Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Obrigado, EPTC



     Na postagem do dia 23 passado (O pequeno infrator) falei de um sujeito que estacionava na calçada, a despeito da legislação e do respeito que deveria ter para com os pedestres. Disse, também, que denunciei o abuso à EPTC por telefone, por email e coloquei um vídeo no Youtube e que nada tinha acontecido até aquele dia.
     Estacionava. De repente, percebi que o sujeito passou a estacionar seu carro dentro da regra, como todos cidadãos educados o fazem: no leito da rua, junto ao meio-fio. Ontem (28/01), recebi um email da EPTC dando conta de que os agentes teriam estado no local na manhã do dia 20, não constatando qualquer irregularidade; que voltaram no mesmo dia, à tarde, e lá estava o automóvel sobre a calçada. A mensagem também informava que o veículo foi multado e só não foi recolhido por falta de espaço para manobra do guincho.
     Deixo aqui meus louvores à EPTC pelo atendimento que prestaram a este cidadão inconformado com cidadãos desrespeitosos, que precisam ter seus carros multados (quase guinchados), para cumprirem uma regra simples de cidadania. Parabéns!
     Imediatamente tirei o vídeo do ar. Portanto, se forem atrás da postagem do dia 23, nem tentem ver o vídeo, porque não está mais lá.

     Obrigado, EPTC!

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O que que esse "aí" tá fazendo aí?



     Sempre me causaram uma certa inquietação alguns aspectos da fala de comunicadores de rádio e TV, sejam eles locutores, apresentadores, repórteres ou narradores. Um desses aspectos me levou ao tema do meu trabalho de conclusão do curso de especialização em Estudos Linguísticos do Texto (ver postagem): O que que esse “aí” tá fazendo aí? Um caco de oralidade no rádio e na TV. Fiz um estudo do uso do advérbio “aí” na fala de profissionais de rádio e televisão.
     Quando uma parcela da humanidade falava em latim, o “aí” – que se escrevia e pronunciava “ibi” – era um advérbio de lugar que localizava pontos no espaço próximos ao ouvinte. Quando um soldado romano perguntava para outro: Ó, Abundio, o que fazes ?, queria saber o que Abundio fazia “nesse lugar”, que poderia ser na beira de um precipício ou na cama de uma mulher alheia. Não se sabe como, entretanto, depois que os soldados romanos pararam de falar em latim, nos seus enunciados cotidianos as pessoas começaram a dar outros significados aos termos, como se não existissem palavras suficientes na língua portuguesa. Esses novos significados são, então, incluídos nas definições das palavras nos dicionários. Os dicionários Aurélio e Houaiss têm mais de 10 acepções cada um para a palavra “aí”. Na maioria dos casos, no entanto, os significados não têm uma relação explícita com o valor original do advérbio “aí”. Como se não bastassem essas acepções, o pessoal do rádio e da TV usa o em contextos que perturbam meu ouvido.
     Para avaliar o sentido do aí na fala dos comunicadores é preciso conceber a situação de comunicação na ocasião do enunciado. No caso do rádio, o locutor normalmente está sozinho no estúdio, falando a milhares de ouvintes espalhados pela região de abrangência da frequência da emissora. Não se enxergam. Na televisão é semelhante, com a ressalva de que os telespectadores veem um apresentador que não os vê, que olha para uma câmera e que não está sozinho no estúdio.
     O advérbio de lugar para os locutores, nos dois casos, seria um ponto no espaço perto de cada ouvinte/telespectador. Para estes, o deveria ser algo que está próximo de si. Trata-se, sem dúvida, de uma situação impar de comunicação para o uso do como especificador de lugar, diferentemente daquela em que duas ou mais pessoas conversam frente a frente ou através de telefone ou computador. De que forma um comunicador de rádio ou de TV vai indicar um lugar no espaço que esteja próximo de cada ouvinte, se estão estes nos mais variados lugares? Nesses casos o assume outras funções, outros valores.
     No estudo, ouvi coisas do tipo: O show é hoje, às sete da noite, com a banda que está lançando um DVD gravado ao vivo. Onde estaria sendo lançado o DVD? Perto do ouvinte? Mas tem ouvinte em tudo quanto é canto! Em outro exemplo, acabara de tocar um bloco de músicas de Tim Maia interpretadas por ele e por outros. O apresentador diz: um bloquinho com o Tim Maia. o Tim Maia começou o bloco com Juras. Depois teve Frejat com [...] O primeiro poderia ser nesse lugar, ou seja, no rádio, onde o ouvinte acabara de ouvir o bloco de músicas. O primeiro da segunda frase até poderia ser interpretado como um “então”, mas o segundo, fico devendo. Outros exemplos sobre os quais fico devendo uma explicação e, em vez disso, pergunto: O que que esse “aí” tá fazendo aí?

[...] e trazia também uma versão instrumental de um sucesso de Ivan Lins. É, o Ivan Lins, que é grande parceiro do George Benson . [...]
A Organização Mundial da Saúde aumentou de novo pra cinco, agora, o alerta mundial da gripe suína, numa escala que vai de um a seis.
Vinte milhões de euros por Nilmar. Ontem falavam em 20 milhões de dólares. Prefiro o euro aí, ó, é mais caro.

     Cá pra nós: confesso que nenhuma das ocorrências de “aí” que encontrei na pesquisa se referia especificamente a um lugar no espaço e eram perfeitamente dispensáveis na fala.
     Em matéria de “aí” prefiro ficar com os dos surfistas:

— Aí, meu! Marzão!
— Marzão, meu! Aí!

     Assim como o “aí”, mereceriam estudos outras palavras e expressões usadas pelos profissonais do microfone. Por que cargas d'água um narrador de futebol da TV diz tantas vezes durante uma transmissão que o jogador fulano de tal saiu com bola e tudo pra fora? Se o jogador e a bola saíram, por óbvio foi pra fora. O mesmo também diz que o atacante encarou o zagueiro de frente. Essa poderia ter explicação: há atacantes que jogam de costas para a defesa, fazendo o papel de pivô, aparando a bola e passando-a para um companheiro que venha em direção ao arco adversário. Depois ele se livra do marcador e recebe a bola de volta. Se um atacante desse tipo encarasse o zagueiro, até caberia a expressão. Mas não é o caso. O narrador se refere a jogadores que enfrentam, confrontam-se, defrontam-se com o adversário. Ora, encarar é olhar de frente, de cara; fitar os olhos em; olhar com atenção; enfrentar, afrontar, arrostar, acarar. Portanto, basta encarar o zagueiro, pois não é possível fazê-lo de lado, ou de costas.
     Deixando o futebol de lado e indo pro boletim do trânsito ou pra seção de polícia. Vocês já repararam que o automóvel sempre acabou caindo num buraco; acabou atropelando um pedestre; acabou colidindo com um ônibus? Pois é. Pra mim o automóvel caiu num buraco, atropelou um pedestre e colidiu com um ônibus. Têm pessoas que levam um tiro na cabeça e acabam morrendo; apesar disso, outras acabam sobrevivendo. Eu acho que quem leva tiro na cabeça ou morre ou sobrevive. E tem mais: se sobrevive não acaba...
     Outra expressão que acho estranha é o “agora há pouco”. Nem sei se tem uma vírgula no meio: agora, há pouco. Volta e meia o ministro fulano de tal disse, agora há pouco, determinada coisa. Então eu filosofo: “agora” é neste instante, neste momento, nesta hora; “há pouco” é um espaço de tempo anterior a este instante, portanto, anterior ao agora. Vai daí que, então, ou foi agora ou foi há pouco. No exato instante que se termina de dizer “agora”, já é “há pouco”. Vai ver que é por isso que os apresentadores de noticiários dizem tanto agora há pouco...
     Mudando o rumo da conversa, entro, agora, na área da expressão. Pena que este blog não seja sonoro. Se fosse, eu imitaria a maioria das apresentadoras e repórteres das TVs locais, especialmente as que cobrem variedades, apresentando seus boletins. Parecem professoras de maternal, jardim ou de 1ª a 4ª série falando com seus aluninhos, explicando a eles como vai ser a próxima tarefa. Prestem atenção.

sábado, 23 de janeiro de 2010

O pequeno infrator



A ética é um exercício diário, precisa ser praticada no cotidiano. Só assim ela pode se afirmar em sua plenitude numa sociedade. Se uma pessoa não respeita o próximo, não cumpre as leis da convivência, não paga seus impostos ou não obedece às leis de trânsito, ela não é ética. Num primeiro momento, pequenas infrações isoladas parecem não ter importância. Mas, ao longo do tempo, a moral da comunidade é afetada em todas as suas esferas. Chamo a isso de círculo ético. Uma ação interfere na outra, e os valores morais perdem força, vão se diluindo. Para uma sociedade ser justa, o círculo ético é essencial". (Peter Singer - filósofo australiano)

[...] as pessoas acham que pequenas violações em situações controladas não causarão problema algum.
O problema de relevar pequenas infrações é que isto acaba inserindo uma certa subjetividade às normas. Esta subjetividade cria limites que varia de pessoa para pessoa e o limite de um poderá ultrapassar o limite do outro. Outro problema é que a pessoa se habitua a praticar pequenas infrações, fazendo com que, depois de um tempo, uma infração maior não pareça tão grande. As infrações vão ficando cada vez maiores e a desordem toma conta do todo.

(http://masssblog.blogspot.com/2009/04/pequenas-infracoes.html)

     Bem aqui do lado desse prédio meia-boca em que moro, nesse bairro meio ânus, tem outro prédio ¼ de boca. Neste tem um cidadão(?) que deve ter uma pequena participação na sociedade dos donos do mundo. Estes são aqueles que furam fila no cinema, no futebol, no elevador; que fumam em local proibido; que jogam papel e cascas de frutas no chão e latinha de cerveja pela janela do carro; que trancam cruzamentos no trânsito; que estacionam sobre calçadas. Esta última é a pequena infração do meu vizinho.
     Há muito tempo, desde que veio morar no prédio ¼ de boca – ou pelo menos desde que comprou um carro –, esse cidadão(?) utiliza a calçada como estacionamento. Mas não é só isso: pra chegar até sua “vaga privativa”, atravessa a calçada do prédio em que moro, porque no dele não tem acesso de automóveis. Faz assim várias vezes por dia, todos os dias, quando chega e quando sai. Sem contar que pode atrapalhar a passagem de pedestres, deve-se levar em conta que está estragando duas calçadas: a do prédio dele (problema do condomínio que ele paga) e a do meu (problema do condomínio que eu pago).
     Cada um deve saber de seus deveres e suas obrigações, por isso nunca falei com ele que está errado. O que fiz? Liguei para a EPTC. Nada adiantou. Tempos depois fotografei e mandei as fotos para a EPTC. Nada adiantou. Filmei, coloquei o vídeo no Youtube (clique aqui para assistir) e mandei o link para a EPTC. Nada adiantou. Não preciso dizer que o Código Brasileiro de Trânsito é bem específico quanto à proibição de se estacionar sobre calçadas e sobre a multa e pontos na habilitação que acarretam essa infração. O Capítulo III - Das normas gerais de circulação e conduta do CTB diz, no Artigo 29, que:

O trânsito de veículos nas vias terrestres abertas à circulação obedecerá às seguintes normas:
[...]
V - o trânsito de veículos sobre passeios, calçadas e nos acostamentos, só poderá ocorrer para que se adentre ou se saia dos imóveis ou áreas especiais de estacionamento;
[...]

     No Capítulo XV, onde são tratadas as infrações, diz o Artigo 181:

Estacionar o veículo:
[...]
VIII - no passeio ou sobre faixa destinada a pedestre, sobre ciclovia ou ciclofaixa, bem como nas ilhas, refúgios, ao lado ou sobre canteiros centrais, divisores de pista de rolamento, marcas de canalização, gramados ou jardim público:
Infração - grave (120 Ufirs - 5 pontos);
Penalidade - multa;
Medida administrativa - remoção do veículo.

     No mesmo Código, no Anexo I - Dos conceitos e definições, encontramos:

CALÇADA - parte da via, normalmente segregada e em nível diferente, não destinada à circulação de veículos, reservada ao trânsito de pedestres e, quando possível, à implantação de mobiliário urbano, sinalização, vegetação e outros fins.
PASSEIO - parte da calçada ou da pista de rolamento, neste último caso, separada por pintura ou elemento físico separador, livre de interferências, destinada à circulação exclusiva de pedestres e, excepcionalmente, de ciclistas.

     Não tenho esperança de que a EPTC dê atenção à denúncia que fiz. Como já disse várias vezes neste blog, moro num bairro meio ânus, onde funcionários da Prefeitura só aparecem – raramente – pra capinar. As calçadas estão em péssimo estado; o leito das ruas, antes de paralelepípedo, receberam uma ridícula cobertura de asfalto que já está toda esburacada; “puxadinhos” se espalham por todos os lados... Enfim, por isso chamo o bairro de meio ânus. Deveria se chamar “Cutenon” em vez de Partenon.
     Ah! Ia esquecendo: em dezembro de todos os anos a Prefeitura também aparece com a conta do IPTU.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A Ashura e o terrorismo ocidental




     Recebi por email um vídeo cujo título, em inglês, é Muslin ceremony in Vienna (Cerimônia muçulmana em Viena). O video começa com algumas fotos. A primeira é de uma estátua dourada de Johann Strauss, de pé, tocando violino, que, realmente, está em Viena. Esta imagem funde-se com a foto de uma igreja que, duvido, seja em Viena. Mais se parece com alguma de Minas Gerais ou da Bahia. Se eu entendesse de estilos arquitetônicos até diria de que época é e onde fica. A próxima imagem é de um quadro de Van Gogh sobre o qual não encontrei qualquer referência e muito menos o que teria a ver com a Áustria e, principalmente, com Viena. A quarta imagem é da torre de um prédio clássico, daquelas com relógio, que também não encontrei ao pesquisar imagens de Viena no Google. Enquanto as imagens aparecem, ao fundo toca Hallelujah, coro final da obra Messiah, de Georg Friedrich Händel, que nasceu na Alemanha e morreu em Londres. Acho que nunca passou por Viena.
     Ao final da apresentação das quatro imagens estáticas, cai a rotação da música de fundo e surge, em letras garrafais, a frase Wake up Europe! (Acorda, Europa!), sobre um fundo preto.
     Então começa o vídeo propriamente dito. Um grupo de homens trajando vestes muçulmanas caminha cantando um tipo de mantra e batendo no peito. A câmera dá um close nas mãos de alguns deles, que empunham espadas apontadas para cima. Abaixo do quadro aparece escrito, durante todo o vídeo, Soon, at your favorite city (Breve, na sua cidade favorita).
     A cena seguinte mostra um desses homens, com uma bata branca, de cabeça raspada, rindo e conversando com outros que estão a sua volta, mas que não aparecem no quadro. Um desses outros põe a mão direita atrás da cabeça do então sorridente personagem principal e o faz abaixá-la. Na mão esquerda segura uma navalha, com a qual começa a dar vigorosas batidas na cabeça do homem de branco. Quando para, o flagelado, sangrando, ergue os braços, assim como fazem os católicos quando rezam o Pai Nosso.
     Logo após aparecem vários closes de crianças, uma inclusive de colo, algumas chorando, já sangrando, com talhos na cabeça.
     A cena seguinte mostra vários homens, com as cabeças e batas brancas ensanguentadas, cantando, segurando espadas, brandindo-as no ar ou batendo com a lateral da lâmina na própria cabeça. Não parecem tristes ou estarem sofrendo.
     A câmera passeia pela audiência, onde aparecem duas mulheres, morenas como qualquer árabe, comendo sorvete e assistindo à cerimônia. Volta para os homens, sempre em close up, e, em câmera lenta, desvanece a imagem em um fade out.
     A frase Soon, at your favorite city fica na tela.
     O vídeo é verdadeiro. A cerimônia é verdadeira. O título é mentira. Afora é imagem de Johann Strauss, nada mais do que ali aparece pode-se dizer que seja em Viena, já que as imagens são de rostos, sem que apareça o cenário ao fundo.
     O vídeo é assustador para cristãos ocidentais que, por óbvio, não viram ou seus professores de história e de religião não lhes contaram direito o episódio das Cruzadas.
     O que o vídeo mostra é uma cerimônia da Ashura, uma data comemorativa dos muçulmanos xiitas.
     Diz a tradição xiita – um dos ramos muçulmanos – que, no ano 680 d.C., Imã Hussein, neto do profeta Maomé e filho de Ali (a figura mais reverenciada do islã xiita), foi assassinado numa cidade onde hoje é o território do Iraque. Durante a Ashura, os xiitas se autoflagelam usando facas, espadas e outros objetos cortantes, além das mãos. A intenção é relembrar os sacrifícios da família do profeta. Os xiitas acreditam que Hussein foi morto em uma batalha contra as forças do que se tornaria o ramo principal do islamismo sunita. Para muitos, a derrota confirmou a existência de uma minoria islâmica xiita e marcou a divisão entre os dois ramos. Os xiitas representam cerca de 15% do mundo muçulmano, enquanto os sunitas seriam 85%.
     Os rituais da Ashura, inclusive com autoflagelação, ocorrem em muitos países muçulmanos, como Irã, Iraque, Paquistão, Líbano, Arábia Saudita, Bahrein e outros. Em Viena só no vídeo.
     O mundo ocidental, especialmente a civilização norte-americana, costuma generalizar, qualificando como terrorista qualquer muçulmano. Se for do ramo xiita, então, já deve estar em Guantanamo.
     Terrorismo, no entanto, é mascarar um vídeo dessa forma. Com certeza, foi feito por algum norte-americano paranóico. O nome do vídeo, “Cerimônia muçulmana em Viena”, as frases “Acorda, Europa” e “Breve na sua cidade favorita” nada mais são do que uma tentativa de assustar os ocidentais, ameaçando-os com o que classifica como terrorismo muçulmano.
     O islamismo está mesmo crescendo. Há uma teoria da conspiração que diz que em 50 anos será a maior religião do mundo em número de fiéis. Essa mesma teoria diz que a taxa de natalidade das mulheres muçulmanas é de 4 para 1 na Europa.
     De minha parte, não me importo, desde que não precise navalhar minha cabeça. Mesmo assim, diz o ditado que “o que é do gosto, regala a vida”. Como tem gosto pra tudo...

domingo, 17 de janeiro de 2010

Arrogância



     Muitos dos grandes nomes da literatura, estrangeiros e brasileiros, assim como cineastas, produzem suas trilogias, ou seja, conjuntos de três obras ligadas entre si por um tema comum. Assim foi com os gaúchos Érico Veríssimo e Cyro Martins. O primeiro com sua obra O tempo e o vento, dividida em três volumes: O continente, O retrato e O arquipélago; o segundo, com O gaúcho a pé, que reúne Sem rumo, Porteira Fechada e Estrada nova. Quem não leu ou viu no cinema ou, pelo menos, ouviu falar de O poderoso chefão (The Godfather)? Pois também é uma trilogia do americano Mario Puzo, que foi levada para as telas pelo também americano Francis Ford Coppola. Também há escritores contemporâneos fazendo sucesso com trilogias: entre outros, o sueco Stieg Larsson, com Millenium; os americanos Paul Aster, com A trilogia de Nova Iorque, John dos Passos, com USA, e o britânico Philip Pullman, com seu Fronteiras do universo são exemplos recentes. Isso sem falar em Senhor dos Anéis e Harry Potter, que já ultrapassaram as fronteiras da trilogia, assim como os clássicos Guerra nas estrelas e Jornada nas Estrelas.
     Modéstia à parte, eu não poderia ficar de fora: com esta crônica estou lançando o terceiro volume da minha primeira trilogia, que começou com Coerência, passou por Tolerância e se encerra com esta Arrogância.
     É isso mesmo: arrogância. Este termo pode perfeitamente ser usado para descrever o fato de eu colocar meu nome em relação aos dos que citei acima. Querer comparar-me a eles é, no mínimo, manter uma atitude desrespeitosa e ofensiva, uma insolência, um atrevimento, uma ousadia. A expressão “modéstia à parte” que usei no início do parágrafo anterior quer dizer exatamente isto: a modéstia é uma virtude que fica à parte, de lado, esquecida, quando se fala de arrogância. Arrogante é aquele que, por suposta superioridade moral, social, intelectual ou de comportamento, assume atitude prepotente ou de desprezo com relação aos outros. Arrogância é soberba, um orgulho excessivo, uma presunção, um ato de presumir, uma confiança excessiva em si mesmo, uma opinião demasiado boa e lisonjeira sobre si mesmo e a pretensão de demonstrar publicamente essa opinião.
     Arrogância é a caracterização da falta de humildade. O arrogante é aquele que exige que lhe ouçam, mas não ouve aos outros, porque acredita que sabe tudo e que já não tem mais nada a aprender com seus semelhantes (aliás, o arrogante é único, não tem semelhantes), menosprezando ideias e opiniões que não sejam as suas.
     Há pessoas que adquirem conhecimentos em experiências vividas por terceiros e não através da vivência, da prática. No livro Mar sem fim: 360º ao redor da Antártica, Amyr Klink diz:

Hoje entendo bem meu pai. Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livro ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar do calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece, para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como imaginamos e não simplesmente como ele é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver (grifos meus).

     Conheço um sujeito que praticamente se alfabetizou lendo Platão, Aristóteles e outros gregos e troianos famosos. Por óbvio, não tinha maturidade pra assimilar tanto papo cabeça. Mas, por ter lido tudo isso e outras coisas, acha que sabe tudo, mesmo quase sem sair de casa. Se não fosse o Google Maps nem saberia se deslocar pela cidade. Quando se está discutindo alguma coisa com ele, por mais banal que seja, sobre coisas do cotidiano das pessoas e da vida, invariavelmente, depois de uma explicação, um conselho ou uma opinião vem a clássica pergunta: “— ‘Comé’ que tu sabe?” Na verdade ele não está querendo saber como adquiri aquele conhecimento. Não. Ele está duvidando da minha capacidade de saber alguma coisa que ele não saiba.
     Falta ao arrogante a capacidade de aceitar que nenhuma verdade é absoluta, não admitindo seus erros (sim, porque todos erramos), já que isso contraria seus princípios elementares. Assim, jamais se considera arrogante (a arrogância é um erro); a culpa é sempre dos outros; desmerece o sucesso alheio; traz consigo o egoísmo, é o melhor em tudo; acha que é querido por todos e nem se dá conta de que, por suas atitudes, perde a amizade, o respeito e o carinho das demais pessoas.
     O arrogante não sabe que o estudo da sabedoria nunca termina. Em Introdução à sabedoria, Juan Luis Vives (1492-1540), humanista, filósofo e pedagogo espanhol, diz:

Desterra dos teus estudos a arrogância; não fiques presumido pelo que sabes, porque tudo quanto sabe o mais sábio homem do mundo nada é em comparação com o muito que lhe falta saber.
[...] a arrogância faz com que não possas tirar proveito do estudo; creio que terá havido muitos que não chegaram a sábios e que poderiam tê-lo sido se não dessem a entender que já o eram.

     Distancie-se, portanto, dos arrogantes, se é que estás próximo de algum.
     Espero, com toda humildade, que os leitores tenham gostado da minha trilogia. Vou tentar falar com George Lucas ou Francis Ford Coppola pra ver se têm interesse em transformá-la em filme. Se não quiserem, certamente será por falta de capacidade (deles). Em último caso, espero o Fábio Barreto se recuperar do acidente que sofreu e ofereço a ele minha trilogia. O diretor de Lula, o filho do Brasil, obviamente vai me olhar e dizer: Aldo, ô filho da mãe!

sábado, 16 de janeiro de 2010

O anônimo que odeia Dilma




     Tem um email apócrifo invadindo nossas caixas de entrada, contando um trecho de suposta biografia da ministra Dilma Rousseff. Eu já recebi umas três vezes e conheço gente que recebeu mais. Fico imaginando como seria o caráter da pessoa pretensiosa que começou essa corrente e dos ingênuos ignóbeis que repassam o texto sem questioná-lo. Estes poderiam ao menos acrescentar que concordam ou discordam, mesmo não sabendo se é verdadeiro ou não. O texto não cita fonte alguma. Parece evidente que o autor leu em algum lugar um texto completo e pinçou as partes que lhe interessavam.
     Fui atrás de uma biografia rápida de Dilma Rousseff pra ver quão tendencioso é o texto que circula nos emails. Optei pela que encontrei no Wikipedia*. Tem gente que não confia no Wikipedia por ser uma enciclopédia online livre, ou seja, qualquer pessoa pode inserir ou alterar seu conteúdo, desde que com seriedade e respeito às normas de conduta e de direitos autorais. Sobre a biografia de Dilma no Wikipedia, no entanto, é difícil duvidar que seja fajuta, pois apresenta nada menos do que 86 referências, entre livros e artigos publicados em revistas e jornais.
     A biografia tendenciosa começa dizendo que o pai de Dilma – “Pétar Russév (mudado para Pedro Rousseff) –, filiado ao Partido Comunista búlgaro, deixou um filho (Luben) lá na Bulgária e veio dar com os costados em Salvador, depois Buenos Aires e, ao fim, fez negócios em São Paulo”. Omitiu sua profissão de advogado e empreendedor, e de que frequentava os círculos literários dos anos 20. A impressão que passa é de que o Pedro abandonou o filho e a mãe deste na Bulgária. Na verdade ele já era viúvo quando partiu da Bulgária.
     O pseudobiógrafo continua contando a sua maneira que Pedro Rousseff “encantou-se com a professorinha de 20 aninhos, Dilma Jane da Silva (rica, filha de fazendeiro), e com ela casou e viveu em Belo Horizonte, tendo três filhos: Igor, Dilma - a guerrilheira - e Lúcia”. É verdade. Ele se casou com uma “professora” de 20 anos que conheceu em Minas e que era filha de pecuaristas. O “professorinha” e a observação do autor entre parênteses revela as intenções secretas de seu discurso. Mais tendenciosa ainda é a qualificação dos três filhos de Pedro e Dilma Jane: Igor e Lúcia nada são; Dilma é “a guerrilheira”.
     Em seguida, observa que “era uma família classe A, com casa enorme, três empregadas, refeições servidas à francesa, com guarnições e talheres específicos. Tinham piano e professora particular de francês”. Novamente aparecem as maldosas intenções: qual o problema de uma família pertencer à classe A e ter os privilégios inerentes? Acho que nesse ponto o autor deu um tiro no pé. Com tudo isso à disposição, Dilma preferiria a explícita luta de classes ao luxo e ao conforto.
     As duas biografias dizem que Dilma saiu do conservador Colégio Sion e, em 1965, foi estudar no Colégio Estadual Central. O que a fajuta não conta é que esta última era uma escola pública mista, na qual os estudantes secundaristas faziam grande agitação, especialmente por conta do recente golpe militar (olha só: apareceu o golpe militar, referência que não aparece no texto do email!). Limita-se a comentar que “nas férias, iam de avião para Guarapari/ES e ficavam no Hotel Cassino Radium”. Deveras importante para uma biografia e um reforço no tiro no pé.
     A própria Dilma Rousseff revela que “foi nesta escola que ficou ‘bem subversiva’ e que percebeu que o mundo não era para ‘debutante’, iniciando sua educação política”. Uma explicação: subversivo é aquele que pretende destruir ou transformar a ordem política, social e econômica estabelecida; debutante é mocinha que se estréia na vida social. Qual era a ordem política, social e econômica estabelecida?
     Os dois textos falam que Dilma ingressou na Política Operária (POLOP) e depois entrou para um grupo, que deu origem ao Comando de Libertação Nacional (COLINA). O do email não fala muito sobre a origem desses grupos e logo diz que Dilma “casou-se com Cláudio Galeno Linhares, especialista em fazer bombas com os pós e líquidos da farmácia de manipulação do seu pai”. Será? No texto da Wikipedia diz que Galeno ingressara na POLOP em 1962, havia servido no Exército, participara da sublevação dos marinheiros por ocasião do golpe militar e fora preso na Ilha das Cobras. Casaram-se em 1968, apenas no civil, depois de um ano de namoro. Sobre bombas só revela que

“no início de 1969, o COLINA em Minas Gerais resumia-se a algumas dezenas de militantes abnegados, com pouco dinheiro e poucas armas. Suas ações haviam se resumido a quatro assaltos a bancos, alguns carros roubados e dois atentados a bomba, sem vítimas”.

     Ainda do Wikipedia:

“Segundo companheiros de militância, Dilma teria desenvoltura e grande capacidade de liderança, conseguindo impor-se perante homens acostumados a mandar. Não participava diretamente das ações armadas, pois era conhecida por sua atuação pública, tendo contatos com sindicatos, dando aulas de marxismo e responsabilizando-se pelo jornal O Piquete. Apesar disso, aprendeu a lidar com armamentos e a enfrentar a polícia”.

     Por conta de seus atos, Dilma e Galeno precisaram se esconder e acabaram indo para o Rio de Janeiro, onde ela conheceu o advogado gaúcho Carlos Franklin Paixão de Araújo, havendo uma paixão súbita e recíproca. O email tendencioso conta assim o episódio: “No Rio, ainda casada, apaixonou-se por Carlos Franklin Paixão de Araújo, o chefe da dissidência do Partidão; então, chegou, de chofer, e disse para o marido: ‘Estou com o Carlos!’”. Repare nas expressões “ainda casada”, “de chofer”. Quanto moralismo e preconceito! O próprio Galeno afirmou que “naquela situação difícil, nós não tínhamos nenhuma perspectiva de formar um casal normal.”
     Os dois textos vão adiante na trajetória de Dilma. Ambos contam passagens da vida dela, mas o do email apenas com o que interessava ao autor e, inclusive, fantasiando um pouco. Um trecho da Wikipedia

Dilma teria sido a organizadora, na época, do roubo de um cofre pertencente ao ex-governador de São Paulo Ademar de Barros (considerado pela guerrilha como símbolo da corrupção) em 18 de junho de 1969, na cidade do Rio de Janeiro, de onde foram subtraídos 2,5 milhões de dólares. A ação veio a ser a mais espetacular e rendosa de toda a luta armada. Carlos Minc, que foi seu colega na organização clandestina VAR-Palmares e estava entre os militantes que invadiram a casa da suposta amante do ex-governador, nega a participação de Dilma, afirmando ainda que é exagerada a versão de que Dilma era a líder daquela organização, sendo à época uma participante sem nenhum destaque.

     Nada disso transparece no texto do email. Ao contrário, seu autor dá a entender que Dilma é a personificação do mal. Não vou aqui me estender e analisar detalhadamente seu discurso retórico e apócrifo, no qual não há o menor comprometimento na busca da verdade, nem da sua demonstrável probabilidade. No email, o autor objetiva apenas convencer o leitor de que sua tese é certa ou verdadeira, utilizando-se de um linguajar peculiar de conservadores e falsos moralistas, cheio de adjetivos e expressões preconceituosas como fatores para influenciá-lo ou persuadi-lo. Finaliza assim

Eis aí uma “síntese/sintética/resumida” da vida da Dilma Rousseff que, logo... logo... será apresentada pelo Lulla como a pessoa ideal para governar o país. E, em se tratando deste povo brasileiro (batuque, bola, bolsa-família e bunda), tudo pode se esperar, infelizmente.

     Devo lembrar que José Serra, suposto antagonista da suposta candidata à presidência da República Dilma Linhares, teve que se exilar no Chile e, depois, nos Estados Unidos, devido à sua participação contra o regime militar que se instalou no Brasil em 1964.
     Também devo lembrar ao ilustre autor anônimo e aos forwarders desse email que, se estivéssemos hoje sob um regime semelhante ao que havia na época em que se passaram os atos e fatos atribuídos a Dilma, seu IP seria rastreado pela inteligência estatal, ele seria preso, torturado e ainda agradeceria por sair dessa com vida.

     Que Deus perdoe essa criatura inominável.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

De leitores e ouvintes



     Li na seção de cartas do leitor de um jornal da capital a crítica de uma missivista com o que classificou de “descaso” do presidente com a fúria das águas que castiga o Estado. Dizia que “enquanto o Rio Grande submerge... o presidente Lula descansa nas praias da Bahia...”. Lista a série de infortúnios que as chuvas trouxeram e assevera que “nada disso é suficiente para perturbar o descanso do presidente”. Continua dizendo acreditar que, “[...] na hora de buscar os sonhados votos dos gaúchos, ele vai lembrar deste estado [...]”, blá, blá, blá.
     Será, dona missivista inconformada? Será que o presidente em pessoa precisaria estar presente nas área alagadas para dimensionar e resolver o problema e se solidarizar com as vítimas? Queria ela que o presidente manejasse, digamos, uma escavadeira ou mergulhasse à procura de corpos?
     Uma semana antes da publicação da carta, li que

O presidente Luis Inácio Lula da Silva ligou no final da tarde desta quarta-feira (06) para a governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius, para se solidarizar com as vítimas das enchentes que atingiram o Estado nos últimos dias e vêm causando diversos estragos. Lula disse ainda que o governo federal está à disposição para ajudar caso seja necessário.

     A governadora Yeda, sim, tinha a obrigação de acompanhar de perto o problema e o fez: sobrevoou a região e pousou em Agudo. Tenho certeza, no entanto, de que, mesmo que não constatasse in loco os estragos, destinaria recursos e pessoal para trabalhar no resgate e na reconstrução das áreas atingidas.
     A propósito: o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, foi muito criticado por não ter comparecido no local da tragédia de Angra dos Reis, no reveillon. No caso de Angra, o vice-governador Luiz Fernando Pezão desembarcou na região tão logo ficou sabendo dos deslizamentos que mataram mais de 30 pessoas. De uma praia na Bahia, onde repousava, Lula acionou o ministro da Integração Nacional para que ajudasse o Rio. O ministro suspendeu suas férias.
     Quanto à suposição de que Lula virá buscar votos no Estado, devo lembrar à dona missivista indignada que, se dependesse do Rio Grande do Sul, o presidente, hoje, seria Geraldo Alckmin, que obteve 53,19% dos votos dos gaúchos, contra 42,90% dados a Lula.

     O propósito deste meu comentário não é a informação, que já está ultrapassada. Só queria me referir ao fato de que sempre tem alguém e de que tudo é motivo pra criticar o que Lula faz ou deixa de fazer. Querem que seja onipresente e onisciente e nem férias possa gozar. Ora, até Deus tirou um dia de folga depois de criar o universo.
     Agora, com o episódio do terremoto no Haiti, dona missivista deverá querer que Lula esteja presente naquele país, dando apoio e prestando solidariedade aos brasileiros que lá residem e aos militares da força de paz.

Ato falho

     Enquanto escrevia esta postagem, o rádio estava ligado e sintonizado numa FM de jornalismo, lá pela frequência dos noventa e tantos megahertz, num programa comandado por dois figurões do jornalismo radiofônico. Aviso que quem gosta de ouvir esse programa é minha mulher e, como sou tolerante, tolero.
     Os ouvintes desse programa podem comunicar-se com os apresentadores por torpedos, msn, twitter, etc. Em determinado momento, um dos dois apresentadores leu o comentário de um ouvinte – indignado como a missivista do assunto anterior – que pregava o voto nulo. Muito consciente de sua função, o jornalista lembrou que o voto nulo não é um protesto válido e que, ao contrário, poderá ajudar a eleger um candidato menos preferencial, blá, blá, blá. Certo ele. Aconselhou o ouvinte a sempre escolher um candidato que se acredite ser melhor e finalizou com um ato falho: “um dia a gente acaba acertando”. “A gente” é nós; “nós” pode ser todos ou apenas ele e o ouvinte. Então eu pergunto: ele ainda não acertou? Se ainda não acertou, presumo que nada entende de política; se nada entende de política, por que passa boa parte da manhã falando nela, elogiando uns, criticando outros, fazendo juízo de valores tendenciosos? Porque há quem dê guarida a esse tipo de “formador de opinião”.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Tolerância



Não me importa a sua crença
Eu quero a diferença
Que me faz te olhar
De frente

Pra falar de tolerância
E acabar com essa distância
Entre nós dois

     Na postagem anterior falei sobre coerência e o conceito que eu (modéstia a parte) e outros pensadores fazemos dela. O tema, agora, é a tolerância, motivado pelos versos de Ana Carolina, extraídos da música de sua autoria que tem esse nome e que encimam este texto.
     A palavra tolerância é um substantivo que vem do latim tolerantia, derivado do verbo tolerare, que significa sustentar, suportar. O termo define uma tendência a admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou mesmo completamente opostas às nossas. Sob a ótica da sociedade, é aceitar modos de pensar, de agir e de sentir que diferem dos de um indivíduo ou de grupos determinados, políticos ou religiosos. Também há outros usos para o termo: tolerância civil é a discrepância entre a legislação e sua aplicação e impunidade; tolerância religiosa é a atitude respeitosa e de bom convívio diante das confissões de fé diferentes da sua; tolerância medicamentosa é a diminuição do efeito de uma medicação por exposição excessiva do paciente ao seu princípio ativo; em gestão de riscos, tolerância constitui o nível de risco aceitável normalmente definido por critérios pré-estabelecidos.
     No passado, o termo tinha um significado negativo, que qualificava atitudes indulgentes de autoridades diante de posturas sociais impróprias ou erradas. Hoje, no entanto, é uma virtude, através da qual mostramos respeito e consideração pelas opiniões ou práticas dos outros, ainda que sejam diferentes das nossas, além de reconhecer neles o direito de difundi-las e manifestá-las. Voltaire (1694-1778) dizia: “não concordo com nada do que você diz, mas defenderei o seu direito de dizê-lo até o fim”. Já o Marques de Sade (1740-1814), aristocrata francês e escritor libertino, entendia que “a tolerância é a virtude do fraco”. Se você não concorda com ele, há, contudo, que ser tolerante, pois grande parte de suas obras foi escrita quando estava num hospício.
     Outra personalidade importante da história, Mahatma Gandhi (1869-1948), dizia que

“a lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, já que nunca veremos senão uma parte da verdade e sob ângulos diversos”.

     Convém lembrar que Gandhi foi um dos idealizadores e fundadores do moderno estado indiano e um influente defensor do princípio da não-agressão – forma não-violenta de protesto – como um meio de revolução. O termo que define essa filosofia em hindi é Satyagraha (o caminho da verdade ou a busca da verdade). A propósito: aqui no Brasil, Satyagraha é o nome de uma operação da Polícia Federal contra o desvio de verbas públicas, a corrupção e a lavagem de dinheiro, que resultou na prisão de vários banqueiros, diretores de banco e investidores, em julho de 2008. A PF andava em “busca da verdade”, mas se depender do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, periga ela jamais ser encontrada. Sejamos tolerantes com ele também, pois

a intolerância pode ser definida como uma atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a seu estilo de vida e às suas crenças e convicções.¹

     Afinal, nessa pendenga entre Polícia Federal e STF

quem pretende possuir “a verdade”, ou melhor, “a certeza”, termina sendo intolerante em aceitar outros posicionamentos, se fechando à escuta de tudo que se apresente diferente ou incompreensível ao seu esquema conceitual de fala e ação.²

     Há quase 15 anos, em 16 de novembro de 1995, na 28ª reunião da Conferência Geral da UNESCO, em Paris, foi aprovada a Declaração de Princípios sobre a Tolerância³. Se um órgão da ONU se preocupou em discutir princípios sobre a tolerância é porque não é apenas uma palavra no dicionário. Não parece, contudo, que essa Declaração tenha surtido muitos efeitos, senão árabes e judeus estariam andando de mãos dadas no mesmo território, Saddam não teria dado motivos pra ser enforcado e os Estados Unidos não teriam interferido belicamente em outras nações.
     Tolerância não é, no entanto, liberdade total. Numa pequena cidade do interior – conta uma história – um deficiente físico, sem pernas, perambulava pela cidade com auxílio das duas mãos e o apoio do tronco. Durante anos, no seu trajeto, era debochado por um homem que dizia: — Vai gastar o ...! Um dia ele perdeu a paciência e matou o importunador. Na justiça, o aleijado foi duramente atacado, e tido como assassino cruel. O advogado, ao iniciar a defesa, falou durante dez minutos elogiando a qualidade de cada membro do júri, até que o juiz interrompeu: — Se o senhor não iniciar a defesa, não permitirei que prossiga. Sabiamente, o advogado respondeu: — Meritíssimo, se o senhor não aguentou dez minutos de elogios, imagine a situação do réu que suportou anos de insultos. Nestes casos, pode valer o provérbio: “Não seja intolerante a menos que você se confronte com a intolerância”.
     Tolerância tem limites. De acordo com o escritor, jornalista, dramaturgo e poeta português José Saramago (1922), “a tolerância para no limiar do crime. Não se pode ser tolerante com o criminoso. Educa-se ou pune-se”. Na mesma época em que Saramago dizia isto, o prefeito de Nova Iorque, Rudy Giuliani, tomava medidas para conter o crescimento avassalador do crime na cidade, adotando aquilo que foi chamado de tolerância zero contra quaisquer tipos de crime cometidos.
     Não sei se simultaneamente, antes ou depois disso, a expressão passou a ser usada por humoristas. “O sujeito estava voltando de uma pescaria com um balde cheio de peixes, quando é interpelado por um vizinho que pergunta: — Você pescou todos? Ao que o pescador respondeu: — Não, alguns são peixes suicidas e se atiraram no meu balde”. É uma caricatura, mas representa bem a atitude do “intolerante” porque, na verdade, não existe tolerância zero, o que existe é intolerância.

O que leva duas pessoas a entrarem em discórdia? A invasão do direito alheio, o ultrapassar o limite de tolerância, a incapacidade de compreensão mútua ou própria, a falta de empatia, a nossa própria natureza, o nosso temperamento. Somos limitados, e isto se manifesta também no modo tosco com que nos relacionamos muitas vezes com as pessoas.
Nossas limitações são patentes. Não somos o que queremos, não fazemos tudo que sonhamos, não temos o dom de estar onde desejamos. Dentro destes limites é que nos movemos. Conhecer os limites pessoais e os dos outros – pois somos seres que não se repetem – é uma tarefa que dura toda a vida.4

     A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.
     O escritor e pacifista israelense Amós Oz (1939) entende que a tolerância é a questão fundamental do século XXI e nos deixa uma pergunta bem atual: “A tolerância deve se tornar intolerante para se proteger da intolerância?”
___________________
¹ ROUANET, Sérgio P. O eros das diferenças. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/022/22crouanet.htm. Acesso em 08/01/2010.

² DE LIMA, Raymundo. O conceito e a prática da tolerância. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/026/26ray.htm. Acesso em 08/01/2010.

³ UNESCO. Declaração de Princípios sobre a Tolerância. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001315/131524PORb.pdf. Acesso em 08/01/2010.

4 LACAZ-RUIZ, Rogério; OLIVEIRA, Anne Pierre de; SCHOLTZ, Viviane; ANZAI, Nelson Haruo. O limite e a tolerância. Disponível em http://www.hottopos.com/videtur5/o_limite_e_a_tolerancia.htm. Acesso em 08/01/2010

Coerência


Minha revolta vem do fato de ser sempre ligado, pura e simplesmente, a um acontecimento e, em consequência, ser petrificado num momento da história. Minha visão é a de que nós estamos em constante mudança. Se hoje sou um deputado federal, amanhã posso não ser. A cada momento histórico, você deveria ter um “entre vírgulas” diferente para defini-lo, a não ser que você se aposente. Quando se aposentar, você vai escolher aquilo que, no passado, o representa.



     O texto em epígrafe é do deputado federal pelo Rio de Janeiro, jornalista e escritor (não obrigatoriamente nesta ordem) Fernando Gabeira, dito em entrevista de quase seis horas prestada ao jornalista Geneton Moraes Neto, que resultou no livro Dossiê Gabeira: o filme que nunca foi feito.
     Gabeira lamentava-se de sempre ser lembrado como participante do sequestro, em 1969, do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick. Eram os anos de chumbo e a ação foi uma forma de pressionar a ditadura instalada a libertar presos políticos, entre outros requerimentos.
     Fernando Gabeira foi candidato ao Governo do Estado do Rio de Janeiro pelo PT, em 1986, à Presidência da República pelo PV, em 1989, e à prefeitura do Rio de Janeiro, em 2008. O Gabeira de hoje é conhecido por defender posições liberais polêmicas, como a profissionalização da prostituição e a descriminalização da maconha. Em abril do ano passado, considerou ter arranhado sua imagem política por ter usado sua cota de passagens aéreas da Câmara em benefício de familiares.
     Deixando o personagem de lado, vamos ao que me trouxe aqui: justamente as palavras de Gabeira epigrafadas. Elas me fizeram lembrar de um termo muito utilizado, especialmente quando se fala de política e de políticos (apesar de não ser alusão exclusiva a eles): coerência. O que seria coerência? Diz-se que é qualidade, estado ou atitude de coerente (até aí morreu Neves: na definição de coerência se fala em coerente; na de coerente, que é o que procede com coerência). Diz-se, também, que coerência é ligação ou harmonia entre situações, acontecimentos ou idéias, relação harmônica; conexão, nexo, lógica. Aliás, em lógica coerência significa ausência de contradição, isto é, acordo do pensamento consigo mesmo (dos princípios com as consequências, dos axiomas com os teoremas, etc.); compatibilidade, consistência. Em um texto, por exemplo, coerência é a relação existente entre suas partes, é o vínculo entre as idéias expostas nele.
     Pela definição, portanto, Gabeira não é um cara coerente. As idéias e atitudes daquele de 1969, da luta armada, não são as mesmas do de 2009, que usou suas cotas de passagens em benefício de familiares. E nem teria que ser. Não se pode rotular as pessoas apenas pela definição do rótulo. Exigir coerência das pessoas em tempos distantes e situações distintas é medíocre. Como exigir coerência de um cônjuge que descumpre, anos depois, aquelas promessas feitas no altar? Como cobrar coerência dos colorados que torceram pelo Grêmio na última rodada do brasileirão?
     Tem mais gente que pensa assim. Ralph Waldo Emerson (1803-1882), escritor, filósofo e poeta norte-americano disse que

Uma coerência tola é o espantalho das pequenas mentes, adorada pelos pequenos homens de Estado, filósofos e sacerdotes. Uma alma grande não tem nada que ver com a consistência... Diz o que pensas hoje em palavras duras e amanhã diz o que o amanhã pensar, outra vez em palavras duras, ainda que contradiga tudo o que disseste hoje.

     O escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), por sua vez, afirmou que

O homem que pretende ser sempre coerente no seu pensamento e nas suas decisões morais ou é uma múmia ambulante ou, se não conseguiu sufocar toda a sua vitalidade, um mono maníaco fanático.

     O irlandês e também escritor Oscar Wilde (1854-1900) disse que “a coerência é a virtude dos imbecis”, pensamento que poderia ser complementado pelo do desenhista, humorista, dramaturgo, escritor e tradutor brasileiro Millor Fernandes (1923): “Coerente: um sujeito que nunca teve outra ideia.”
     Os ideólogos de plantão cobram coerência de Lula, diariamente, comparando aquele líder sindical surgido no regime militar com o hoje presidente da República. Aqui não interessa se aquele era melhor do que este ou se este é melhor do que foi aquele. São tempos distantes e situações distintas. Aquele era um metalúrgico que vociferava contra o Estado; este é o chefe de Estado.
     Ferdinand de Saussure (1857-1913), um linguista e filósofo suíço, afirmou que “o ponto de vista cria o objeto”. O objeto está lá, seja ele qual for, mas, dependendo de como o olharmos, de onde o olharmos e de quando o olharmos podemos ter uma idéia diferente sobre ele. Mesmo que não seja coerente com a idéia que tínhamos antes.
     Têm alguns, contudo, que se mantêm coerentes. O Zé Arruda, governador de Brasília, é um deles: um dia violou a votação secreta do senado e, depois, pediu desculpas; agora, é suspeito de comandar um esquema de corrupção. Ah! Mas ele perdoa aos que os insultam porque, assim, também pode pedir perdão por seus pecados.
     Isso é que é coerência! É?

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O especialista


     Agora sim! Chega de café de chaleira! A propósito: você, leitor, sabe o que quer dizer “chega de café de chaleira”? Antes há que se explicar o que é “café de chaleira”. Pois bem, no tempo em que os gaúchos não eram esses personagens caricatos pintados pelos programas humorísticos feitos por paulistas e cariocas, viajavam durante a madrugada levando gado de uma localidade pra outra. De manhãzinha, acampavam e preparavam um café para, depois, seguirem viagem. O café era feito da seguinte forma: quando fervia a água, a chicolateira (chaleira) era retirada do fogo e nela eram colocadas duas ou três colheres bem cheias de café em pó. Com a própria colher ou com a ponta de um facão, aquela mistura era bem mexida, até dissolver-se o máximo possível. Em seguida, a chaleira era colocada novamente no fogo, até ferver outra vez, deixando transbordar o líquido. Era, então, outra vez retirada do fogo e dentro dela era colocado um tição aceso, provocando nova ebulição. Depois de alguns segundos, o preparador dava umas pancadinhas com o cabo do facão na chaleira, fazendo com que a borra ficasse no fundo. Estava pronto o café.
     Muito tempo depois, surgiu o café solúvel e, com ele, a expressão “chega de café de chaleira”, imortalizada pelo grande folclorista Paixão Cortes em comerciais de TV. Muito mais se poderia falar sobre esse fato, que rendeu muito pano pra manga, mas o que interessa é explicar que a expressão significa pouco mais do que a primeira palavra dela, ou seja, chega, basta. Pouco mais do que um simples “basta” porque dá a entender que há outro modo mais fácil de se chegar a um objetivo, sem muito trabalho.
     Vamos ao ponto: essa conversa introdutória, demorada como um, digamos, café de chaleira, é pra dizer que agora sou especialista em Estudos Linguísticos do Texto. Nossa! Mas, então, continua o “café de chaleira”, porque devo tentar pelo menos fazê-los entender o que é “linguística”.
     Pode-se dizer que linguística é o estudo científico da linguagem, ou seja, que é a ciência responsável pelo estudo do fenômeno da linguagem ou, ainda, que é simplesmente o estudo do uso da linguagem. Por favor, não confunda com gramática, que é a responsável pelas “normas” que norteiam a linguagem. A linguística estuda como a linguagem se forma, sua origem e sua função.
     Agora sim, vou contar desde o início.
     Trabalho numa universidade pública federal. Sou, portanto, servidor público federal, que ganha pouco, mas se diverte e ainda tem alguns benefícios. Um deles é o Programa de Qualificação, através do qual é possível melhorar um pouco o minguado salário ao concluir, no meu caso, um curso de pós-graduação numa área afim com a graduação. Faz-se um curso de especialização e sobe-se um degrau na carreira; depois de cinco anos, mestrado, mais um degrau; cinco anos depois, doutorado, mais um degrau. Concluí em agosto e finalmente ficou pronto o meu certificado do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu: Especialização em Estudos Linguísticos do Texto.
     Mas o que tem a ver o café de chaleira e o chega dele com isso tudo? Simples. É como se eu chegasse ao meu empregador e dissesse pra ele: tá aqui a minha qualificação, agora vais ter que aumentar meu salário.
     Essa história começou em abril de 2008, quando fui incentivado por uma colega a fazer um curso que começaria no mês seguinte. Me informei e só tinha um disponível na minha área, que era o de linguística, duração de um ano, 360 horas, só aos sábados, manhã e tarde... Putz! A primeira coisa que fiz foi procurar saber o que era linguística pra tentar entender o programa do curso. Fiquei como você deve ter ficado ao ler a minha tentativa de explicação parágrafos acima: Huuuummmm... então tá! Mas vamos lá, um ano passa rápido pra quem já viveu mais de meio século. Comecei a gostar quando descobri que, por ser funcionário da instituição que ministrava o curso não precisaria pagar. Ah! — pensei — este curso deve ser ótimo! Pelo menos melhor do que injeção na testa.
     Afinal chegou o dia. Minha última participação em cenas acadêmicas como estudante ocorrera em dezembro 1978, quando me graduei em jornalismo. O que viria pela frente? Estudar de novo, aos sábados, até as cinco da tarde. Senti-me um tanto desconfortável sentado na primeira fila, de costas pra um monte de jovens de ambos os sexos recém-formados em Letras, pra algumas jornalistas e um outro jornalista, pra professoras de gramática, tradutores e revisores. Mais estranho ainda foi fazer a própria apresentação e ter que confessar perante todos que há 30 anos não sentava num banco escolar. Os mais práticos, com certeza, calcularam minha idade, mas duvido que tenham acertado.
     Enfim, as coisas foram acontecendo como tinham que acontecer. Logo me enturmei e virei cúmplice dos colegas. Estávamos todos no mesmo barco, remando contra a maré, rumando não se sabe pra qual ilha, rimando conhecimento com crescimento, atravessado disciplinas com disciplina.
     Como eu imaginava, os sábados logo se acabaram. Em agosto de 2009 apresentei meu trabalho de conclusão perante a banca e cá estou hoje, com o salário um pouco menos minguado, um baita conhecimento sobre a tal de linguística e um belo certificado na gaveta. Não posso deixar de agradecer aos professores (por ordem programática) Valdir do Nascimento Flores, Carmem Luci da Costa Silva, Maria José Bocorny Finatto, Cristina Uflacker, Margarete Schlatter, Magali Endruweit e Marlene Teixeira.
     Olha aí o certificado.


sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Diversas para o 1º dia do ano


     Pensamentos de um primeiro de ano ensolarado.


Palavras sazonais


     Os finais de ano e inícios de outro são pródigos em promessas, desejos e votos. Não vou ficar de fora desta. Prometo que, não sei se neste ou em um outro ano novo qualquer, vou ter a paciência de começar a anotar palavras que são usadas somente em ocasiões como, por exemplo, fins de anos, páscoas, etc. e fazer um dicionário.
     Já que ainda estamos sujeitos ao espírito das festas, vou dar exemplos: repleto e próspero. Estas são palavras que só aparecem no vocabulário dos falantes em dezembro. Passam-se onze meses e ninguém as usa, mas basta começar dezembro que em cerca de 90% daquelas mensagens de Natal e Ano Novo que recebemos elas surgem. E vêm mais ou menos assim: “Desejo que o Novo Ano que se inicia (nunca vi algo velho se iniciar, em todo caso...) seja repleto de realizações, etc. etc. etc”. “Nossos votos são de que tenhas um Feliz Natal e um próspero Ano Novo”. “Que o novo ano seja repleto de saúde, paz, sucesso, etc. etc. etc". Têm pessoas que até transformam o adjetivo próspero em um substantivo próprio, pois o escrevem com o “p” maiúsculo, designando o Ano Novo como um ser específico. Nem precisava, pois, se já escrevem Ano Novo com as iniciais em maiúscula, é porque já é um ser específico. Lá por julho ou agosto não se ouve ninguém dizer que o clima não está próspero para se ir à praia. Nestes meses fala-se “favorável”, “propício”, mas não próspero.
     O uso de repleto pode até ocorrer em outra época do ano, mas vinda da boca (ou da caneta, ou do computador) de falantes mais pernósticos. Imagina um sujeito dizendo pra outro: “O estádio estava repleto de torcedores!”. É ruim, né? O comum é dizer que estava muito cheio, abarrotado. Ou, então, depois de um lauto churrasco, o cara passa a mão sobre o estômago e diz: “Estou repleto”. Será que não ficaria melhor “farto, satisfeito” ou até “empanturrado”?
     Enfim, assim como essas, têm muitas outras palavras que só aparacem em determinadas épocas do ano ou, na melhor das hipóteses, são muito mais usadas em determinados meses. Na Páscoa surgem “renovação”, “renascimento”, “ressurreição”... Mas estas nem são palavras muito estranhas como próspero e repleto.
     Já nem sei se vou anotar as palavras usadas somente em certas épocas. Afinal, estarei repleto de coisas pra fazer neste Próspero Ano Novo que se inicia...


Wanda, 15 anos


     Minha gata chamada Wanda (de quem já falei neste blog >) está fazendo 15 anos hoje. Nasceu em 1º de janeiro de 1995. Curioso, fui pesquisar pra saber quantos anos teria se fosse humana. Encontrei várias teorias sobre a relação entre a idade dos gatos e dos humanos. Wanda teria entre 71 e 78 anos. Optei pela teoria que diz que ela estaria fazendo, hoje, 76 anos. A explicação é de que o primeiro ano de um gato criado fora da rua equivale a 15 anos de um humano; ao segundo ano de um felino se somariam mais 9 de um humano, indo, então, a 24; a partir de então, para cada ano do gato contam-se quatro de um humano. Na comparação Wanda tem, então: 2 anos = 24; mais 13 x 4 = 52; total = 76 anos.
     Duvido, no entanto, que uma idosa ou um idoso de 76 anos saia em desabalada corrida pelo apartamento depois de fazer suas necessidades fisiológicas nº 2. Pois a Wanda faz isso. Duvido que um idoso ou idosa de 76 anos pule cerca de quatro vezes sua altura para subir na bancada do computador e deitar-se na frente da impressora. Pois a Wanda faz isso.
     Acho que a Wanda tem 15 anos mesmo, como qualquer adolescente de nossos tempos.

O velho


     Eram oito e meia da manhã do primeiro dia do ano. Apesar de as cervejas e do espumante de horas antes ainda me deixarem zonzo, meus músculos queriam que eu saísse da cama. Levantei em silêncio para não acordar minha mulher, com quem, pouco antes, fizera um amor gostoso e pro-missor para o ano que se iniciava. Fechei a porta do quarto para não despertá-la com qualquer ruído que pudesse fazer.
     Ainda meio cambaleante, mesmo depois de jogar água no rosto, fui para a cozinha. Enquanto o café passava, guardei a louça e os talheres da ceia de ano novo que foram deixadas no secador. Tomei minha matutina xícara de café com leite e fui pra sacada da sala fumar o primeiro cigarro da manhã do primeiro dia do ano.
     O sol estava tímido. Ora espiava entre as nuvens brancas e grossas que passeavam lentamente, ora se escondia atrás delas. Mas seus raios estavam quentes. O ar era abafado, embora circulasse uma brisa – aliás, no pé do morro, no Partenon, quase sempre tem vento.
     Na esquina, pombas e pardais disputavam migalhas em volta de um despacho colocado pouco antes da meia-noite. Bem-te-vis, sabiás e outros que desconheço trinavam como o fazem todas as manhãs, ignorando que esta era a primeira de um novo ano.
     Dezenas de antenas admiravam a cidade toda do alto do morro da Embratel. Fiquei olhando-as e tentando calcular a quantidade de frequências que suas ondas emitiam. Frequências que carregam sons e imagens de música, notícias boas e ruins, enfim, do dia-a-dia de todos. Com certeza, por cima de minha cabeça passavam, naquele momento, inúmeros e invisíveis votos de próspero ano novo, gravados em vozes sedosas de comunicadores e apresentadores de rádios e TVs.
     Antes de lançar o toco do meu cigarro no meio da rua, olhei pra baixo e vi um velho aparentando mais de 90 anos subindo tropegamente a rua. Atravessou a rua com dificuldade. As pedras irregulares eram um estorvo para aqueles pés cansados e pernas tortas. Não parecia bêbado, mas sim exausto. Parou e encostou-se no poste em frente ao meu prédio. Tirou do bolso um lenço surrado e acinzentado e passou-o pelo rosto e cabeça. Era um velho desgrenhado. As calças eram de um preto russo, a camisa, antes branca, estava amarelada pelo tempo. Os sapatos marrons não tinham cadarço. Ali ficou por um tempo antes de sentar-se, ainda encostado no poste. Parecia estar se sentindo mal. Logo fiquei pensando no que eu poderia fazer se ele precisasse de ajuda. Levá-lo em casa, levá-lo a um hospital, chamar a SAMU... Resolvi descer e falar com ele.
     Eu ainda vestia a calça curta do pijama. Coloquei uma bermuda sobre ela, peguei as chaves, abri a porta e a grade de ferro que separam meu apartamento do resto do mundo e do submundo e desci sem camisa mesmo. O shleptap das Havaianas ecoou pela escadaria do edifício adormecido. Usei outras chaves pra abrir a porta e a grade de ferro que separam o prédio do resto do mundo e do submundo. Olhei pra esquina e o velho ainda estava ali. Aproximei-me dele, que pareceu nem notar minha presença.
     — Bom dia, senhor – disse. Está precisando de alguma coisa?
     Sem parar de olhar para o chão por entre as pernas, o velho me ignorou.
     — O senhor não está bem? – insisti. Quer ajuda?
     Ele levantou os olhos calmamente, encarou-me e esboçou um sorriso. De perto era muito pior do que parecia da sacada do segundo andar. Seu rosto era composto de rugas e sulcos profundos, mais parecendo uma foto em preto e branco de Sebastião Salgado; seus lábios muito finos quase se escondiam sob a ponta caída do nariz; dentes? Nem pensar.
     — Obrigado, meu jovem, mas já não preciso de mais nada e nada do que por mim tentem fazer vai ajudar – disse o velho com difi-culdade. E continuou a falar com a voz fraca, quase sussurrada.
     — Nada mais adianta. O que era pra ser feito já o foi. Eu só estava de passagem mesmo. O fim já chegou e estou me dirigindo para o limbo.
     Voltou a olhar o chão. Em seguida, de olhos fechados, jogou a cabeça pra trás, ofegante.
     — Há alguém a quem eu possa avisar – perguntei –, uma esposa, algum parente, um amigo?
     Novamente me encarou e, com o mesmo sorriso de antes, apesar do estado deplorável, disse:
     — Não tenho ninguém e ninguém mais me tem, meu jovem. Fui do mundo e o mundo foi meu, mas hoje, especialmente hoje, já sou o passado.
     Pensei comigo que, com certeza, o velho era a reencarnação de algum filósofo grego ou, quem sabe, de Sartre, de tantos nãos, nadas e ninguéns que pronunciava. E continuou:
     — Fui feito de alegrias e tristezas, prazeres e sofrimentos. Nasci de muitas esperanças e promessas. Criei-me vendo algumas delas se realizarem e outras tantas não. Cresci porque a natureza, prin-cipalmente o tempo – o implacável tempo – assim o determinaram. Era meu destino passar pelo tempo, deixar nele minha marca e ficar com a dele em mim. Sou passado, sou história.
     Nisso desce a rua correndo um menino. Roupa nova, quem sabe ganha na semana passada, no Natal. Diminuiu a velocidade ao nos ver e, sem parar de andar, ficou encarando o velho, torcendo a cabeça enquanto passava por nós. O velho, por sua vez, parou de falar e rascunhou para o menino o mesmo sorriso que dedicara a mim, quando o interpelei.
     Quando o menino parou de olhar e se afastou correndo rua abaixo, o velho vaticinou:
     — Esse menino será eu daqui a pouco tempo, assim como eu fui ele, também há pouco tempo. Esse menino sou eu ontem.
     Cada vez entendendo menos o que o velho queria, agachei-me na frente dele pra ficar mais perto e poder ouvir com mais clareza o que dizia sem fôlego.
     — Você não, meu jovem. Você está alheio a isso. O tempo não faz com você o que fez comigo e fará com aquele menino. Você é um mero espectador do tempo. Eu e o menino somos os atores: ele, hoje, o protagonista, que um dia fui; eu, o antagonista, que outro dia será ele.
     O velho falava sem alterar a expressão. Apesar de parecer estar em agonia, em sofrimento, aquele sorriso desdentado não se desmanchava.
     — Diga, senhor, qual sua idade?
     O velho esgaçou mais ainda o sorriso, mas não respondeu. Então insisti, mas com outra pergunta, tentando dar uma volta pra depois voltar à questão da idade.
     — Me diga, então, senhor, qual é seu nome?
     — Ora, meu jovem – disse, parecendo impaciente. Então você ainda não percebeu? Antes me perguntou a idade: pois tenho a sua idade menos o que você tinha um ano atrás.
     É louco, pensei. Primeiro, porque não pode saber que tenho 60 anos; depois, porque deve ter mais de 90. Só pode ser doido. Mas o velho continuou:
     — Einstein disse que a energia é igual à massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz. Estava lançada a teoria da relatividade. A teoria da relatividade prevê que os objetos em movimento sofram o efeito de dilatação do tempo, que pode ser maior ou menor de acordo com a velocidade. Assim, o tempo para um objeto ou para uma pessoa dentro de outro objeto em alta velocidade passa mais lentamente do que para objetos que se movimentam a baixas velocidades...
     Impaciente fiquei eu, agora, quando perguntei quase gritando:
     — Me diga, velho: qual o seu nome?
     — Meu nome, jovem, é Ano Passado.