Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sábado, 19 de dezembro de 2009

Futebol ao sol e à sombra



     Vou reproduzir nesta postagem pequeno trecho de um livro de Eduardo Galeano: Futebol ao sol e à sombra. O original é de 1995, mas a edição que estou lendo é atualizada, incluindo as copas de 1998 e 2002. É uma edição de bolso da L&PM que, na última capa, diz o seguinte:

[...] Eduardo Galeano penetrou nas profundezas da história e das histórias que se passam dentro e fora das quatro linhas. Construiu este livro como um verdadeiro monumento à paixão.
[...] Não é preciso ser um apaixonado pela bola para apreciar esta saga.
     Em pequenos textos, o autor fala tudo sobre futebol: desde o jogador, o goleiro, o árbitro, o técnico, o gol, a torcida, o campo, até interesses políticos e financeiros. O trecho que reproduzo é sobre os jornalistas: repórteres, narradores e comentaristas. Escolhi esse trecho porque, além de ser interessante — como todo o livro —, um dia fui ligado profissionalmente a emissoras de rádio, e também porque nasci irmão do célebre radialista Milton Ferretti Jung, há 45 anos locutor do correspondente jornalístico da Rádio Guaíba, que já narrou três copas do mundo e escreve crônicas esportivas para a mesma emissora. Na escolha do tema desta postagem também quero homenagear o filho homônio do meu irmão — e, coincidentemente, meu sobrinho —, Milton Ferretti Jung Jr., âncora da CBN São Paulo, premiado este ano pelo Prêmio Comunique-se como o "Melhor Âncora de Rádio".
     Vamos ao Eduardo Galeano.

Os especialistas

     Antes da partida, os comentaristas e os cronistas formulam suas perguntas desconcertantes:
     — Dispostos a ganhar?
     E obtêm respostas assombrosas:
     — Faremos todo o possível para obter a vitória.
     Depois, os locutores tomam a palavra. Os da televisão acompanham as imagens, mas sabem muito bem que não podem competir com elas. Os do rádio, ao contrário, não são recomendados para cardíacos: esses mestres do suspense correm mais que os jogadores e mais que a própria bola, e em ritmo de vertigem narram uma partida que pode não ter muita relação com o que se está olhando. Nessa catarata de palavras, passa roçando o travessão o disparo que se vê roçando o mais alto céu, e corre iminente perigo de gol a meta onde uma aranha tece sua teia, de trave a trave, enquanto o goleiro boceja.
     Quando conclui vibrante jornada no colosso de cimento, chega a vez dos comentaristas. Antes, os comentaristas interromperam várias vezes a transmissão da partida para indicar aos jogadores o que deviam fazer, mas eles não puderam escutá-los porque estavam ocupados em errar. Estes ideólogos da WM contra a MW, que é a mesma coisa mas ao contrário, usam uma linguagem onde a erudição científica oscila entre a propaganda bélica e o êxtase lírico. E falam sempre no plural, porque são muitos.

A linguagem dos doutores do futebol

     Vamos sintetizar nosso ponto de vista, formulando uma primeira aproximação da problemática tática, técnica e física do cotejo que foi disputado esta tarde no campo do Unidos Venceremos Futebol Clube, sem cair em simplificações incompatíveis com um tema que sem dúvida está exigindo análises mais profundas e detalhadas e sem incorrer em ambiguidades que foram, são e serão alheias à nossa pregação de toda uma vida a serviço do amor ao esporte.
     Seria cômodo para nós ignorar nossa responsabilidade, atribuindo o revés da esquadra local à discreta performance de seus jogadores, mas a excessiva lentidão que indubitavelmente mostraram na jornada de hoje, na hora de devolver cada esférico recepcionado, não justifica de nenhuma maneira, entenda-se bem, senhoras e senhores, de nenhuma maneira, semelhante desqualificação generalizada e, portanto, injusta. Não, não e não. O conformismo não faz parte do nosso estilo, como bem sabem os que nos seguiram ao longo de nossa trajetória de tantos anos, aqui em nosso querido país e nos cenários do desporto internacional e inclusive mundial, onde fomos convocados a cumprir nossa modesta função. Portanto vamos dizê-lo com todas as letras, como é nosso costume: o êxito não coroou a potencialidade orgânica do esquema de jogo desta esforçada equipe, porque ela pura e simplesmente continua sendo incapaz de canalizar adequadamente suas expectativas de uma maior projeção ofensiva até o âmbito da meta rival.
     Já o dizíamos no domingo próximo passado e assim o afirmamos hoje, com a cabeça erquida e sem papas na língua, porque sempre chamamos pão de pão, e queijo de queijo, e continuaremos denunciando a verdade, doa a quem doer, caia quem caia e custe o que custar.



GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução: Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. 3. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008. 232 p.

2 comentários:

Mílton 'Miltinho' Jung disse...

Caríssimo irmão do meu pai e não por coincidência meu tio:

A seleção do texto de Galeano feita em seu artigo se assemelha ao passe do habilidoso jogador de meio de campo que sempre fostes (na vida), forjado na sutileza das jogadas e em talento impróprios para os arranca-toco da defesa ou os tanques rompedores que vestem a camisa 9.

No entanto, ao citar-me ao lado daquele que foi dos maiores narradores de futebol deste País cometes-te o mesmo erro dos técnicos que escalam o craque, mas lhe obrigam a tabelar com um companheiro perna-de-pau sem tamanho.

De qualquer forma, sou muito grato pela citação e pela oportunidade de degustar o livro de Eduardo Galeano.

Beijos e abraços,

Milto (o mano velho) disse...

Pra não perder para o meu filho, não fico atrás dele no tratamento: assim,começo com meu caríssimo irmão,mesmo correndo o risco de ser visto como preguiçoso faço meus os elogios que te fez no texto que postou. Não espalha,mas eu estava por fora do livro de Galeano. Vou ler.