Voltei ao espelho e me encarei. Mas, por mais que me olhasse, me desconhecia. Sentia-me só.
     A porta do apartamento se abriu. Era minha mulher que chegava. Ela tinha ido à casa da mãe dela, pertinho daqui.
     Novamente um notório e retórico diálogo.
     — Oi! Já voltaste?
     Eu teria certeza de que estava ficando louco se Bela me respondesse que ainda não tinha voltado.
     — É. Já são onze e meia. Vou fazer o almoço.
     Ufa! – pensei – ainda bem que ela levou ao pé da letra minha pergunta e deu a resposta certa.
 
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     Em pouco menos de uma hora, cruzei com várias pessoas. A maioria desconhecidas, algumas conhecidas de vista, um vizinho de rua dois de condomínio, uma faxineira semanal e minha mulher, com quem há poucas horas tinha passado mais uma de todas as noites dos últimos cinco anos. Dessas pessoas, quem eu conhecia e quem delas me conhecia?
     Posso dizer que conheci minha família de 27 anos — apesar de a ex ter dito que “achava” que me conhecia — porque tinha, então, uma identidade: era o marido da fulana, pai da sicrana e do beltrano e todas as implicações que essa rede familiar proporciona. Havia parentesco. Além disso, por ser marido e pai, fazia parte de uma grande rede social. Os conhecidos de fulana, sicrana e beltrano também eram meus conhecidos. Eu sabia quem eram seus pais, seus irmãos, seus filhos, suas famílias.
     Depois que conheci e me apaixonei por Bela, o “conhecer” tomou outra forma. Hoje, percebo que nesses últimos cinco anos perdi aquela referência familiar. Sinto-me um desconhecido, um intruso numa família que se formou sem mim, a ponto de o enteado (do latim antenatu, nascido antes) me classificar apenas como o “namorado da mãe dele”. Certamente os que com ele têm laços de sangue me classifiquem apenas pelo nome: o Walter... Mas o que é o Walter?
 
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     — E foi assim que, hoje, não reconheci aquele do espelho a minha frente e percebi que sou só. Por isso estou aqui, doutor. Sou um desconhecido meu. Quero voltar a me conhecer, a conviver comigo, a saber do que preciso, para onde vou, o que vou fazer, quais meus planos, quais são meus sentimentos...
     — Muito bem. Interessante, mas, agora, fale-me um pouco sobre sua mãe.
 
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Espio no espelho o espião
que existe em mim
mas ei-lo que logo se esconde
atrás da imagem
que espio em mim.

(Flávio Moreira da Costa - O espião)

Um comentário:

Carol Matias Jung disse...

Sabes que ainda não me acostumei com o novo sobrenome? Cada vez que assino, sinto-me desconhecida. Sensação estranha, perda de identidade talvez (?). Coisas da vida. Coisas do Aldo.