Sempre me causaram uma certa inquietação alguns aspectos da fala de comunicadores de rádio e TV, sejam eles locutores, apresentadores, repórteres ou narradores. Um desses aspectos me levou ao tema do meu trabalho de conclusão do curso de especialização em Estudos Linguísticos do Texto (ver postagem): O que que esse “aí” tá fazendo aí? Um caco de oralidade no rádio e na TV. Fiz um estudo do uso do advérbio “aí” na fala de profissionais de rádio e televisão.
Quando uma parcela da humanidade falava em latim, o “aí” – que se escrevia e pronunciava “ibi” – era um advérbio de lugar que localizava pontos no espaço próximos ao ouvinte. Quando um soldado romano perguntava para outro: Ó, Abundio, o que fazes aí?, queria saber o que Abundio fazia “nesse lugar”, que poderia ser na beira de um precipício ou na cama de uma mulher alheia. Não se sabe como, entretanto, depois que os soldados romanos pararam de falar em latim, nos seus enunciados cotidianos as pessoas começaram a dar outros significados aos termos, como se não existissem palavras suficientes na língua portuguesa. Esses novos significados são, então, incluídos nas definições das palavras nos dicionários. Os dicionários Aurélio e Houaiss têm mais de 10 acepções cada um para a palavra “aí”. Na maioria dos casos, no entanto, os significados não têm uma relação explícita com o valor original do advérbio “aí”. Como se não bastassem essas acepções, o pessoal do rádio e da TV usa o aí em contextos que perturbam meu ouvido.
Para avaliar o sentido do aí na fala dos comunicadores é preciso conceber a situação de comunicação na ocasião do enunciado. No caso do rádio, o locutor normalmente está sozinho no estúdio, falando a milhares de ouvintes espalhados pela região de abrangência da frequência da emissora. Não se enxergam. Na televisão é semelhante, com a ressalva de que os telespectadores veem um apresentador que não os vê, que olha para uma câmera e que não está sozinho no estúdio.
O aí advérbio de lugar para os locutores, nos dois casos, seria um ponto no espaço perto de cada ouvinte/telespectador. Para estes, o aí deveria ser algo que está próximo de si. Trata-se, sem dúvida, de uma situação impar de comunicação para o uso do aí como especificador de lugar, diferentemente daquela em que duas ou mais pessoas conversam frente a frente ou através de telefone ou computador. De que forma um comunicador de rádio ou de TV vai indicar um lugar no espaço que esteja próximo de cada ouvinte, se estão estes nos mais variados lugares? Nesses casos o aí assume outras funções, outros valores.
No estudo, ouvi coisas do tipo: O show é hoje, às sete da noite, com a banda que está lançando aí um DVD gravado ao vivo. Onde estaria sendo lançado o DVD? Perto do ouvinte? Mas tem ouvinte em tudo quanto é canto! Em outro exemplo, acabara de tocar um bloco de músicas de Tim Maia interpretadas por ele e por outros. O apresentador diz: Aí um bloquinho com o Tim Maia. Aí o Tim Maia começou o bloco aí com Juras. Depois teve Frejat com [...] O primeiro aí poderia ser nesse lugar, ou seja, no rádio, onde o ouvinte acabara de ouvir o bloco de músicas. O primeiro da segunda frase até poderia ser interpretado como um “então”, mas o segundo, fico devendo. Outros exemplos sobre os quais fico devendo uma explicação e, em vez disso, pergunto: O que que esse “aí” tá fazendo aí?
[...] e trazia também uma versão instrumental de um sucesso de Ivan Lins. É, o Ivan Lins, que é grande parceiro do George Benson aí. [...]
A Organização Mundial da Saúde aumentou de novo aí pra cinco, agora, o alerta mundial da gripe suína, numa escala que vai de um a seis.
Vinte milhões de euros por Nilmar. Ontem falavam em 20 milhões de dólares. Prefiro o euro aí, ó, é mais caro.
Cá pra nós: confesso que nenhuma das ocorrências de “aí” que encontrei na pesquisa se referia especificamente a um lugar no espaço e eram perfeitamente dispensáveis na fala.
Em matéria de “aí” prefiro ficar com os dos surfistas:
— Aí, meu! Marzão!
— Marzão, meu! Aí!
Assim como o “aí”, mereceriam estudos outras palavras e expressões usadas pelos profissonais do microfone. Por que cargas d'água um narrador de futebol da TV diz tantas vezes durante uma transmissão que o jogador fulano de tal saiu com bola e tudo pra fora? Se o jogador e a bola saíram, por óbvio foi pra fora. O mesmo também diz que o atacante encarou o zagueiro de frente. Essa poderia ter explicação: há atacantes que jogam de costas para a defesa, fazendo o papel de pivô, aparando a bola e passando-a para um companheiro que venha em direção ao arco adversário. Depois ele se livra do marcador e recebe a bola de volta. Se um atacante desse tipo encarasse o zagueiro, até caberia a expressão. Mas não é o caso. O narrador se refere a jogadores que enfrentam, confrontam-se, defrontam-se com o adversário. Ora, encarar é olhar de frente, de cara; fitar os olhos em; olhar com atenção; enfrentar, afrontar, arrostar, acarar. Portanto, basta encarar o zagueiro, pois não é possível fazê-lo de lado, ou de costas.
Deixando o futebol de lado e indo pro boletim do trânsito ou pra seção de polícia. Vocês já repararam que o automóvel sempre acabou caindo num buraco; acabou atropelando um pedestre; acabou colidindo com um ônibus? Pois é. Pra mim o automóvel caiu num buraco, atropelou um pedestre e colidiu com um ônibus. Têm pessoas que levam um tiro na cabeça e acabam morrendo; apesar disso, outras acabam sobrevivendo. Eu acho que quem leva tiro na cabeça ou morre ou sobrevive. E tem mais: se sobrevive não acaba...
Outra expressão que acho estranha é o “agora há pouco”. Nem sei se tem uma vírgula no meio: agora, há pouco. Volta e meia o ministro fulano de tal disse, agora há pouco, determinada coisa. Então eu filosofo: “agora” é neste instante, neste momento, nesta hora; “há pouco” é um espaço de tempo anterior a este instante, portanto, anterior ao agora. Vai daí que, então, ou foi agora ou foi há pouco. No exato instante que se termina de dizer “agora”, já é “há pouco”. Vai ver que é por isso que os apresentadores de noticiários dizem tanto agora há pouco...
Mudando o rumo da conversa, entro, agora, na área da expressão. Pena que este blog não seja sonoro. Se fosse, eu imitaria a maioria das apresentadoras e repórteres das TVs locais, especialmente as que cobrem variedades, apresentando seus boletins. Parecem professoras de maternal, jardim ou de 1ª a 4ª série falando com seus aluninhos, explicando a eles como vai ser a próxima tarefa. Prestem atenção.
Um comentário:
Muito bom.
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