Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Penitência budista


Assim como as pedras preciosas são tiradas da terra, a virtude surge dos bons atos e a sabedoria nasce da mente pura e tranquila. Para se andar com segurança, nos labirintos da vida humana, é necessário que se tenham como guias a luz da sabedoria e virtude.
Sakyamuni

     Eu estava zen desde domingo. Por isso não escrevi antes sobre a aventura que narro hoje.
     Pois foi no domingo, dia 06, que resolvi visitar o templo budista Khadro Ling, a 7km de Três Coroas, numa região circundada por Igrejinha, Taquara, São Francisco de Paula, Canela e Gramado. Para situar o leitor: o Khadro Ling é a sede do Chagdud Gonpa Brasil, uma organização sem fins lucrativos destinada ao estudo e prática do Budismo Tibetano. Uma comunidade de praticantes budistas mora no local e em suas terras fica o primeiro templo tibetano tradicional da América Latina.

     Em 1991, Chagdud Tulku Rinpoche visitou o Brasil pela primeira vez. Em 1994, foi convidado para vir ao Rio Grande do Sul. Encantado com a beleza da serra gaúcha e com o interesse dos praticantes pelo budismo, Rinpoche procurou terrenos na região para estabelecer um centro. Em 1995, Rinpoche mudou-se para onde hoje está o Khadro Ling. O centro contava apenas com poucas construções. Em novembro de 2002, durante um retiro com a presença de 250 praticantes de todo o país, Rinpoche morreu após dois dias de ensinamentos e intensa prática espiritual. Incansável, ele ensinou até tarde da noite de sábado, 16 de novembro. Sua morte aconteceu na madrugada do dia 17 de forma extraordinária. Por seis dias, ele permaneceu em um estado de profunda meditação antes de a consciência deixar seu corpo.
     Tudo sobre o Khadro Ling pode ser visto em kl.chagdud.org, fonte do parágrafo acima.
     Mas vamos à aventura que me deixou zen.
     Surgiu a oportunidade de visitar o templo em uma excursão de um grupo de praticantes de Ioga. Não sou muito afeito a excursões, mas, enfim, era uma forma de conhecer o Khadro Ling e, ainda por cima, interagir com pessoas que não conhecia e, especialmente, me divertir. O ônibus sairia do local marcado às seis da manhã. Deveríamos estar no templo às 8h00 para assistir a uma cerimônia. Acordei às 4h30 para chegar a tempo. Fomos eu, minha mulher, uma irmã dela e minha sogra. Chegamos às 5h45; o ônibus não. Começou bem. O motorista precisou ligar para o celular da organizadora para saber como chegar ao local do embarque. Senti o drama.
     Quando o ônibus surgiu na esquina tive a pior das impressões sobre ele. Era um caquinho velho, provavelmente refugo de uma empresa grande, que fora comprado por essa "Qualquer Coisa Tur" da vida. Enfim, era o que tinha, a aventura já estava paga e não acordei às quatro e meia da madruga de um domingo pra desistir. Nos acomodamos fazendo cara feia para o cheiro de mofo e dos odores que vinham do sanitário do veículo.
     Já eram 6h20 quando o bólido da "Qualquer Coisa Tur" partiu. O ronco do motor até que era bonitinho. Parecia bem reguladinho. Aquele ruído contínuo do motor, o apito grave dos pneus contra o asfalto e meu sono me fizeram cochilar.
     Despertei desconfiado que o motorista estivesse perdido, pois diminuía razoavelmente a velocidade em cada entroncamento, como que tentando adivinhar pra que lado deveria seguir. Num determinado momento parou num posto de combustíveis e desceu. Da janela vi-o falar com um frentista, que lhe apontava uma direção e girava a mão pra lá e pra cá, esquerda, direita, indicando mudanças de rumo. Seguimos por mais um pouco de asfalto até entrar numa estradinha estreita de chão batido, em meio ao mato e com barrancos dos dois lados. Ah! E, ainda por cima, era subida. O ronco do motor foi ficando mais grave e forte. Terceira, segunda... primeira... Paramos. Sem explicações, o motorista começou a dar ré no ônibus. Nos entreolhamos assustados: imagina descer de ré aquele caminho! Mas ele devia saber o que estava fazendo. Andou mais um pouco de costas num terreno plano, parou, engatou uma primeira e foi firme. Acelerou tudo, colocou uma segunda... primeira... o ônibus começou a perder força e puf! Apagou o motor e não mais pegou. Quando desci ouvi o motorista falando ao celular com alguém da empresa, dizendo com o vocabulário dele que a subida era muito íngreme e que o carro perdeu a força.
     Seguimos a pé para a frente, sem saber por quanto tempo andaríamos naquela lomba empoeirada. Acho que caminhamos um quilômetro e chegamos a uma bela estrada asfaltada, a RS-20. Havia uma parada de ônibus cujo número era — pasme — 171! Parte do grupo seguiu estrada acima; a outra ficou parada na parada. A esperança destes logo foi recompensada com a chegada de um coletivo intermunicipal. A organizadora perguntou ao motorista se o ônibus nos deixava perto do templo e a resposta foi positiva. Embarcamos. Mais adiante o ônibus parou para que embarcassem os que se aventuraram a seguir a pé pela estrada. Seis paradas depois estávamos na parada 177, à beira do caminho que leva ao Khadro Ling.
     Éramos 34 pessoas: 32 mulheres e dois homens (um deles era eu e o outro, o marido da organizadora); 30 com mais de 50 anos e duas com menos (uma era filha da organizadora). Metemos o pé na estrada sem saber por quanto tempo e por quantos quilômetros.
     Apesar de nublado, o domingo estava mormacento. Certamente já tínhamos perdido a cerimônia, pois já passava das oito horas. Subíamos apreciando a bela paisagem longínqua, o vale onde se incrustam as cidades de Igrejinha, Parobé e Três Coroas. Pela organizadora ficamos sabendo que o motorista do ônibus já havia conseguido pedir socorro e que estava esperando um mecânico vindo de Porto Alegre. Já que estávamos lá não precisávamos de ônibus. Nossa preocupação era com a volta e, se já tinha socorro a caminho, tudo bem. Era relaxar e gozar.
     No desenho abaixo o caminho que percorremos a pé.


     Chegamos ao templo às nove horas. Não vou discorrer aqui sobre o local, só que tive a oportunidade de demonstrar minha fé e dedicar lamparinas a uma pessoa que me é muito cara. O relato é sobre a aventura de ir até lá naquelas condições.
     Percorremos todos os cantos da área onde há dois templos, estátuas e outras instalações. Tínhamos um almoço marcado em um restaurante de Três Coroas. No local não tinha nem lanche, só refrigerantes na loja do templo. A última notícia que tivemos sobre o ônibus foi às 11 horas. Dizia que o mecânico já havia chegado e estava trabalhando no conserto. Depois disso, o motorista desligou o celular e ficamos sem comunicação. Nada auspicioso.



     Enquanto isso, a organizadora contatou o restaurante que, pra não perder um grupo de 34 pessoas, ficou de conseguir um ônibus ou uma van para nos buscar. Às 12h30 resolvemos fazer o caminho de volta (a linha amarela do esquema acima). A pé de novo. A proposta era esperarmos no meio do caminho pela condução que o restaurante, depois de muitas tentativas, não conseguiu. Antes de sabermos que não se conseguiria essa condução, enquanto estávamos parados no meio do caminho, acabei quebrando um galho. Me recostei num grosso galho, caído, que só suportou meu peso por um tempo, levando-me ao chão em seguida, em câmera lenta, na frente de todo mundo. Resolvi ficar sentado no chão. Como se isso não bastasse, encostei a parte interna do braço num bicho cabeludo, que me queimou. Uma senhora prevenida me emprestou uma pomada milagrosa. E fomos indo, indo, indo, indo estrada de chão batido afora. De vez em quando eu olhava pesaroso para meu sapatênis Ferracini.
     Chegamos novamente naquela estrada em que descemos do ônibus de linha na vinda. Depois de inúmeras tratativas, uma moradora da esquina da estrada asfaltada com a estrada de chão batido conseguiu um micro ônibus que nos levaria a Igrejinha. De lá deveríamos pegar um ônibus para Porto Alegre na rodoviária. Quando sentamos neste micro, adivinhe quem apontou na estrada, lépido e faceiro? O ônibus em que viemos até metade do caminho e que nos deixou na mão. Como este nos levaria direto a Porto Alegre, embarcamos nele e viemos, depois que a organizadora deu R$ 100,00 para o cara do micro ônibus pelos serviços que nem chegaram a ser prestados. Mas tudo bem, foram descontados da empresa do ônibus que estragou.
     A aventura poderia ter terminado por aí. Mas não. Eu estava louco pra chegar em casa pra comer e ainda a tempo de assistir à rodada final do Brasileirão. Aquele mulherio do grupo — agora reduzidas a 28, porque duas delas embarcaram num ônibus de linha quando estávamos parados na beira da RS-20 — ainda quis parar em Igrejinha pra comprar sapatos. Os mesmos sapatos que têm em Porto Alegre, com os mesmos preços e as mesmas condições de pagamento. Não vou entender nunca! Foi só aí que me esqueci dos ensinamentos de Buda e me irritei. Como eu era o único homem, já que o outro era o marido da organizadora, dancei...
     Cheguei em casa a tempo de ver o Flamengo festejar o campeonato. Menos mal.
     No budismo sempre há uma lição para tudo. Deste passeio tirei uma: nunca mais me convidem mais para excursões!

3 comentários:

Clara disse...

Meu amor,apesar de todos os transtornos, senti-me feliz por que estávamos juntinhos, fazendo a peregrinação de mãos dadas...

“Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo.” Buda

felipeadvogado disse...

Pô, quantos problemas na viagem. Aconteceu a legítima "Vida de Mer.." que o programa do Pretinho Básico tem, hehehehe. Quando a coisa parecia melhorar, Acontecia algo.

Kundry_e_Roberto disse...

Aí entra também uma lei de Murphy, criada por mim: nada está tão ruim que não possa ficar pior! Mas alguma lição sempre se tira, né?
Da próxima vez, ao declinares de algum convite para excursão, diz mansamente: vou não ir!