Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

O velho


     Eram oito e meia da manhã do primeiro dia do ano. Apesar de as cervejas e do espumante de horas antes ainda me deixarem zonzo, meus músculos queriam que eu saísse da cama. Levantei em silêncio para não acordar minha mulher, com quem, pouco antes, fizera um amor gostoso e pro-missor para o ano que se iniciava. Fechei a porta do quarto para não despertá-la com qualquer ruído que pudesse fazer.
     Ainda meio cambaleante, mesmo depois de jogar água no rosto, fui para a cozinha. Enquanto o café passava, guardei a louça e os talheres da ceia de ano novo que foram deixadas no secador. Tomei minha matutina xícara de café com leite e fui pra sacada da sala fumar o primeiro cigarro da manhã do primeiro dia do ano.
     O sol estava tímido. Ora espiava entre as nuvens brancas e grossas que passeavam lentamente, ora se escondia atrás delas. Mas seus raios estavam quentes. O ar era abafado, embora circulasse uma brisa – aliás, no pé do morro, no Partenon, quase sempre tem vento.
     Na esquina, pombas e pardais disputavam migalhas em volta de um despacho colocado pouco antes da meia-noite. Bem-te-vis, sabiás e outros que desconheço trinavam como o fazem todas as manhãs, ignorando que esta era a primeira de um novo ano.
     Dezenas de antenas admiravam a cidade toda do alto do morro da Embratel. Fiquei olhando-as e tentando calcular a quantidade de frequências que suas ondas emitiam. Frequências que carregam sons e imagens de música, notícias boas e ruins, enfim, do dia-a-dia de todos. Com certeza, por cima de minha cabeça passavam, naquele momento, inúmeros e invisíveis votos de próspero ano novo, gravados em vozes sedosas de comunicadores e apresentadores de rádios e TVs.
     Antes de lançar o toco do meu cigarro no meio da rua, olhei pra baixo e vi um velho aparentando mais de 90 anos subindo tropegamente a rua. Atravessou a rua com dificuldade. As pedras irregulares eram um estorvo para aqueles pés cansados e pernas tortas. Não parecia bêbado, mas sim exausto. Parou e encostou-se no poste em frente ao meu prédio. Tirou do bolso um lenço surrado e acinzentado e passou-o pelo rosto e cabeça. Era um velho desgrenhado. As calças eram de um preto russo, a camisa, antes branca, estava amarelada pelo tempo. Os sapatos marrons não tinham cadarço. Ali ficou por um tempo antes de sentar-se, ainda encostado no poste. Parecia estar se sentindo mal. Logo fiquei pensando no que eu poderia fazer se ele precisasse de ajuda. Levá-lo em casa, levá-lo a um hospital, chamar a SAMU... Resolvi descer e falar com ele.
     Eu ainda vestia a calça curta do pijama. Coloquei uma bermuda sobre ela, peguei as chaves, abri a porta e a grade de ferro que separam meu apartamento do resto do mundo e do submundo e desci sem camisa mesmo. O shleptap das Havaianas ecoou pela escadaria do edifício adormecido. Usei outras chaves pra abrir a porta e a grade de ferro que separam o prédio do resto do mundo e do submundo. Olhei pra esquina e o velho ainda estava ali. Aproximei-me dele, que pareceu nem notar minha presença.
     — Bom dia, senhor – disse. Está precisando de alguma coisa?
     Sem parar de olhar para o chão por entre as pernas, o velho me ignorou.
     — O senhor não está bem? – insisti. Quer ajuda?
     Ele levantou os olhos calmamente, encarou-me e esboçou um sorriso. De perto era muito pior do que parecia da sacada do segundo andar. Seu rosto era composto de rugas e sulcos profundos, mais parecendo uma foto em preto e branco de Sebastião Salgado; seus lábios muito finos quase se escondiam sob a ponta caída do nariz; dentes? Nem pensar.
     — Obrigado, meu jovem, mas já não preciso de mais nada e nada do que por mim tentem fazer vai ajudar – disse o velho com difi-culdade. E continuou a falar com a voz fraca, quase sussurrada.
     — Nada mais adianta. O que era pra ser feito já o foi. Eu só estava de passagem mesmo. O fim já chegou e estou me dirigindo para o limbo.
     Voltou a olhar o chão. Em seguida, de olhos fechados, jogou a cabeça pra trás, ofegante.
     — Há alguém a quem eu possa avisar – perguntei –, uma esposa, algum parente, um amigo?
     Novamente me encarou e, com o mesmo sorriso de antes, apesar do estado deplorável, disse:
     — Não tenho ninguém e ninguém mais me tem, meu jovem. Fui do mundo e o mundo foi meu, mas hoje, especialmente hoje, já sou o passado.
     Pensei comigo que, com certeza, o velho era a reencarnação de algum filósofo grego ou, quem sabe, de Sartre, de tantos nãos, nadas e ninguéns que pronunciava. E continuou:
     — Fui feito de alegrias e tristezas, prazeres e sofrimentos. Nasci de muitas esperanças e promessas. Criei-me vendo algumas delas se realizarem e outras tantas não. Cresci porque a natureza, prin-cipalmente o tempo – o implacável tempo – assim o determinaram. Era meu destino passar pelo tempo, deixar nele minha marca e ficar com a dele em mim. Sou passado, sou história.
     Nisso desce a rua correndo um menino. Roupa nova, quem sabe ganha na semana passada, no Natal. Diminuiu a velocidade ao nos ver e, sem parar de andar, ficou encarando o velho, torcendo a cabeça enquanto passava por nós. O velho, por sua vez, parou de falar e rascunhou para o menino o mesmo sorriso que dedicara a mim, quando o interpelei.
     Quando o menino parou de olhar e se afastou correndo rua abaixo, o velho vaticinou:
     — Esse menino será eu daqui a pouco tempo, assim como eu fui ele, também há pouco tempo. Esse menino sou eu ontem.
     Cada vez entendendo menos o que o velho queria, agachei-me na frente dele pra ficar mais perto e poder ouvir com mais clareza o que dizia sem fôlego.
     — Você não, meu jovem. Você está alheio a isso. O tempo não faz com você o que fez comigo e fará com aquele menino. Você é um mero espectador do tempo. Eu e o menino somos os atores: ele, hoje, o protagonista, que um dia fui; eu, o antagonista, que outro dia será ele.
     O velho falava sem alterar a expressão. Apesar de parecer estar em agonia, em sofrimento, aquele sorriso desdentado não se desmanchava.
     — Diga, senhor, qual sua idade?
     O velho esgaçou mais ainda o sorriso, mas não respondeu. Então insisti, mas com outra pergunta, tentando dar uma volta pra depois voltar à questão da idade.
     — Me diga, então, senhor, qual é seu nome?
     — Ora, meu jovem – disse, parecendo impaciente. Então você ainda não percebeu? Antes me perguntou a idade: pois tenho a sua idade menos o que você tinha um ano atrás.
     É louco, pensei. Primeiro, porque não pode saber que tenho 60 anos; depois, porque deve ter mais de 90. Só pode ser doido. Mas o velho continuou:
     — Einstein disse que a energia é igual à massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz. Estava lançada a teoria da relatividade. A teoria da relatividade prevê que os objetos em movimento sofram o efeito de dilatação do tempo, que pode ser maior ou menor de acordo com a velocidade. Assim, o tempo para um objeto ou para uma pessoa dentro de outro objeto em alta velocidade passa mais lentamente do que para objetos que se movimentam a baixas velocidades...
     Impaciente fiquei eu, agora, quando perguntei quase gritando:
     — Me diga, velho: qual o seu nome?
     — Meu nome, jovem, é Ano Passado.

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