Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sábado, 7 de maio de 2011

Não requer prática nem habilidade, pode-se fazer com a maior facilidade!

O título desta postagem é um antigo bordão que costumava ouvir dos camelôs do centro de Porto Alegre, na minha adolescência. Usei-o como título de uma reportagem que fiz em 1977, quando cursava o 6º semestre de jornalismo na PUC. O trabalho ganhou primeiro lugar em reportagem para estudantes, no I Prêmio Anual do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Porto Alegre. A matéria foi publicada no jornal Comunicação, informativo do Sindicato, em dezembro daquele ano. Achei um exemplar e reproduzo abaixo a reportagem.

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“É o gigante, o balão japonês, olhaí! Óia a lixa pra péis, pra senhora e cavalheiro! É a novidade, é o raibanspeiado! A moda do Rio e São Paulo, agora aqui. A mais prática carteira pra documento: dá pra enganá até ladrão porque tem malandrage. Olhaí o balão japonês, a lixa pra péis, é unissex o raibanspeiado, a novidade, porta-documentos, lixa, óculos, gigante, o balão japonês...”

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     Misturando-se às vozes de quem passa, ao estridente som das discotecas e aos berros dos fanáticos religiosos está o pitoresco pregão dos camelôs. Suas vozes metálicas anunciam, na linguagem do povo, os seus coloridos produtos ao som da novidade. E assim vivem e fazem viver a família.
     De vez em quando, a fiscalização da SMIC (Secretaria Municipal da Indústria e Comércio) faz com que esses vendedores não registrados levantem-se ligeiro, carregando a mercadoria. A pena para quem não tem o registro é ter o produto do seu sustento apreendido. E pra retirá-lo deve pagar uma taxa.
     O romantismo abrutalhado de seus pregões já se incorporou à vida da Rua da Praia, da Voluntários e da Otávio Rocha, onde há maior quantidade de camelôs. Um ao lado do outro, vão vendendo óculos escuros, lixas pra pés, naftalina, bijuterias, lenços, meias, brinquedos, carteiras, de tudo um pouco.

SÓ DÁ PRA FAZER ISTO

     A maioria dos camelôs escolheu essa profissão, muitas vezes perigosa, por não ter condições de fazer outra coisa, como Matias, que há 22 anos vende na rua. “Já vendi de tudo um pouco e nunca fui registrado. A papelada que eles pede é demais e, sendo doente como ... Há quatro anos estou encostado no INPS e só disso não dá pra vivê.” Matias não usa o “pregão” pra vender o seu peixe na Rua da Praia. “Eu fico aqui parado, os fregueis chega, fala comigo e compra. Este ponto é bom porque passa bastante gente. As lojas não se importam. Tem umas que até fazem questã que a gente trabalhe defronte que é pra cuidá os mau elemento que entra pra sacaniá eles. Vendo a gente aqui eles respeita.”
     Batista está começando na profissão e o motivo da escolha é o mesmo: não pode fazer outra coisa. “Faz um ano que trabalho nisso porque me quebrei todo: perna, costela... Então não tenho oportunidade pra pegá noutro serviço mais pesado. De veiz em quando eu saio, umas duas veiz por semana, e, a pau-e-corda faço uns biscate”. Batista também não é registrado, mas não tem medo da fiscalização, nunca foi pego. “Quando eu vejo os fiscal me levanto e saio”. Batista tem mulher e quatro filhos. O sustento da família é o resultado de seu dia-a-dia vendendo lenços e brinquedos. “Quando bom eu tiro uns cem, cento e pouco por dia”.
     E a mercadoria vai saindo. Gente olha, gente para, gente pechincha, gente compra. Há aqueles que, constantemente, estão numa roda de pessoas. A sua propaganda é interessante e o pessoal quer ver como funciona o produto. Geralmente é novidade. Há poucos dias, um novo artigo apareceu. É uma carteira para documentos e dinheiro, com muitos truques. Põe-se o dinheiro solto na carteira, vira-se e o dinheiro está preso. De um lado se vê bastante dinheiro; do outro, pouco. E o camelô vai explicando o truque. Muita gente fica um pouco confusa e o vendedor repete a operação. Muitas vezes, as pessoas compram a novidade sem nem saber usar direito. “Eu não sei, olhei, achei legal. Agora, em casa, dou uma treinadinha e tudo bem”.

É UM BOM SERVIÇO

     Nem todos os camelôs o são por necessidade, por serem doentes ou encostados no INPS. Jurandir trabalha no ramo porque gosta. “Estou com 28 anos e trabalho desde os 18. Não tenho profissão e, graças a Deus, aqui me defendo mais melhó do que se fosse trabalhá de salário mínimo. Quase sempre tiro cento e poucos cruzeiros por dia e pago 35 por mês pro sindicato. Quem não é regularizado é porque não tão por dentro de onde deve ir. E depois tem plobrema com a fiscalização”.
     Célia acha que é um serviço bom. Estudou até a 7ª série, parou e, agora, é camelô. Além disso, Célia inaugura um novo emprego: trabalhar em banquinha de camelô. “Eu trabalhava fora antes. Agora aqui, ganhando 60 cruzeiros por dia na banca do seu Francisco. Acho que o seu Francisco veve bem do negócio. Eu mesma abro, eu mesma fecho e ele só vem aqui, recebe o dinheiro e pronto. Tem dias que dá mais de duzentos cruzeiros; noutros, quase não dá. O seu Francisco tem carteirinha e tudo, e nesta semana ele caminhando pra botá o meu nome na carteirinha. Cruiz credo! Se a fiscalização chega, nem sei...”

AGRESSÕES

     “Os camelôs também são gente e têm o direito de trabalhar como todo mundo”. Assim Carlos Eisenhut Filho, presidente do Sindicato dos Vendedores Ambulantes e Feirantes do Estado do Rio Grande do Sul, fala dos camelôs e das agressões e intimidações que a categoria vem sofrendo ultimamente. “A SMIC, a Prefeitura e a Brigada Militar — explica Eisenhut — não são responsáveis pelas agressões que vêm sofrendo os vendedores ambulantes e os camelôs”. E denuncia: “o responsável é o senhor Alécio Ughini, diretor da Associação Comercial de Porto Alegre. Ele quer a retirada dos camelôs dos seus pontos de trabalho”. Mas o Sindicato só pode agir em favor daqueles que estão devidamente legalizados, que tenham alvará da SMIC e sejam filiados ao órgão de classe. “Se for necessário — diz Eisenut —, iremos às últimas consequências”.
     A profissão de camelô está devidamente regulamentada pela Lei Nº 3.187. Ela estabelece as condições para que o trabalhador seja regularizado. O primeiro passo é que seja cadastrado na SMIC e, depois, se sindicalize. Assim, ele receberá um crachá e um ponto para trabalhar.
     “São trabalhadores honestos e assim devem ser reconhecidos”, diz Eisenhut.

HONESTIDADE DUVIDOSA

     Mas há uma certa malícia na “honestidade” de alguns. Comop no caso daqueles cachorrinhos de brinquedo que só latem na mão do camelô. Com um apito escondido sob a língua, o vendedor faz o som ao mesmo tempo em que aperta o sifão que move o cachorro. O desavisado que compra, leva pra casa um cachorrinho mudo.
     Outros têm um esquema tão bem bolado que chega a ser um caso de marketing. Enquanto apregoa o seu artigo, o pessoal olha desconfiado. De repente, alguém se deixa levar. Logo, mais outro também decide comprar. E o pessoal começa a adquirir a mercadoria, incentivado pelos primeiros compradores. Passando um tempo, quando não há mais nenguém por perto, voltam os dois primeiros, devolvem a mercadoria e recebem de volta o dinheiro. Assim que o pregão chama mais gente, a operação recomeça.

O PROBLEMA DO CEGUINHO

O Arthur ainda é daqueles que fazem propaganda da mercadoria, mas honestamente, sem contar com qualquer esquema. A falta de visão talvez lhe tenha deixado aquele ar de paciência. Na Rua da Praia, alheio à passarela de urgentes executivos, misses de verão e paqueradores inoportunos, vai anunciando a sua naftalina, com voz forte e pausada. E sópara pra fumar de vez em quando.
     “A gente vive porque não tem outro recurso de negócio. Não dá pra fazer boas vendas, pra trazer conforto pra dentro de casa como seria interessante. Tenho minha senhora e um gurizinho pra sustentar. Ganho também do INPS, mas não chega. Não me associo ao Sindicato porque, com o que ganho na rua, não dá pra pagar a mensalidade. Algum tempo atrás, quando o prefeito quis pôr as primeiras bancas pra cegos, eu fui um dos contemplados com um ponto. Aí fui trabalhar numa firma e perdi o ponto. Quando eu voltei, o prefeito tinha cancelado os pontos de banca. Quem tinha, tinha; quem não tinha teve que ir vender na rua. Se eu tivesse uma banquinha de bijuterias ou de frutas, conforme outros cegos têm aí, tranquilo, dava pra pagar o Sindicato e ainda levar um melhor conforto pra casa. No verão dá pra defendê uns 60 por dia, mas, no inverno, a gente tira 30 cruzeiros, quando muito”.
     Com a escuridão nos olhos, Arthur solta o berro metálico do seu pregão:

“É naftantzantdrop. É dois cruzeiro o pacote. É con-tra-tra-ç’e barata. É dois cruzeiro o pacote!”

     E os pregões que ainda restam, seguem anunciando de tudo um pouco. Os recursos ficam cada vez mais sofisticados. Os antigos e criativos camelôs, com seus textos rebuscados, deixam o ponto para a gurizada arisca. A burocracia dos alvarás toma conta do romantismo folclórico. A pressa atropela o pitoresco. Quem não lembra da antiga Praça Parobé, da cobra Catarina e do lagarto José?

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     Desde fevereiro de 2009, os camelôs do centro de Porto Alegre estão abrigados no que era pra ser inicialmente o Centro Popular de Compras, mas que acabou sendo conhecido como “Camelódromo” e chamado de “Shopping do Porto”, apesar de certo deputado querer acabar com os estrangeirismos.
     O projeto, de iniciativa público-privada, tirou das ruas cerca de 800 camelôs e lhes concedeu um lugar com toda a infra-estrutura necessária para a prática do comércio. Localizado na Rua Voluntários da Pátria, o camelódromo comporta 800 lojas, praça de alimentação, lotérica, caixas eletrônicos, restaurante temático e estacionamento. Além disso, tem duas passarelas com vista panorâmica sobre a movimentada Avenida Júlio de Castilhos.
     Em 2010, o Shopping do Porto venceu Prêmio Top de Marketing da ADVB/RS na categoria Pólos Comerciais.
     Os camelôs — como eram chamados antigamente os vendedores ambulantes — são, hoje, prósperos empresários, locatários de lojas em um shopping, e já não anunciam mais “raibanspeiados”.
     Ficou curioso pra saber o que seriam “raibanspeiados”? Trata-se de óculos de sombra, comumente chamados de Ray Ban — que é uma marca e não um tipo de óculos —, com as lentes espelhadas, surgidos na década de 70.

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