Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







domingo, 10 de janeiro de 2010

Coerência


Minha revolta vem do fato de ser sempre ligado, pura e simplesmente, a um acontecimento e, em consequência, ser petrificado num momento da história. Minha visão é a de que nós estamos em constante mudança. Se hoje sou um deputado federal, amanhã posso não ser. A cada momento histórico, você deveria ter um “entre vírgulas” diferente para defini-lo, a não ser que você se aposente. Quando se aposentar, você vai escolher aquilo que, no passado, o representa.



     O texto em epígrafe é do deputado federal pelo Rio de Janeiro, jornalista e escritor (não obrigatoriamente nesta ordem) Fernando Gabeira, dito em entrevista de quase seis horas prestada ao jornalista Geneton Moraes Neto, que resultou no livro Dossiê Gabeira: o filme que nunca foi feito.
     Gabeira lamentava-se de sempre ser lembrado como participante do sequestro, em 1969, do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick. Eram os anos de chumbo e a ação foi uma forma de pressionar a ditadura instalada a libertar presos políticos, entre outros requerimentos.
     Fernando Gabeira foi candidato ao Governo do Estado do Rio de Janeiro pelo PT, em 1986, à Presidência da República pelo PV, em 1989, e à prefeitura do Rio de Janeiro, em 2008. O Gabeira de hoje é conhecido por defender posições liberais polêmicas, como a profissionalização da prostituição e a descriminalização da maconha. Em abril do ano passado, considerou ter arranhado sua imagem política por ter usado sua cota de passagens aéreas da Câmara em benefício de familiares.
     Deixando o personagem de lado, vamos ao que me trouxe aqui: justamente as palavras de Gabeira epigrafadas. Elas me fizeram lembrar de um termo muito utilizado, especialmente quando se fala de política e de políticos (apesar de não ser alusão exclusiva a eles): coerência. O que seria coerência? Diz-se que é qualidade, estado ou atitude de coerente (até aí morreu Neves: na definição de coerência se fala em coerente; na de coerente, que é o que procede com coerência). Diz-se, também, que coerência é ligação ou harmonia entre situações, acontecimentos ou idéias, relação harmônica; conexão, nexo, lógica. Aliás, em lógica coerência significa ausência de contradição, isto é, acordo do pensamento consigo mesmo (dos princípios com as consequências, dos axiomas com os teoremas, etc.); compatibilidade, consistência. Em um texto, por exemplo, coerência é a relação existente entre suas partes, é o vínculo entre as idéias expostas nele.
     Pela definição, portanto, Gabeira não é um cara coerente. As idéias e atitudes daquele de 1969, da luta armada, não são as mesmas do de 2009, que usou suas cotas de passagens em benefício de familiares. E nem teria que ser. Não se pode rotular as pessoas apenas pela definição do rótulo. Exigir coerência das pessoas em tempos distantes e situações distintas é medíocre. Como exigir coerência de um cônjuge que descumpre, anos depois, aquelas promessas feitas no altar? Como cobrar coerência dos colorados que torceram pelo Grêmio na última rodada do brasileirão?
     Tem mais gente que pensa assim. Ralph Waldo Emerson (1803-1882), escritor, filósofo e poeta norte-americano disse que

Uma coerência tola é o espantalho das pequenas mentes, adorada pelos pequenos homens de Estado, filósofos e sacerdotes. Uma alma grande não tem nada que ver com a consistência... Diz o que pensas hoje em palavras duras e amanhã diz o que o amanhã pensar, outra vez em palavras duras, ainda que contradiga tudo o que disseste hoje.

     O escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), por sua vez, afirmou que

O homem que pretende ser sempre coerente no seu pensamento e nas suas decisões morais ou é uma múmia ambulante ou, se não conseguiu sufocar toda a sua vitalidade, um mono maníaco fanático.

     O irlandês e também escritor Oscar Wilde (1854-1900) disse que “a coerência é a virtude dos imbecis”, pensamento que poderia ser complementado pelo do desenhista, humorista, dramaturgo, escritor e tradutor brasileiro Millor Fernandes (1923): “Coerente: um sujeito que nunca teve outra ideia.”
     Os ideólogos de plantão cobram coerência de Lula, diariamente, comparando aquele líder sindical surgido no regime militar com o hoje presidente da República. Aqui não interessa se aquele era melhor do que este ou se este é melhor do que foi aquele. São tempos distantes e situações distintas. Aquele era um metalúrgico que vociferava contra o Estado; este é o chefe de Estado.
     Ferdinand de Saussure (1857-1913), um linguista e filósofo suíço, afirmou que “o ponto de vista cria o objeto”. O objeto está lá, seja ele qual for, mas, dependendo de como o olharmos, de onde o olharmos e de quando o olharmos podemos ter uma idéia diferente sobre ele. Mesmo que não seja coerente com a idéia que tínhamos antes.
     Têm alguns, contudo, que se mantêm coerentes. O Zé Arruda, governador de Brasília, é um deles: um dia violou a votação secreta do senado e, depois, pediu desculpas; agora, é suspeito de comandar um esquema de corrupção. Ah! Mas ele perdoa aos que os insultam porque, assim, também pode pedir perdão por seus pecados.
     Isso é que é coerência! É?

Um comentário:

Débora Sousa disse...

Fantástico!!! Penso muitas coisas ao mesmo tempo e as vezes é complicado estabelecer uma ordem lógica para tudo!!! Mas agora eu sei que “Coerente é um sujeito que nunca teve outra ideia.”
Abraços